Ângela Ro Ro: Poeta das loucuras ternas
Falecida nesta segunda, era compositora e intérprete da própria dor. Trazia na voz rouca o blues delirante dos bêbados e o desespero das paixões intensas. Apesar das agruras, cultivava profundo amor pela vida, e pediu coragem. Íntegra, se mostrou intensa e vulnerável como criança doce
Publicado 12/09/2025 às 17:59 - Atualizado 12/09/2025 às 19:08

Por Ricardo Queiroz
Pensei muito antes de escrever este texto sobre Ângela Ro Ro. Mais do que admirar seu trabalho, tive o privilégio de usá-lo como trilha de fundo em um momento importante da vida. Às favas com qualquer sigileza.
Ângela Ro Ro atravessou a virada dos anos 70 para 80 com um disco inaugural que ousava ser íntimo e arriscado. Autora em um universo coalhado de intérpretes, vinha da ressaca da ditadura e do desbunde. Não trazia flores no cabelo nem amargura: oferecia uma voz rouca e desarmada, que misturava blues, chanson e bolero em plena cena musical brasileira. Era um gesto de exposição e coragem — cantar sem disfarces, confessional, ironizar e sofrer no mesmo verso.
Chegou a esse álbum aos 30 anos, trazendo a bagagem do Baixo Leblon, de Londres e do tardio flower power setentista brasileiro. A dor tradicional da voz feminina, agora rouca, se amalgamava a um sentimento bluesy que transformava suas canções em confissões urgentes, quase relatos de bar. Essa síntese deu ao disco um caráter exemplar: moderno e clássico ao mesmo tempo.
O álbum é também marcado pelos arranjos precisos de Antônio Adolfo, cujo piano confere ao disco um ar de sofisticação e intimidade. A voz singular de Ângela, rouca e flexível, se apoia nesse tecido harmônico lançando-se e encontrando sustentação. Essa combinação faz do LP de 1979 uma obra de impacto imediato na cena musical brasileira, capaz de dialogar com o público do rádio e com ouvintes mais atentos à ousadia estética.
Foi nesse terreno de riscos que a encontrei, em 1985, num sebo de São Paulo. Eu tinha 19 anos. O LP, lançado seis anos antes, repousava na prateleira, entre tantos. O momento de levar aquele vinil para casa tinha a delícia própria das descobertas juvenis, quando cada disco encontrado empoeirado parecia uma revelação. Eu já conhecia a voz de Ângela do rádio, mas ouvir um álbum inteiro era outra experiência, peculiar naquele tempo: a fruição sem pressa, lado A e lado B, mergulho total na obra. Quando rolou o play, o quarto se encheu de uma voz que parecia rir da dor ao mesmo tempo que a carregava. “Amor, meu grande amor” já rolava no rádio desde o lançamento, mas foi o restante do disco que me marcou: letras que pareciam escritas na madrugada, acordes de piano confidentes.
Naquele momento, percebi que a música podia ser também risco e desabrigo. Que podia ensinar sobre amor sem a proteção das metáforas. Ângela cantava desafiando e pedindo colo ao mesmo tempo; era a coragem e a vulnerabilidade reunidas. O disco de 1979 se tornou parte da minha formação sentimental porque me mostrou que a canção não precisava ser suave para ser verdadeira — podia ser áspera, ferida, excessiva.
Naquele LP havia ainda uma canção que me dizia muito, sobretudo no deleite das descobertas e das dores dos primeiros amores. Era a última faixa, “Abre o coração”. Não fez sucesso, mas guardava uma frase pujante: “Se a covardia bate Vai bem fundo, não desate Esse nó no peito a natureza fez”.
A vida para mim começava, e aquelas palavras soavam como guia e desafio, revelando um horizonte de coragem, entrega e risco.
Em 1988 encontrei Ângela Ro Ro ao vivo. A apresentação foi numa boate da Rua Rui Barbosa, madrugada adentro. Saí da faculdade e, já pelas duas da manhã, pude vê-la cantar “Fogueira”, “Vou lá no Fundo”, “Amor, meu Grande Amor”, “Escândalo”. Voz e piano, intimista, escrachada, destilando uma ironia mergulhada em tristeza que eu conhecia bem.
Antes da despedida, é preciso dizer que Ângela Ro Ro deixou um legado raro: ensinou que a canção podia ser ao mesmo tempo escracho e ternura, farsa e verdade, coragem e fragilidade. Sua obra continua íntegra, apesar dos altos e baixos da vida. Ela não teve medo de se mostrar inteira, com suas arestas expostas. Cada música guarda essa lição de entrega sem cálculo, de viver no limite.
Ângela sofreu bastante: drogas, bebidas, as dores do mundo, abandonos, o desejo de reconhecimento, as escolhas difíceis. Nos deixou ontem (segunda), aos 75 anos. Quero agradecê-la por ter me dado luz do jeito doído, belo e torto que ela tão bem sabia oferecer. Às vezes, uma pessoa precisa partir para abrir espaço a algo que sua própria canção já anunciava naquele verso: “Não penso ter a vida inteira Pra guiar meu coração Sei que a vida é passageira E o amor que eu tenho não!”
Adeus, Ângela!
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras