Cinema: Em busca da juventude e de uma fita perdida

1991. Periferia de Contagem (MG). Em busca do primeiro beijo, um adolescente mente: possui em VHS o final mítico do desenho Caverna do Dragão. Com narração autoirônica, O último episódio mostra vidas de escassez, mas plenas de vitalidade, afeto e invenção

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Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS

A adolescência é um território de perigos e maravilhas, em que o sujeito (ou “a sujeita”) oscila entre se agarrar à infância ou adentrar de cabeça o mundo adulto. O último episódio, de Maurilio Martins, explora esse terreno movediço com rara sensibilidade, celebrando ao mesmo tempo o afeto e a amizade como antídotos a todo o mal com que nos ameaça o mundo.

O segredo do êxito artístico desse pequeno grande filme não é segredo nenhum: Maurilio – que faz parte do coletivo Filmes de Plástico, ao lado de André Novais Oliveira, Gabriel Martins e Thiago Macêdo Correia – partiu de suas próprias memórias de adolescência no Jardim Laguna, na periferia de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. É a voz em off dele próprio que narra, em primeira pessoa, a história de seu protagonista, Erik (Matheus Sampaio), de 13 anos.

Rock e desenho animado

Erik sintetiza em si a oscilação referida no início deste texto. Não tira por nada sua jaqueta do Guns N’ Roses, mas por baixo veste uma camiseta do He-Man. É aficionado pelo rock do R.E.M., mas também pelo desenho animado Caverna do dragão. Para conquistar a bela Sheila (Lara Silva), garota nova na escola, ele mente que tem a fita VHS do misterioso último episódio do desenho.

O filme começa justamente no momento crucial em que Erik espera Sheila em sua casa para lhe mostrar a suposta fita e conseguir o almejado primeiro beijo. Deixando essa cena em suspenso, a narrativa retrocede a seus antecedentes e depois avança aos seus desdobramentos. No processo, reforça-se a ideia de que aquele é um ritual de passagem, um desses momentos que definem a vida de uma pessoa.

Para ajudá-lo nessa travessia perigosa Erik conta com dois amigos inseparáveis, Cristiane (Tatiana Costa) e Cassinho (Daniel Victor), cada um deles também às voltas com suas carências e hesitações. Cristiane vive com a avó (Rejane Faria), eternamente à espera de um telefonema da mãe, que emigrou para os Estados Unidos. Cassinho, músico de talento, tenta escapar da carolice da mãe evangélica que o obriga a ir a todos os cultos.

Acrescente-se a isso que estamos no final do ano de 1991, às vésperas da Feira de Cultura do colégio público em que os três amigos têm que apresentar um trabalho musical. E basta de sinopse.

Narração autoirônica

O que torna O último episódio um filme arrebatador é o modo como equilibra drama, comédia e crônica social, lançando mão de recursos audiovisuais variados: vídeo caseiro, desenho animado, fotos, música, tudo confluindo para a criação de uma realidade palpável, pulsante, cheia de vida.

Falou-se com razão do paralelo com o primeiro Truffaut (Os incompreendidos) e pode-se pensar numa espécie de reciclagem mineira das comédias e séries americanas de “coming of age”. Pessoalmente, lembrei de filmes de Jorge Furtado protagonizados por adolescentes, como Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, sobretudo pela narração autoirônica em primeira pessoa e pelas brincadeiras com os recursos de montagem (o rewind da fita cassete, por exemplo).

Mas O último episódio transcende tudo isso, construindo e celebrando um mundo próprio, com uma voz única, um jeito pessoal e intransferível. Esse mundo está profundamente arraigado numa periferia proletária concreta (a mãe de Erik é remarcadora de supermercado, o pai de Cassinho é marceneiro, etc.) e ancorado no início dos anos 1990 (revistas Bizz e Níquel Náusea, figurinhas da Copa de 90, música ouvida em fitas cassete) –, entretanto essa aldeia de certo modo resume toda a humanidade, por obra e graça da arte.

Uma parte não negligenciável dessa arte é o uso criativo da trilha musical, que consegue a proeza de revitalizar a canção infantil “Doce mel”, megassucesso da Xuxa, recriada aqui em três versões diferentes, todas ótimas. Outro trunfo importante é mostrar cada personagem, por mais secundário que seja, como um ser multifacetado, que se mostra “em horinhas de descuido”. Um exemplo singelo e sutil: depois de mimeografar um cartaz, a severa diretora do colégio (Babi Amaral) dá uma cheirada furtiva no papel embebido em álcool.

A comunidade humana retratada no filme – com um aproveitamento sagaz de vídeos de família, com peladas de futebol e festas na rua – é um lugar “colorido, barulhento, misturado”, como diz o narrador a certa altura. Um território de escassez e dificuldades, mas pleno de vitalidade, afeto e invenção.

Domínio cinematográfico

O domínio cinematográfico de Maurilio Martins, isto é, sua habilidade em tirar o máximo proveito expressivo de suas ferramentas, é atestado pelo plano sequência em que se desenvolve o diálogo mais tenso do filme. Num travelling contínuo de recuo, vemos Erik e sua mãe caminhando por uma estrada à beira da mata. Ele a questiona sobre o pai, do qual sabe pouca coisa. Como ela está um pouco à sua frente, Erik não vê seu rosto, mas o espectador sim, o que intensifica o efeito dramático até que a mãe desabafa sua resposta. Só aí entra a música, um solo dilacerante de guitarra que “vaza” para a cena seguinte.

Faltou dizer que esse é o primeiro longa-metragem solo de Maurilio Martins, que antes codirigiu No coração do mundo, com Gabriel Martins, além de ter realizado vários curtas e produzido filmes dos parceiros. Em O último episódio, Gabriel (que não é seu parente) atua como professor de inglês e guitarrista da banda docente Dia Letivo. Outro cineasta da trupe da Filmes de Plástico, André Novais Oliveira, encarna o fotógrafo que ensina Erik a usar uma filmadora que era do seu pai. A câmera, aliás, é personagem central desse filme admirável que, entre outras coisas, é uma ode ao próprio cinema.

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