Cinema: O crepúsculo do macho

Duas repórteres e um cinegrafista são sequestrados ao investigarem um senador corrupto. A política é central em Serra das Almas – e uma transformação: a fraternidade entre os homens dá lugar a rancores antes silenciados; e a rivalidade feminina, a solidariedade e ação coletiva

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Serra das almas, de Lírio Ferreira, que estreia nesta quinta-feira, traz tudo aquilo que o cinema pernambucano nos tem oferecido de melhor: uma situação dramática em que se entrechocam personagens de várias extrações sociais, evidenciando a permanência de antigas estruturas de dominação, ao mesmo tempo em que deixa entrever possíveis forças de mudança. Um cinema inquieto e visceral, mas ancorado numa leitura pertinente da história.

A situação em questão pode ser resumida assim: duas repórteres e um cinegrafista são sequestrados por bandidos quando faziam uma matéria sobre o envolvimento entre um senador corrupto (Bruno Garcia) e uma quadrilha de traficantes de diamantes.

Levadas para uma casa isolada no meio do mato (a tal Serra das Almas), a repórter Samantha (Julia Stockler) e sua estagiária Luísa (Pally Siqueira) ficam à mercê dos impiedosos Gislano (Ravel Andrade) e Charles (David Santos), que trabalham de seguranças do tal senador ao mesmo em que cuidam de seus interesses escusos no mundo do crime. A casa é de um casal pacato, Ricardo (Jorge Neto) e Vera (Mari Oliveira), dominado pelos bandidos por um misto de amizade antiga e intimidação.

Jogo de contrastes

Num jogo de contrastes bem ao gosto do diretor Lírio Ferreira, contrapõem-se logo no início, em montagem paralela, duas sequências aparentemente disparatadas: Vera imersa na quietude da natureza, nadando num lago, e a fuga alucinada dos bandidos numa van roubada, com armas apontadas para as moças sequestradas. Logo esses dois mundos vão colidir, se interpenetrar e deixar estragos imprevisíveis.

Não convém antecipar aqui o complexo vaivém temporal em que se revelam pouco a pouco as relações promíscuas entre a política, o empresariado, a mídia e o crime, muito menos revelar a identidade de um personagem lacônico e misterioso (Vertin Moura), incluído por acaso entre os sequestrados.

Em vez disso, é impossível deixar de notar, numa visão de conjunto, que existem dois grupos distintos de personagens, o dos homens e o das mulheres, e que esses grupos perfazem movimentos opostos: entre os homens, a aparente fraternidade camarada do início acaba dando lugar à explosão de rancores e ressentimentos fermentados em silêncio; entre as mulheres, a rivalidade hostil e a troca de farpas são substituídas pela solidariedade e pela ação coletiva. São elas, ao que parece, a semente da mudança diante da machulência fratricida dos rapazes.

Fundo e figura

Como de costume, Lírio Ferreira exibe aqui sua habilidade em tecer uma relação orgânica entre os personagens e o ambiente, entre fundo e figura, e em dotar de uma vibração própria cada uma de suas criaturas, de tal maneira que tenham um comportamento imprevisível, mas no fim das contas lógico, ou no mínimo verossímil. A apoteose de violência das sequências finais poderia lembrar Tarantino, se não tivesse havido antes a construção paciente do contexto social e dramático que conduziria àquele desfecho.

Há, antes de tudo, o prazer evidente do cineasta em criar imagens belas e instigantes em si mesmas, como a da vaca que persegue Vera pelos campos na primeira sequência e que retorna no final como uma piada interna, um enigma, um piscar de olhos, talvez, para o cinema de Buñuel.

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