Cinema: Anatomia da devastação
Volta aos cinemas, em cópia restaurada, Iracema: uma transa amazônica (1975). Proibido pela ditadura, o filme acompanha um caminhoneiro ufanista e uma adolescente ribeirinha. No centro, progresso e destruição. Devastação humana, estupro da natureza, ou vice-versa
Publicado 24/07/2025 às 16:40

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Um filme que parece ainda mais vivo e pungente hoje do que quando foi realizado, há meio século. O prodígio, intitulado Iracema: uma transa amazônica (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, volta aos cinemas nesta quinta-feira, em cópia devidamente restaurada.
É uma obra extraordinária sob qualquer ângulo que se olhe. Misto de road movie, drama e documentário, narra duas trajetórias que se cruzam no norte selvagem do país: a do caminhoneiro Tião Brasil Grande (Paulo César Pereio) e a da adolescente pobre Iracema (Edna de Cássia).
Não será exagero dizer que nesse cruzamento de destinos se resume de modo cabal o processo de “espoliação da natureza e das gentes” que, nas palavras de Darcy Ribeiro, caracteriza nossa história. À devastação desenfreada da mata por madeireiros, mineradores e criadores de gado corresponde a degradação humana das populações da região, expressa no trabalho semiescravo, no etnocídio de povos indígenas, nas condições precárias de vida e na prostituição de meninas.
Documento e ficção
Uma dessas meninas é Iracema, adolescente ribeirinha descendente de indígenas, que vai a Belém participar da festa do Círio de Nazaré e acaba se prostituindo na periferia da cidade. É lá que a encontra casualmente Tião, caminhoneiro gaúcho cínico e oportunista, que combina um discurso ufanista típico da ditadura militar com o desejo explícito de “levar vantagem em tudo”. Transporta madeira, gado, minério – o que for mais lucrativo no momento. As estradas – símbolo do desenvolvimentismo verde-amarelo – são o seu elemento. É um culpado útil, como tantos que hoje alimentam os projetos da extrema direita pelo mundo.
A atualidade atordoante de Iracema reside não apenas em seus temas, mas no modo como articula o macro e o micro, o documentário e a ficção. O dispositivo narrativo básico é relativamente simples: Pereio, ator excepcional, interage com não-atores da região, servindo como elemento provocador – de conversas, de debates, de revelações. Entre uma conversa e outra, em suas viagens pelas estradas que rasgam a mata, vemos a destruição promovida pelas queimadas, tratores e motosserras.
A progressão do relato é descontínua, operando aos saltos. Entre uma cena e outra podem passar-se dias ou anos. Iracema e uma colega prostituta (Conceição Senna, mulher de Orlando Senna e uma das poucas atrizes profissionais do elenco) são levadas por um piloto (o próprio Orlando Senna) à fazenda de um “americano”. Não vemos o que se passa lá, mas apenas a volta das moças num caminhão pau-de-arara.
Num reencontro entre Tião e Iracema, num puteiro de beira de estrada, a garota está sem um dente e muito mais desbocada e despudorada. Intuímos que se passou um bom tempo, mas isso não é informado por outros meios (diálogo, letreiro). O caminhoneiro a chama de Jurema e a trata como um objeto desfrutável e humilhável.
O avesso do mito
Há uma espécie de eterno retorno a paisagens e situações semelhantes, como que a reafirmar a ideia central de progresso e destruição se alimentando reciprocamente. Devastação humana, estupro da natureza, ou vice-versa. O verdadeiro Bye bye Brasil. Não foi casual, certamente, a escolha do nome: Iracema, anagrama de América, a “virgem dos lábios de mel” da visão romântica de José de Alencar, mito fundador aqui revirado do avesso.
A ditadura militar proibiu durante cinco anos a exibição desse filme no país, inclusive em festivais, alegando que era uma produção estrangeira (tem coprodução da emissora alemã ZDF) que trazia uma visão negativa do país. No Festival de Brasília de 1980, realizado a duras penas devido ao boicote do governo federal, Iracema ganhou os prêmios de melhor filme, atriz (Edna de Cássia), montagem e atriz coadjuvante (Conceição Senna). Os diretores viajaram de São Paulo a Brasília de carro, pois o festival não bancou as passagens aéreas, e Edna nem compareceu, porque não ganhou passagem.
Edna, aliás, não quis seguir carreira de atriz. Formou-se professora e hoje, aos 65 anos, está aposentada. Na época das filmagens, tinha 15 anos e precisou de autorização dos pais e do juizado de menores para atuar. Sua presença na tela é única em mais de um sentido: nenhuma atriz profissional conseguiria expressar o frescor e a contundência de suas falas e gestos. Em seu rosto moreno, é um Brasil profundo, belo e sofrido, que mostra sua cara.
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