Cinema: Viaggio à Itália em pretérito e presente

Um ensaio sensível sobre a identidade de gênero. A opressão simultânea da guerra e do machismo. O segredo confesso que ainda assombra. Começou em 22 cidades brasileiras o 8 ½ , festival de cinema italiano, marcado por uma revisão crítica do passado…

.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Começa nesta quinta-feira, em 22 cidades brasileiras, a 11ª edição da mostra 8 ½ Festa do Cinema Italiano, com a exibição de dez longas-metragens produzidos na Itália nos últimos anos. Curiosamente, oito deles são ambientados em épocas passadas, variando entre a segunda metade do século 18 e os anos 1980.

Não se trata de nostalgia ou passadismo, mas de uma revisão crítica de momentos ou personagens da história, no mais das vezes com uma perspectiva feminista e libertária. É o caso de três dos filmes mais fortes da mostra, Ainda temos o amanhã, de Paola Cortellesi, Segredos, de Daniele Luchetti, e A imensidão, de Emanuele Crialese, mas também das cinebiografias Il boemo, de Petr Václav (sobre o compositor e maestro de origem tcheca Josef Myslivecek), e Maria Montessori – Ensinando com amor, de Léa Todorov (sobre a médica e educadora italiana). Como escreveu Thomas Mann, “é muito fundo o poço do passado”, e sempre se pode rever com outros olhos o que ficou para trás, se é que ficou.

A seguir, comento brevemente os sete filmes programados que tive oportunidade de ver. Alguns deles devem entrar depois em circuito, merecendo críticas mais extensas.

Ainda temos o amanhã, de Paola Cortellesi. Na Roma recém-saída da Segunda Guerra e do fascismo, uma trabalhadora pobre e oprimida pelo marido batalha por sua própria libertação. A ambientação e a fotografia em preto e branco remetem ao neorrealismo, mas o olhar agora é outro, com humor, música e um belo final que pega o espectador no contrapé.

Segredos, de Daniele Luchetti. Nos anos 1980, um professor de literatura simpático e sedutor, adepto da “pedagogia do afeto”, envolve-se com uma aluna brilhante. Os dois se tornam amantes e fazem um pacto, confessando um ao outro a pior infâmia que já cometeram. Décadas depois os segredos compartilhados (e não revelado a nós) tornam-se uma ameaça ao professor, agora uma figura de renome nacional. O binômio “amor e medo”, conjugado pelo professor em suas aulas, é desenvolvido de várias maneiras no filme. O diretor Daniele Luchetti estará presente para conversar com o público em algumas sessões.

O sequestro do papa, de Marco Bellocchio. Apesar do que sugere o título brasileiro, não é o papa que é sequestrado neste drama ambientado na Itália de meados do século 19, e sim um menino judeu batizado à revelia de seus pais e levado a Roma para ser catequizado e convertido em padre. O veterano Bellocchio está em plena forma, recuperando um fato histórico para discutir o tema atualíssimo da intolerância religiosa e das relações entre Igreja e Estado.

A imensidão, de Emanuele Crialese. Roma, 1970. Uma garota no início da adolescência (Luana Giuliani) veste-se e comporta-se como um rapaz. Enfrenta a intolerância do pai e a zombaria dos colegas, e só encontra a solidariedade cúmplice da mãe (Penélope Cruz). Um ensaio sensível e maduro sobre a identidade de gênero e o triunfo da fantasia, misturando drama, musical e comédia de modo original.

Il boemo, de Petr Václav. Na segunda metade do século 18, o músico tcheco Josef Myslivecek se estabelece em várias cidades italianas (Veneza, Nápoles, Bolonha, Roma) buscando o sucesso como compositor e regente, ao mesmo tempo em que se entrega a uma vida desregrada de sexo, bebida e jogo, morrendo de sífilis aos 43 anos. Cinebiografia clássica e um tanto convencional, que se destaca pela reconstituição de época e pela fotografia.

Maria Montessori – Ensinando com amor, de Léa Todorov. Em 1900, uma cantora e atriz francesa leva sua filha “deficiente” (provavelmente autista) a Roma, para ser tratada no instituto de Maria Montessori (Jasmine Trinca), que instituiu um método inovador de educação inclusiva e libertadora. O filme acentua o papel feminista da personagem, em confronto com um establishment machista. Não por acaso, o título original desta coprodução francesa é La nouvelle femme.

O divino Zamora, de Neri Marcorè. Nos anos 1960, um jovem contador de uma cidade de província é contratado por uma grande firma de Milão, cujo dono é torcedor fanático da Inter e obriga seus funcionários a jogarem futebol, divididos em Casados x Solteiros. Escalado no gol, o desajeitado rapaz busca a ajuda de um ex-goleiro alcoólatra, caído em desgraça por um escândalo sexual. Uma das poucas comédias da mostra, descamba no final para o clichê sentimental.

Duas estreias brasileiras

Entram em cartaz também dois novos filmes brasileiros que merecem ser vistos. Salamandra, de Alex Carvalho, narra a relação entre uma francesa de meia-idade (Marina Foïs) e um jovem negro (Maicon Rodrigues) meio malandro, meio marginal, na cidade do Recife. Baseado em romance do médico e diplomata francês Jean-Christophe Rufin, pioneiro dos Médicos Sem Fronteiras, esse romance inter-racial ilumina de modo oblíquo e original fraturas sociais e raciais brasileiras, introduzindo em sua própria linguagem narrativa a ideia de incomunicabilidade, de incompreensão, de mal-entendido.

Casa Izabel, de Gil Baroni, opta por outro modo, igualmente original, de encarar nossa herança patriarcal-escravocrata. Na época da ditadura militar, numa casa de fazenda transformada em hotel privé no interior do Brasil, homens maduros da elite civil e militar vestem-se de mulher e assumem personas glamorosas. Um recém-chegado provoca uma perturbação no ambiente e, junto com uma serviçal trans negra, contribui para um desfecho sangrento e inesperado.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *