Cinema: A poética dos escombros
Novo filme de Jia Zhangke, o grande cineasta chinês, aborda a relação entre uma jovem da classe trabalhadora e um “malandro” ao longo dos anos. E, assim, retrata a vertiginosa história da China nas últimas décadas (entre escombros e reconstrução) e a solidão na sociedade de massas
Publicado 26/06/2025 às 16:41

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
O chinês Jia Zhangke é um dos grandes autores do cinema do século 21, e Levados pelas marés, que entra em cartaz nesta quinta, é seu filme mais ambicioso e experimental. Para conhecer esse artista ímpar e sua relação com a história e a cultura de seu país, nada melhor que o documentário Jia Zhangke, um homem de Fenyang (2014), de Walter Salles, que também está chegando aos cinemas brasileiros. São duas obras essenciais e complementares.
Levados pelas marés (2024) segue uma estrutura sui generis para cobrir a história chinesa do último quarto de século e, ao mesmo tempo, contar uma história de amor, ou de desamor, entre um homem e uma mulher.
O épico e o lírico
Articulando pequenos trechos de seus próprios filmes, como Prazeres desconhecidos (2002), Em busca da vida (2006) e Amor até as cinzas (2018), entre outros, e cenas meio documentais, meio fictícias filmadas sem um propósito definido ao longo das décadas, o cineasta conseguiu a proeza de construir uma narrativa lógica que une o épico, o dramático e o lírico.
A mulher que atravessa esse painel heterogêneo é Qiaoqiao (Tao Zhao, esposa do diretor desde 2012), uma moça da classe trabalhadora que se vira como cantora, dançarina, modelo de uma loja de roupas, caixa de supermercado etc. O homem que ela ama e tenta seguir é o safo Guo Bin (Zhubin Li), envolvido alternadamente com clubes noturnos, construção civil, empréstimos e todo tipo de atividade limítrofe com a picaretagem e o crime.
Em torno desses dois personagens que às vezes se tocam e às vezes seguem caminhos distintos vemos se desenrolar a vertiginosa história da China nas últimas décadas: a violenta abertura para a economia de mercado e para a cultura ocidental, a decadência da indústria tradicional, a construção da gigantesca hidrelétrica das Três Gargantas, o deslocamento forçado de milhões de pessoas, a criminalidade crescente entre os jovens, o prodigioso avanço tecnológico, o trauma da pandemia de covid, a febre do TikTok.
Como costuma acontecer no cinema do diretor, o ambiente matiza e confere densidade à ação dos personagens. Durante toda a primeira metade do filme prevalecem os cenários de ruínas: fábricas abandonadas, entulhos de demolição, galpões vazios, bairros desolados. Dali se passa para a majestosa paisagem das montanhas à margem do rio Yangtze, onde a construção da hidrelétrica das Três Gargantas submergirá cidades inteiras. Acompanhamos o desmanche de uma delas, Fengjie, e o êxodo de grande parte de sua população.
Por fim, em anos recentes, a vida altamente tecnológica e informatizada numa cidade moderna – a mesma Datong que, no início do filme, parecia um cenário devastado. Uma das cenas mais marcantes dessa parte é aquela em que Qiaoqiao se defronta num shopping com um robô e este tenta comicamente interagir com ela. Nem parece que estamos na mesma cidade onde, no início do filme, mulheres trabalhadoras se reuniam numa cozinha para cantar trechos de óperas populares e hinos patrióticos.
Solidão na sociedade de massas
Segundo consta, Levados pelas marés não foi concebido lá atrás com um propósito definido. Foi a partir de fragmentos filmados ao longo do tempo com objetivos diversos, e muitas vezes sem objetivo consciente, que Jia Zhangke costurou sua narrativa – comprovando, pela enésima vez, que a montagem é o procedimento cinematográfico por excelência.
Essa poética dos escombros de certo modo realiza no plano formal aquilo que a China vivenciou nas últimas décadas: implosão e reconstrução. Ao mesmo tempo, ao incorporar em sua própria matéria o acaso e os imprevistos, confere respiração, vitalidade e frescor ao drama dos protagonistas. Fundo e figura se espelham mutuamente.
Poucos artistas conseguem, como Jia Zhangke, retratar a solidão irredutível do indivíduo em meio à sociedade massificada de nossa época. O ápice disso, a meu ver, é a sublime sequência final, que começa com um silencioso reencontro fortuito e termina com uma corrida coletiva noturna sob a neve pelas ruas de Datong. Um detalhe que, hipnotizados pela arte de Jia Zhangke, muitos espectadores talvez não percebam: a protagonista Qiaoqiao não pronuncia uma única palavra ao longo de todo o filme.
Um homem de Fenyang
O documentário de Walter Salles sobre Jia Zhangke desvela lindamente o quanto o cinema do diretor chinês está enraizado em sua experiência de vida e em sua relação complexa e dolorosa com seu país.
Numa visita ao bairro onde passou a infância e a adolescência, em Fenyang, Jia comenta as mudanças sofridas pelo local e, ao mesmo tempo, relembra sua biografia familiar, como o fato de o pai, professor, ter vivido sempre sob vigilância política, uma vez que na Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung toda atividade intelectual era suspeita e a cultura ocidental era vista como decadente e perniciosa.
O autoritarismo estatal foi responsável também pela proibição dos primeiros filmes do diretor, como Artesão pickpocket (1997) e Plataforma (2000), antes que ele ganhasse renome internacional. Vemos no documentário trechos desses primeiros filmes, que registram a vida à margem de um punhado de jovens – muitos deles amigos de bairro do diretor –, entremeados com as caminhadas de Jia pela cidade, palestras a estudantes, depoimentos de colaboradores (diretor de fotografia, montador, ator).
Conduzidas por Walter Salles em conjunto com o crítico francês Jean-Michel Frodon, também co-roteirista, essas múltiplas conversas configuram um guia precioso para o conhecimento do cinema de Jia Zhangke e de sua relação com esse gigante enigmático e desconcertante que é a China contemporânea.
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