Cinema: “Um assunto de mulheres”
Ainda não é amanhã narra a gravidez que surge como terremotos na vida de uma jovem periférica. Fazer ou não o aborto? E como? Dilema é abordado sem melodrama nem panfleto: mãe, avó, amiga, professora formam rede de afeto e o namorado não é um cafajeste clichê
Publicado 05/06/2025 às 14:29

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Tomo emprestado o título (certamente irônico) de um belo filme de Claude Chabrol sobre o aborto para falar de… um belo filme pernambucano sobre o aborto: Ainda não é amanhã, primeiro longa-metragem de Milena Times, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira.
Não é propriamente um filme “sobre” o aborto (o de Chabrol também não era), mas sim sobre as circunstâncias que cercam esse dilema crucial – abortar ou não abortar, e sobretudo como abortar – na vida de uma jovem negra da periferia do Recife.
Essa moça é Janaína (Mayara Santos), que estuda Direito numa universidade privada, graças a um programa de financiamento, e mora com a mãe e a avó num pequeno apartamento de um conjunto residencial. Ela é a primeira pessoa da família a chegar à universidade. A avó (Cláudia Conceição) é faxineira e a mãe (Clau Barros), ainda jovem e sexualmente ativa, trabalha num salão de beleza. Unidas, elas se esforçam para que Janaína, aluna brilhante, conclua a faculdade e siga carreira de advogada.
Terremoto silencioso
Num contexto assim modesto, de dinheiro contado e pouco tempo para diversão, a gravidez surge como um terremoto. O primeiro feito da diretora Milena Times foi não deixar seu filme descambar nem para o melodrama nem para o panfleto.
Não há aqui música indutora de emoções, não há atuações enfáticas, não há discurso libertário explícito nem vilões imediatamente identificáveis. Não há, em suma, a catarse fácil de tantos outros filmes sobre o tema, e sua abordagem enxuta, discreta, delicada, só faz aumentar sua pungência.
Acompanhamos tudo pelo ponto de vista de Janaína, que sente muito, pensa muito e fala pouco. Quase tudo se expressa pelo seu olhar, pelo seu silêncio – e também por seus sonhos e devaneios, que são os poucos momentos em que o filme abandona seu escrupuloso realismo descritivo.
Numa dessas cenas, brevíssima, Janaína caminha pelo corredor entre duas estantes de biblioteca e estas se movimentam uma em direção à outra, ameaçando esmagá-la. Em outra, numa viagem de ônibus pela cidade, ela desvia os olhos da janelinha e vê, no interior do ônibus, uma porção de gente que a encara inquisidoramente: a mãe, a avó, o namorado, a professora…
Despojamento e solidez
A opção por um estilo narrativo despojado não implica deixar de fora nada do que é essencial. As condições de vida de uma família pobre na periferia de uma metrópole, a subjetividade de uma jovem no início da vida adulta, os pequenos prazeres, a vitalidade transbordante – está tudo lá, com um frescor admirável, expresso nas atuações, no humor das personagens, na deliciosa prosódia recifense.
Claro que isso só é possível graças a um roteiro preciso, a uma decupagem eficiente e a um elenco coeso, muito bem escalado. Fotografia, direção de arte, montagem – nada se “exibe”, nada se sobrepõe ao conjunto, tudo contribui para a solidez da narrativa.
Como um time de futebol bem montado que propicia ao craque brilhar, Ainda não é amanhã se organiza de modo a evidenciar o talento da jovem atriz Mayara Santos, que não sai de cena em nenhum momento. Não por acaso, foi premiada nos festivais do Rio e de João Pessoa.
Assunto de mulheres?
Voltemos ao título deste texto. O aborto é “um assunto de mulheres”? Por certo que não, a começar do fato de que, para haver gravidez involuntária, é necessária a participação de um homem. Fugindo ao melodrama banal, o namorado de Janaína (Mário Victor) não é um cafajeste clichê. É amoroso, solidário, presente. Mas é o único personagem sobre o qual, graças a uma astúcia do roteiro, nunca saberemos se cumpriu direito seu papel.
É, afinal, um filme de mulheres: mãe, avó, amiga, professora. Entre elas se estabelece uma envolvente e quase silenciosa rede de afeto e companheirismo que as fortalece e as torna mais belas.
Uma imagem logo no início do filme se repete quase idêntica perto do final, mas agora plena de um significado maior: uma após a outra, a avó, a mãe e a filha saem para a batalha do dia. É um plano fixo silencioso, singelo, que diz tudo o que há a dizer. Em seguida, já nos créditos, a voz de Elza Soares cantando “A mulher do fim do mundo” vale como um teste para ver quem aguenta ficar de olhos enxutos.
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