Cinema: Um pesadelo terapêutico
Coisas estranhas acontecem num balneário do litoral do Espírito Santo, em fim de temporada… Com autoironia, Prédio Vazio mistura dois subgêneros do terror: o da casa mal-assombrada e o dos mortos-vivos. Mas, no fim das contas, quem diria, é um filme sobre o amor materno
Publicado 12/06/2025 às 16:23 - Atualizado 12/06/2025 às 16:24

Para fugir por um par de horas do horror do noticiário (Gaza, Ucrânia, desmatamento, fome, cracolândias, epidemias, balas perdidas), nada melhor que um bom filme de terror. É a técnica do fogo contra fogo, pesadelo contra pesadelo. Para suprir essa “demanda”, entra em cartaz hoje o novo longa-metragem do capixaba Rodrigo Aragão, Prédio vazio.
Conhecido por suas fábulas macabras de ambientação rural, desta vez Aragão situou sua trama em sua cidade natal, Guarapari, balneário do litoral do Espírito Santo conhecido pelo efeito terapêutico de suas areias monazíticas.
O filme já abre, aliás, com uma imagem marcante: na areia granulada da praia, sobressai o rosto de um idoso (Walter Filho) cujo restante do corpo está enterrado. Saberemos em seguida que se trata de um homem paralisado por um derrame, ou algo do tipo, que mora com a esposa num pequeno prédio decadente da avenida à beira-mar, o edifício Magdalena.
Fim de temporada
Nesse imóvel tenebroso se desenrolará quase todo o restante da ação. Da primeira sequência, que dura uns quinze minutos sem que seja proferida sequer uma palavra, corta para o último dia do Carnaval e da temporada, depois do qual a cidade, ou pelo menos sua orla, fica praticamente vazia.
É dentro do Magdalena que Marina (Rejane Arruda) está conversando ao telefone com a filha Luna (Lorena Corrêa) quando é agredida pelo companheiro (Leonardo Magalhães) e a conversa se interrompe bruscamente. Luna, que tem estranhos pesadelos premonitórios, resolver ir ao encontro da mãe e parte de Belo Horizonte para Guarapari com o namorado, Fabio (Caio Macedo).
Não é o caso de antecipar aqui o que vai ocorrer com esses três personagens forasteiros (mãe, filha e namorado da filha) no interior do edifício, dominado pela figura sinistra da síndica Dora (Gilda Nomacce). Basta dizer que entrará em curso uma sequência de eventos que misturam sobretudo dois subgêneros do horror: o da casa mal-assombrada e o dos mortos-vivos.
Com uma notável segurança e sem medo de transcender os limites do bom gosto, o diretor Rodrigo Aragão canibaliza várias vertentes: George Romero, Dario Argento, o slasher, o gore, as “horas do pesadelo”, os filmes de fantasmas, de vampiros, de bruxas, de casais jovens em férias, etc. Com ao menos uma inversão esperta: nos filmes de zumbis, geralmente se trata de mantê-los fora de onde estão os protagonistas. Aqui, os mortos-vivos já se apossaram do lugar e tudo o que se quer é sair.
Em que pesem as referências a todo esse repertório cinematográfico sanguinolento universal, Prédio vazio é um terror genuinamente brasileiro, na ambientação, na luz, no humor, no sotaque. Há, desde a sequência dos créditos iniciais, uma ironia ferina com relação a Guarapari e sua vocação turística, enfatizada pela canção romântico-cafona da trilha (“Guarapari”, de Pedro Caetano) e por um documentário chapa-branca dos anos 1970 sobre a cidade.
Foco e ironia
Foi dito lá atrás que o filme começa com a cabeça do idoso na areia da praia, mas antes disso, na sequência dos créditos, sob a canção citada, uma câmera indecisa parece procurar o foco nas nuvens sobre o céu azul.
Estão presentes aí duas ideias-chave que nortearão o filme: a autoironia e a importância do foco para o trânsito entre o real e o fantástico, o que se vê e o que se imagina, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A certa altura a síndica faz uma demonstração prática disso, dirigindo com o dedo indicador o olhar de Luna e mostrando que os monstros surgem na visão periférica.
A estratégia do acúmulo de sustos, surpresas e aberrações, ancorada em ótimos efeitos visuais, não obscurece a existência de um eixo dramático central, que é, a meu ver, a contraposição entre dois pares mãe/filha: a síndica Dora e sua filha morta, a turista Marina e sua filha viva.
Ambas as filhas são marcadas por um trauma de infância, algo que só se revelará plenamente no final. No fim das contas, quem diria, é um filme sobre o amor materno. E, assim como as areias monazíticas de Guarapari, também os pesadelos têm um efeito terapêutico.
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