Cinema: Memórias do futuro

O povo krahôs prepara-se para uma grande manifestação contra o Bolsonaro enquanto uma jovem tem visões de ancestrais. Entre ficção e documento, A flor do buriti mostra o sagrado, valentia e dificuldades de manter uma cultura viva num mundo transformado

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Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do IMS

Pense num filme belo e envolvente, que combina documento e ficção, celebração e luta, memória e futuro. Assim é A flor do buriti, de Renée Nader Messora e João Salaviza, que entra em cartaz nesta quinta-feira nas melhores salas do ramo.

O que se vê ali é o dia a dia de uma aldeia krahô, com seus afazeres, seus rituais, suas conversas e brincadeiras, mas tudo isso permeado pelas ameaças de invasão de seu território e pelas lembranças de lutas passadas, incluindo o trauma do massacre perpetrado contra a etnia por fazendeiros em 1940.

A construção é aparentemente episódica, com sequências autônomas, mas dois eixos narrativos não permitem que se caia no mero registro etnográfico: os últimos dias da gravidez de uma jovem da aldeia e a preparação para uma grande manifestação de povos indígenas em Brasília, contra o governo Bolsonaro.

Essas duas circunstâncias, que conferem drama e suspense ao filme, se entrelaçam no fato de a grávida ser mulher do líder Hyjnõ (Francisco Hyjnõ Krahô), um dos enviados pela aldeia a Brasília.

Real e imaginário

Além disso, o que também ajuda a unificar o todo e lhe dar um sentido transcendente são os sonhos da pré-adolescente Jotát (Solane Tehtikwyj Krahô), que propiciam ao filme transitar entre o real e o imaginário, o presente e o passado.

Os sonhos e visões de Jotát são vistos pelos mais velhos como mensagens dos ancestrais para a continuação da luta em defesa do território contra as invasões dos cupen (brancos). A imagem primordial é a do encontro entre duas crianças indígenas e um boi extraviado – o primeiro sinal do cerco de pecuaristas à aldeia.

Expressivo como poucos, o rosto de Jotát, não por acaso retratado no cartaz do filme, é o lugar em que se cruzam todas as linhas dramáticas dessa fábula contemporânea.

Não se trata de uma visão passadista ou folclorizante: os indígenas do filme usam celulares, rifles, caminhões, e interagem cotidianamente com o mundo dos brancos. Num diálogo entre Jotát e sua mãe, a menina diz que quando pequena sempre comia toda caça que o pai trazia para casa. A mãe responde, rindo: “Hoje seu pai não caça mais. Virou caçador de supermercado”. Em outra passagem, homens adultos dizem às crianças que, no passado, eram obrigados a comer cocô de cachorro e pimenta em rituais de iniciação, e que agora essas práticas foram abandonadas.

Cultura viva

Manter vivas a cultura, a língua e a concepção ancestral do sagrado num mundo de tal maneira transformado é o desafio que os krahôs enfrentam com valentia e jogo de cintura em A flor do buriti, que contou com a participação de Francisco Hyjnõ Krahô, Ilda Patpro Krahô e Henrique Ihjãc Krahô na escrita do roteiro e tem os indígenas da aldeia em seus próprios papéis.

Faltou dizer que as imagens, filmadas em película de 16mm, são de uma beleza ímpar, sobretudo as cenas externas noturnas, com sua dança de fagulhas e estrelas. De certo modo, A flor do buriti está para os krahôs como A última floresta, de Luiz Bolognesi, está para os ianomâmis.

Embora muito diferentes entre si, são experiências ricas de parceria entre cineastas brancos e povos originários, em que aqueles colocam seu know-how e sua sensibilidade poética a serviço destes, de sua cultura e de seu imaginário. O que não impede – muito pelo contrário – o surgimento de toda uma geração de cineastas indígenas, como Morzaniel Ɨramari Yanomami, Isael Maxakali, Divino Tserewahú, Priscila Tapajowara e Bepkadjoiti Kayapó, entre muitos outros.

Ainda temos o amanhã

Outra maneira igualmente criativa e poderosa de encarar o passado vem da Itália, em Ainda temos o amanhã, de Paola Cortellesi, que também estreia nos cinemas nesta quinta, depois de se destacar na recente mostra de cinema italiano. É o maior sucesso de bilheteria dos últimos anos na Itália, com mais de cinco milhões de ingressos vendidos.

Em princípio, tudo nele evoca o neorrealismo de Rossellini e De Sica. Estamos em 1946, na Roma recém-saída da Segunda Guerra e do fascismo.

Imagens sóbrias em preto e branco mostram bairros sujos e semidestruídos, gente pobre “arrancando a vida com a mão”. Mas o foco agora é mais doméstico, concentrando-se na relação de uma mulher trabalhadora, Delia (a própria diretora, Paola Cortellesi), com o marido violento (Valerio Mastandrea) e a filha adolescente (Romana Maggiora Vergano).

Também o tom é outro. Logo na primeira cena, na cama, Delia acorda e dá bom-dia ao marido, que lhe responde com um tabefe na cara. O exagero é cômico, ma non troppo. Daí em diante o filme oscilará entre um realismo rigoroso, descrevendo os percalços de uma família proletária, e uma fantasia permeada de música e humor.

O mais interessante, a meu ver, é o deslocamento de perspectiva com relação aos filmes românticos convencionais sobre a condição da mulher. O espectador, habituado a obras que associam a felicidade feminina ao encontro do “grande amor”, é pego no contrapé no final empolgante, que conjuga destino individual e luta coletiva.

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