A travessia entre palmas e silêncios de Gilberto Gil
Ele é um dos poucos artistas que traduz um Brasil possível e nunca realizado. Sua última turnê é a afirmação do tempo, sem dramas. E vê-lo no palco, trilhando o contemporâneo e a ancestral, não é nostalgia, mas a confirmação de que a música vale a pena
Publicado 30/04/2025 às 18:50

Fui ver Gil no Allianz Parque ontem (sábado) à noite. Sabia que seria importante, mas não queria romantizar. A idade dele, a minha, o nome da turnê — “Tempo Rei” — tudo isso pesava. E tinha um receio quieto também: o de ver mais uma voz que eu acompanhei a vida inteira fraquejar no palco. Fui com esse sentimento dividido. Queria apenas assistir a um show, mas é difícil ver Gil ao vivo e não pensar no país, na história, no tempo que passou, em tudo o que envelheceu com a gente.
Vi uma plateia misturada: jovens, famílias, senhores, gente sozinha. Gente que sabia por que estava ali, e mesmo se não soubesse, se encontrou rapidamente.Gil começou o show com a delicadeza de quem sabe o que carrega, profissional, atento. Não se impunha. Conduzia. A banda, com os filhos, netos e músicos como Mestrinho e Marlon Sette, segurava os arranjos com precisão, sem tirar o pé do chão. A sanfona e os sopros, as cordas davam textura, mas sem excessos. O conjunto fazia o som andar.
Vieram “Expresso 2222”, “Back in Bahia”, “Se Eu Quiser Falar com Deus”, “Cálice”, “Toda Menina Baiana”, “Umbanda Um”, “Refavela”. Algumas causaram silêncio, outras, palmas e vozes. Não era um show explosivo. Era mais como uma travessia. E quem estava lá parecia entender isso. O público acompanhava com afeto, atenção. Sem ansiedade. Sem euforia fabricada.
Gil é um dos poucos artistas que traduzem não só uma época, mas um país possível, e nunca realizado. A Tropicália ainda vive em sua música, mas menos performática, mais madura. Está ali o gesto de quem sempre misturou o popular daqui e de outras partes do mundo, o ancestral e o contemporâneo. Ele é herança africana, tradição baiana, transitoriedade urbana. Mas também é o homem que tocou no rádio da cozinha, no toca-fitas do carro, nos CDs riscados das estantes. Gil está no que o Brasil tem de mais coletivo e mais íntimo.
A turnê se chama “Tempo Rei” e faz sentido. É uma despedida, sim, longe de ser negação, é uma afirmação do tempo. Sem dramas. Gil transforma o envelhecimento em parte da obra. Tem menos voz, mas mais silêncio onde é preciso. Ainda busca. Ainda cria. Ainda se interessa. A guitarra não é só um gesto: é parte do trabalho. Ele não faz cover de si mesmo. Reorganiza o repertório com atenção. E isso é bonito de ver.
O que mais me tocou foi perceber que ele ainda está presente. Não no sentido de performance, mas de atenção. A troca com os músicos, o jeito como escuta a banda, como dá espaço como reconhece o espaço de cada um. Não é vaidade. É o músico simples.
Saí do show com a sensação de que algo se fechava, mas sem pesar. Aos 58 anos, revi cenas, discos, frases que me acompanharam por décadas. Muita coisa passou. Mas algumas ficam. E quando aparecem, ajudam a atravessar as limitações do tempo. Gil faz parte disso. Ver esse show não foi nostalgia. Foi um tipo de confirmação: a música ainda vale. Ainda importa. Ainda diz.
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