A insustentável leveza das narrativas

O termo difundiu-se, em especial com o avanço das redes sociais. Mas o que é exatamente uma narrativa? O que distingue o conceito de discurso ou ideologia, por exemplo? E qual sua complexa relação com as fake news e os sentimentos persecutórios?

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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS). Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

Tudo é narrativa: os contos de Grimm, um romance, o terraplanismo, as notícias de jornal, a locução de uma partida de futebol, uma fala política, uma peça publicitária. Em sua discrepância e omnipresença a ideia de narrativa desfruta da insustentável leveza de Ser. Ela não se confunde com a noção de discurso, explorada pelos linguistas e semiólogos, é imprecisa e insatisfatória; entretanto, o seu uso generalizado lhe dá uma aparente feição de verdade. A rigor a indefinição conceitual lhe garante um êxito inconteste no vocabulário do dia a dia; particularmente com o advento das redes sociais, nas quais se alimenta uma ilusão coletiva, qualquer coisa dita com convicção e estridência torna-se convincente. Uma narrativa é uma série de eventos que constitui uma história, diz-se em inglês: storytelling. Seu intuito é contar “tudo que aconteceu”, isto é, a sequência do que é narrado em um relato. Sua verdade reside em ser coerente, a razão de sua existência não repousa no que lhe é alheio. Ela difere assim do conceito de ideologia, ele exige um necessário contraponto com o real, a questão da falsidade é sempre algo presente. É neste sentido que se dizia que a ideologia burguesa ou a religião eram uma “falsa consciência” do mundo. Elas certamente mobilizavam as pessoas, davam sentido a suas vidas, entretanto, eram parciais (o conhecimento ideológico vem marcado pela parcialidade). Subjaz à noção de ideologia o traço da “distorção” ou de incompletude, os pontos de seu relato podem ser contrastados por algo que se encontra fora de sua enunciação.

Uma narrativa não se define em função da realidade, ela é o relato, basta-se a si mesma. O que se passa à sua volta é impertinente, importa sua essência, aquilo que é narrado. Dois exemplos “extremos” (se é possível falar em extremos no universo dos relatos) são sugestivos. O primeiro refere-se ao terraplanismo, ele afirma: nossos sentidos indicam que a Terra é plana; não enxergamos a curvatura do horizonte mesmo quando estamos em um avião; rios e lagos estão nivelados, deveriam ter uma curvatura se a Terra fosse esférica. O planeta é um disco redondo e achatado no qual o polo Norte encontra-se no centro e a borda é formada por gelo, a Antártica. O segundo implica no negacionismo da corrida espacial à lua. Ele se sustenta a partir de um indício específico: a fotografia da bandeira americana na superfície lunar. Nela vê-se uma pequena parte dobrada, o que é percebido como algo “tremulante”; ora, não há vento na lua, portanto, a foto foi feita em algum lugar da Terra. Nenhuma dessas ponderações podem ser contraditas pelo princípio de realidade, ou seja, quando confrontadas ao discurso científico. Ele nos assegura que a Terra é redonda, há fotos e filmes feitos no espaço sobre o planeta azul, e que existem provas efetivas que demonstram a presença do homem na lua. Entretanto, tais evidências são exteriores à coerência interna do que é afirmado, elas em nada lhes importunam. Pode-se ainda dizer que a própria ciência é também uma narrativa, ela se situaria assim ao lado de outras, sem, porém, contradizê-las.

Mas a coerência estrutural das “estórias” parece não ser suficiente para que elas se confirmem enquanto tal. Há ruídos. Mesmo as narrativas conspiratórias são coerentes, como se diz, são “teorias” que se organizam através de uma explicação racional das forças ocultas que perpetuam determinado ato. Neste sentido, os exemplos que utilizei não prescindem inteiramente da utilização de certos elementos da realidade. Afirmar que “não conseguimos ver a curvatura da Terra” ou “não há vento na lua” implica em buscar por uma materialidade do real que possa justificar tais afirmações. Isso não seria contraditório com a própria noção de narrativa? Creio que a contradição se resolve quando se analisa o uso dessas histórias, em particular considerando o caráter acusatório que ele encerra. Como mostram os antropólogos em relação à feitiçaria, ela é uma crença partilhada por todos os membros de uma comunidade. Porém, ninguém se identifica como sendo feiticeiro. A “maldade” existe, mas é praticada pelos outros. As narrativas se alimentam da acusação da falsidade das outras. Como na feitiçaria, ao situar fora de si a inverdade, a crença expele os ruídos de sua contradição; ao acusar os adversários de distorcer a realidade, sua dimensão interna permanece ilesa, inalterada. A virtude de existir ancora-se assim em sua leveza imaculada.


[1] Embora tenha sido reescrito, esse artigo toma como referência outro texto publicado no Suplemento Pernambuco, nº 194, abril 2022.

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4 comentários para "A insustentável leveza das narrativas"

  1. GARRU JOÃO LUIZ GARRUCINO disse:

    Relação das Pesquisas: Enganam e ocultam verdades do Deus e Jesus reais para reptilianos vampirizarem todos como gados e pode piorar se não acordarem
    https://www.linkedin.com/pulse/rela%25C3%25A7%25C3%25A3o-das-pesquisas-enganam-e-ocultam-verdades-do-deus-garrucino/?published=t

  2. GARRU JOÃO LUIZ GARRUCINO disse:

    Completando…Li na biografia do Jung que em 1936, bem antes da segunda guerra, a pedido de universidade americana, ele analisou povo alemão e concluiu que nazistas estavam incorporados por seres malignos da entidade querendo vingança e destruição e no ódio, irracionalidade, insanidade, animalidade, etc., o que acabou acontecendo depois na segunda guerra mas destruindo não apenas o resto da Europa mas eles mesmo…Se continuar crescendo extrema direita vão repetir segunda guerra mas agora global…Sò falta apertarem botões das bombas nucleares…E aposto extrema direita é mais um bode fedendo na sala fabricado pela CIA e capitalismo canibal global em volta ao feudalismo medieval…Ao faroeste…Faz anos alertamos esquerdas, democratas, áreas acadêmicas, intelectuais, escritores, jornalistas, sindicalistas, artistas, etc., os mesmos setores alvos como na Alemanha, que vacilam e não acordam quanto a enfrentarem as causas deste nazismo no Brasil que são os evangélicos ou religiosos de um modo geral todos conservadores e reacionários inclusive muita gente de suposta esquerda ainda, com cabresto de igreja e sem noção do que seja democracia…Divulgamos pesquisas na relação publicada no linkedin mas até agora notamos ninguém quer pensar fora da caixa de crenças ou ideologias, e do velho paradigma materialista newtoniano das áreas acadêmicas e dos diversos setores controlados pelo capitalismo como imprensa, militares, religiões, mercado, universidades, etc., E nação e democracia afundam…Depois vai ser tarde para reclamar o leite derramado…Tudo vai colapsar pela teoria do caos, e tudo caminha para o caos, sublevação, anarquia, convusão, subversão, ou esgotamento…Esgotamento das ideologias todas ou do reino do capitalismo mas das religiões também…O que sustenta capitalismo são religiões ou ideologias todas com a mesma prática e ação desde os chefes tribais judaícos copiados pelos imperadores e Maomé, depois pelos papas e reis protestantes, por stalin, hitler e pela ditadura global do capitalismo atual…Como disse neste texto tudo resume-se numa guerra de narrativas e já ouvi isto até de um espírito este ano…O terrorismo das narrativas enquanto planeta e humanidade afundam ou esfarelam….Índios tinham mais democracia e liberdade do que temos hoje com supostas democracias desde que chegaram os colonizadores brancos e europeus com suas ideologias, armas e bíblias…Vou postar em seguida link da relação das pesquisas no linkedin e posto separado pois tem site que censura links. Não vejo luz no final do túnel escuro pois depende do livre arbítrio da maioria e vemos que no Brasil maioria afunda para as trevas do feudalismo e querem ditadura como no oriente médio ou repetindo idade média…Credo…

  3. GARRU JOÃO LUIZ GARRUCINO disse:

    Suástica Yankee e Brasil
    Vejo todos descabelados tentando convencer extrema direita bolsonaristas e evangélicos mas deviam ouvir este vídeo suástica yankee com relatos de ex membro da supremacia branca ou neonazista sobre como funciona a cabeça destes radicais em geral presos nos traumas e medos da infância devido educação castradora, repressiva e autoritária, acostumados a não pensarem e serem dirigidos por alguma figura forte, castradora, repressiva e autoritária do mesmo modo em que foram educados…
    Sendo preciso ouvir e conversar bastante com estas pessoas para perceber buracos ou vazios emocionais devido educação castradora, abusiva e repressiva na infância, pois nem adianta tentar convencer com argumentos racionais ou lógicos das ciências, história e filosofia, ou tentar convencer que vacinas funcionam e que a Terra é redonda.
    Ouçam a parte que o jovem advogado que pesquisou dogmatismo a fundo fala sobre esta questão do fanatismo dogmático a partir de 1,13 minutos mais ou menos e vale a pena ouvir.
    Tertúlia Conscienciologia 5962 – Trilha Megapensênica do Dogmatismo (Megapensenologia)
    https://www.youtube.com/watch?v=46uPecjluj0&t=2168s
    https://www.youtube.com/watch?v=46uPecjluj0&t=2168s
    Professor Alexandre Balthazar da ASSINVÉXIS, da Conscienciologia. Suástica Yankee: memórias de um ex-skinhead neonazista | Resenha Invexológica
    https://www.youtube.com/watch?v=ptLiA6dP_h8
    xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

  4. GARRU JOÃO LUIZ GARRUCINO disse:

    Faltou completar com visão de grave quadro de saúde mental nos casos de radicais em geral ou extremistas inclusive neonazistas, supremacia branca, etc., e extrema direita no Brasil…Vou tentar postar depois link de vídeo de ex membro neonazista explicando como estas pessoais devido educação castradora, repressiva e abusiva na infância nem conseguem processar informações das ciências ou de que a Terra é redonda ou lei da gravidade e se agarram a narrativas de ódio para se justificarem em suas insanidades…O nazismo foi bem isto…E o Eduardo Moreira entrevisou psicologo acho americano também explicando mentalidade dos radicais em geral ou dos insanos…

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