Cinema: Frankenstein e a busca da criatura perfeita

A hipérbole é a “assinatura” de Guillermo del Toro nesta releitura da obra clássica. Temática dos descaminhos da Ciência é substituída por uma obsessão paternal de criar um novo homem. Mas revela na tentativa de “ser edificante”: viva a liberdade e deixe que os outros vivam

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

Frankenstein, de Guillermo del Toro, que entra hoje em cartaz nos cinemas, foi recebido com aplausos entusiásticos, sobretudo do público jovem, na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, atualmente em curso.

É, inegavelmente, um grande espetáculo de som e imagem. Nele, para o bem ou para o mal, estão presentes as características mais marcantes do estilo hiperbólico de Del Toro: fantasia exacerbada, cenários suntuosos, personagens delirantes, iluminação expressionista, trilha sonora enfática e onipresente. O livro de Mary Shelley, do qual esta é a enésima versão cinematográfica, evidentemente se presta a isso. Em termos.

Tema da paternidade

Na releitura do cineasta mexicano, à diferença do livro, o brilhante cientista Victor Frankenstein (Oscar Isaac) teve sua formação marcada por um pai opressor e violento (Charles Dance) e essa, segundo o próprio Del Toro, é a chave para a sua obsessão: criar um novo homem, ser pai de uma criatura perfeita. Desse modo, o diretor desloca o tema principal do romance – o descaminho desastroso da ciência que desafia o Criador – para a questão da paternidade.

Outra mudança significativa é que Elizabeth (Mia Goth) agora não é a noiva de Victor e sim de seu irmão William (Felix Kammerer), que no livro era uma criança.

Mas o mais importante, a “assinatura” de Guillermo del Toro, é mesmo a hipérbole, em todos os campos. O monstro (Jacob Elordi) criado pelo Dr. Frankenstein aprende sozinho em poucos dias a ler fluentemente e tem a força descomunal de um super-homem. Os experimentos do cientista com partes do corpo humano são exibidos em detalhes sangrentos, assim como os ataques de lobos estraçalhando ovelhas e pessoas.

Há o tempo todo uma hipertrofia expositiva, sob música bombástica e ruídos amplificados, deixando pouco ou nenhum espaço para o silêncio, o pensamento e a própria imaginação do espectador. Tudo isso para que, afinal de contas, a Criatura manifeste, quase como uma moral da história, uma mensagem edificante: viva em liberdade e deixe que os outros vivam. Som e fúria significando pouco mais que nada.

Outros destaques da Mostra

A seguir, algumas breves indicações de outros filmes da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Bugonia, de Yorgos Lanthimos. Dois primos que parecem idiotas rurais saídos de um filme dos irmãos Coen sequestram a CEO de uma indústria de agrotóxicos (Emma Stone) que eles, alimentados por teorias da conspiração, julgam ser uma alienígena empenhada em destruir o planeta. Essa comédia de humor perverso tem um plot twist duplo carpado que desconcerta o espectador e transporta a trama literalmente para outro plano.

Jovens mães, de Jean-Pierre e Luc Dardenne. Num abrigo para mães adolescentes solteiras, numa cidade belga, as histórias de cinco delas se alternam e entrelaçam, revelando todo tipo de problema contemporâneo: famílias disfuncionais, desemprego, alcoolismo, machismo, racismo, vida nas ruas. Em seu estilo habitual, os Dardenne “grudam” em suas personagens e em seus dramas sem cair no sentimentalismo ou no discurso militante. Prêmios de roteiro e do júri ecumênico em Cannes.

Kontinental ’25, de Radu Jude. Em Cluj, capital da Transilvânia (que já foi da Hungria e hoje é da Romênia), uma oficial de justiça húngara (Eszter Tompa) passa a ser hostilizada por romenos xenófobos quando um mendigo se suicida depois de receber dela uma ordem de despejo. Com sua ironia habitual, plena de um humor cáustico, Jude trata de vários temas ao mesmo tempo: o nacionalismo xenófobo, a especulação imobiliária, as vidas à margem do neoliberalismo predatório.

Mirrors nº 3, de Christian Petzold. Numa estradinha do interior da Alemanha, uma mulher (Paula Beer) sobrevive a um grave acidente de carro e é acolhida por uma senhora da região (Barbara Auer). Forma-se então uma estranha relação entre as duas mulheres (e também com o marido e o filho da hospedeira), que só aos poucos se esclarece. Petzold exercita aqui mais uma vez sua habilidade em retratar relações humanas fragmentadas e transitórias.

90 decibéis, de Fellipe Barbosa. Uma jovem advogada (Benedita Casé) perde o emprego numa grande empresa por estar ficando surda e passa a se interessar pelos dramas de outras pessoas com deficiência (PCD). Emprega-se num órgão de apoio às PCD. Todos os funcionários ali têm alguma deficiência: auditiva, visual, motora, etc. Um dos grandes trunfos do filme é contar com atores que têm de fato as condições retratadas. Há também um interessante trabalho de som que busca expressar a “escuta subjetiva” da protagonista. O que enfraquece o conjunto é o tom ativista e edificante que o faz parecer ocasionalmente uma peça institucional, programática. Mas o saldo é positivo.

Clássicos restaurados

Entre os clássicos restaurados programados pela Mostra de São Paulo, pelo menos dois são fundamentais: Queen Kelly (1929), de Erich von Stroheim, e Aniki-Bóbó (1942), de Manoel de Oliveira. O primeiro, que foi tirado das mãos do diretor e mutilado pelos produtores, retorna numa versão que se pretende mais próxima das intenções originais de Stroheim. É um melodrama de época em que brilha intensamente Gloria Swanson, uma das grandes estrelas do cinema mudo – e, ironicamente, como produtora, uma das responsáveis pela mutilação da obra.

Aniki-Bóbó, primeiro longa-metragem de Manoel de Oliveira, conta a história de meninos pobres do Porto, em especial do tímido Carlitos (Horácio Silva), que rivaliza com o bad boy líder da turma na tentativa de conquistar a arredia Terezinha (Fernanda Matos). Uma crônica divertida e profundamente humana no modo como observa a relação das crianças com a cidade, suas ruas, sua estrada de ferro e seu rio.

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