Assim o capitalismo depilou barbas e axilas

Há cem anos, a lâmina tornou-se símbolo de pureza e elegância. Barba foi apontada como sinal de incivilização. Forjou-se o ideal erótico de corpo feminino sem pelos. Hoje, capitaliza-se a diversidade. Um exemplo sutil de como a lógica da mercadoria “cria” identidades…

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Quando a fotografia surgiu no século XIX, a maioria dos homens aparecia retratada com barbas. Por que, na virada para o século XX, as fotografias passam a registrar cada vez menos homens barbeados? Pode-se dizer que o rosto masculino foi o primeiro campo de batalha para a colonização capitalista do corpo humano.

Antes, a barba era símbolo de sabedoria, virilidade e autoridade. Mas em 1903, a Gillette lançou sua lâmina e, com ela, um novo ideal estético de rosto barbeado. As campanhas dos anos seguintes começaram a associar a barba ao atraso, ao desleixo, ao “não civilizado”, ao proletário. Em 1915, o próprio exército estadunidense distribuiu lâminas aos soldados da Primeira Guerra Mundial, associando o rosto barbeado à disciplina militar, à higiene e à masculinidade moderna.

Quando a guerra terminou, o hábito estava consolidado. Fazer a barba virou um ritual diário, e o homem barbeado, um símbolo do cidadão produtivo, higiênico e respeitável. A publicidade havia disciplinado o corpo através do consumo.

Mas o lucro tinha limites. Se os homens já compravam lâminas por aceitarem essa nova necessidade, faltava acrescentar ao mercado a outra metade da humanidade: as mulheres. Em 1915, a Gillette lançou a “Milady Décolletée”, a primeira lâmina feminina, e iniciou uma das transformações culturais mais profundas do século. O corpo feminino passou a ser reconfigurado pela lógica do mercado.

As revistas femininas como Harper’s Bazaar, Ladies’ Home Journal e McCall’s começaram a publicar anúncios ligando os pelos femininos à “falta de cuidado pessoal” e à “vergonha social”. A publicidade apresentava a depilação como libertação: a mulher moderna, elegante e desejável era aquela que não tinha pelos. Em 1922, um artigo da Harper’s Bazaar dizia explicitamente que “os pelos visíveis nas axilas e pernas devem ser removidos”. Não se tratava mais apenas de higiene, mas de status.

O sucesso foi total. A vergonha foi naturalizada e o novo padrão de beleza se impôs. O corte de barbas masculino e a depilação feminina tornaram-se não uma escolha, mas uma exigência cultural.

A partir daí, o avanço sobre os pelos femininos não parou. A mesma indústria cosmética que patrocinava revistas masculinas como a Playboy e a Penthouse seguiu desmatando os pelos femininos como o agronegócio avança sobre as florestas em nome da expansão da fronteira agrícola. O “desmatamento estético” acompanhou a lógica colonial: o corpo feminino e o rosto masculino se tornaram territórios de conquista, de exploração e de extração de riqueza. Mas, acima de tudo, de domesticação simbólica, no processo de fazer com que a ideologia dominante pareça como natural.

No caso feminino, o padrão da mulher totalmente depilada se consolidou nas décadas de 1990 e 2000. Isso representou um duplo movimento simbólico: infantilizou o corpo feminino, remetendo à pele sem pelos de uma criança, e ao mesmo tempo erotizou essa aparência. O resultado é um corpo sem idade e sem resistência, perfeito para o consumo, dócil e controlável. Enquanto isso, o mercado segmentava seus produtos. Às mulheres pobres, ofereceu a lâmina descartável pendurada no chuveiro. Às ricas, as soluções definitivas: clareamento, depilação a laser e bronzeamento artificial.

No caso masculino, a indústria percebeu que, por motivos biológicos e culturais, seria difícil impor a depilação total. Assim, reinventou a barba como novo nicho de consumo. Se não dava para eliminar o pelo, que se vendesse o cuidado dele. Não basta mais usar o xampu e o condicionador apenas para o cabelo. Agora, quem decide manter a barba precisa de xampu próprio, condicionador, modelador, balm e óleo brilhoso.

O rosto masculino foi recodificado. Primeiro, como símbolo de disciplina do rosto barbeado. Depois, como fetiche da barba cultivada. Assim, a publicidade domesticou até a rebeldia: o homem de barba deixou de ser o intelectual contestador e virou o consumidor de cosméticos. O mesmo sistema que depilou as mulheres poliu os homens.

O capitalismo aprendeu ainda a lucrar com a ideia de diversidade. Transformou causas em campanhas publicitárias, pintou vitrines com o arco-íris e chamou isso de inclusão. Mas o objetivo continuou o mesmo: vender identidade como produto. Afinal, a diversidade agora fala em orgulho do cabelo crespo, ondulado ou liso; valoriza o preto, o loiro e o ruivo, mas também autoriza a ser azul ou cor de rosa. Até xampus para carecas podem ser oferecidos desde que devidamente convincentes.

Marx chamou isso de fetichismo da mercadoria. Ou seja, a lâmina deixou de ser ferramenta para se tornar símbolo de pureza, elegância e disciplina corporal. O tipo de cabelo ou a ausência dele virou identidade. A lógica da mercadoria penetrou o corpo, redefinindo o que é limpo, belo e aceitável. Como Adorno e Horkheimer mostraram: a indústria cultural não emancipa, padroniza. Como Benjamin observou: a mercadoria não vende apenas objetos, mas modos de perceber o mundo. Olha que nem sou tão fã da Escola de Frankfurt, mas nisso eles acertaram e muito.

Hoje, a economia da estética consome bilhões. O mercado global de cosméticos e higiene pessoal ultrapassa 600 bilhões de dólares por ano. Boa parte desse valor vem de produtos criados para tratar “problemas” inventados. A soma mensal de gastos com cosméticos, xampus, loções, sabonetes, perfumes e procedimentos revela uma verdade incômoda: trabalhamos para sustentar um sistema que cria as próprias carências que ele promete resolver.

Talvez depois desse texto, enquanto faz a barba ou se depila, venha-lhe a reflexão se realmente vale a pena aceitar tudo o que é dito como natural.

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