Violência no campo: dois anos de aumento recorde
Ano passado só não foi pior que em 2023. Relatório monitora ação da milícia rural Invasão Zero, que promove ataques violentos em sete estados. Cresce o uso de agrotóxicos como “arma química”. Indígenas foram o grupo com mais vítimas fatais
Publicado 23/04/2025 às 16:16

Por Igor Ojeda, na Repórter Brasil
O Brasil registrou 2.185 conflitos no campo em 2024, o segundo maior índice desde 1985, segundo relatório divulgado nesta quarta-feira (23) pela CPT (Comissão Pastoral da Terra).
Os dados integram o “Caderno Conflitos no Campo 2024”. A publicação, que já teve 38 edições, é um dos mais importantes mapeamentos da violência e da resistência no meio rural brasileiro.
O ano passado só não foi mais violento do que o de 2023, quando ocorreram 2.250 casos. Na última década, o aumento de conflitos é de 57%.
As ameaças de morte também aumentaram, segundo a CPT, passando de 219 em 2023 para 272 em 2024 (alta de 24%). Foi o maior patamar dos últimos dez anos.
O número de tentativas de assassinato, por sua vez, chegou a 103, aumento de 43% em comparação com o ano anterior, quando ocorreram 72 casos. Em 79% dessas tentativas, as vítimas foram indígenas. Em 52% das ocorrências, foram integrantes de povos originários de Mato Grosso do Sul.
Já o total de assassinatos caiu nos últimos dois anos e atingiu o menor patamar da década: foram 13 ocorrências em 2024. Em 2022 foram registradas 47 mortes e, em 2023, 31 ocorrências.
O relatório destaca que a maior parte das mortes do ano passado ocorreu em áreas de expansão do agronegócio. As principais vítimas foram indígenas, enquanto os principais responsáveis foram fazendeiros.
“Há uma disputa entre as comunidades, que lutam pela permanência em seus territórios, e o capital, que busca se apropriar deles e está representado pelo agronegócio, pela mineração e por empresas de energia e de petróleo”, explica Cecília Gomes, da Coordenação Nacional da CPT.

Indígenas e trabalhadores rurais são as maiores vítimas
Os oito assassinatos em áreas de expansão do agronegócio – chamadas de fronteiras agrícolas – aconteceram na Amazônia Legal e nas regiões conhecidas como Amacro e Matopiba. O Amacro abrange um território situado na divisa entre o Amazonas, Acre e Rondônia. Já o Matopiba se estende por zonas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
“Onde mais se mata povos e comunidades tradicionais é nas fronteiras agrícolas”, analisa Gomes, destacando que o agronegócio cobiça as áreas de preservação, porque ali ainda existem bens naturais. “Se tem bens naturais, é porque tem uma proteção, muitas vezes propiciada pela permanência desses povos e comunidades tradicionais”, analisa Gomes.
Das 13 vítimas de assassinato em 2024, 5 eram indígenas, seguidos por sem-terra (3), assentados (2), quilombola (1), pequeno proprietário (1) e posseiro (1). Segundo a CPT, forças policiais foram executoras ou atuaram em apoio aos executores em quatro dos casos, todos eles sob responsabilidade de fazendeiros.

A indígena Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, foi uma das 13 vítimas. Liderança do povo Pataxó Hã Hã Hãe, ela foi assassinada em 21 de janeiro em uma ação do movimento Invasão Zero, convocada por produtores rurais para expulsar indígenas que ocupavam uma fazenda no município de Potiraguá (BA).
Os sem-terra Edson Silva e Silva e Adão Rodrigues de Sousa foram assassinados em outubro em uma operação policial na Fazenda Mutamba, em Marabá. A polícia argumentou que teria sido recebida a tiros quando chegou ao local para cumprir mandados de prisão preventiva e de busca e apreensão contra ocupantes da fazenda, que pertence à família Mutran.
Segundo os integrantes da ocupação, no entanto, eles dormiam quando foram surpreendidos às 4h da madrugada pelos gritos de “perdeu, perdeu” dos policiais, seguidos de rajadas de tiros.
Em abril, Hariel Paliano, indígena do povo Xokleng, foi encontrado morto às margens da rodovia que liga os municípios de Doutor Pedrinho e Itaiópolis, em Santa Catarina. O corpo estava com sinais de espancamento e queimaduras.
O líder quilombola Raimundo Bertoldo atuava contra loteamentos ilegais e invasões no quilombo Santa Cruz quando foi morto, em 27 de maio, em Capinzal do Norte (MA).
Em abril, Ademi Ferreira Ribeiro, liderança do Assentamento Dorothy Stang, foi assassinado na zona rural de Rondon do Pará. Em Nova Olinda (TO), em junho, outro líder de um assentamento, Cícero Rodrigues de Lima, foi executado.
No mesmo mês, um brigadista do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) foi morto por um tiro na porta de casa, na ilha do Bananal, em Formoso do Araguaia (TO). Conhecido como Neném, ele morava na Aldeia Imotxi 2, onde vivem famílias indígenas do povo Javaé.
Em setembro, o jovem Guarani Kaiowá Neri Ramos foi morto a tiros durante uma ação da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul no município de Antônio João. Os policiais cumpriam uma decisão judicial que determinava o acesso dos proprietários da Fazenda Barra à sede do imóvel, ocupado pelos indígenas.
Em Gameleiras (MG), Zaqueu Fernandes Balieiro, integrante do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e candidato a vereador, foi encontrado dentro do próprio carro com marcas de tiros, em 30 de setembro.
Uma semana depois, João Teixeira de Souza foi assassinado em Nova Mamoré (RO). Ele estava sendo ameaçado por invasores do seu lote na ocupação da Gleba Seringal Belmont, segundo moradores da área.
No município de Amapá, no estado de mesmo nome, o trabalhador rural Antônio Candeia Oliveira foi executado a tiros em razão de uma discussão a respeito da posse de um pedaço de terra.
Já em dezembro, Argemiro da Silva Escalante foi assassinado a facadas na Aldeia Pirakuá, município de Bela Vista (MS). Segundo a Aty Guasu – Grande Assembleia do povo Guarani Kaiowá, o crime teria sido motivado por intolerância religiosa. A vítima era “guardião da sabedoria ancestral, um protetor de seu povo e de suas tradições sagradas”, segundo a entidade.
Invasão Zero fez ataques em 7 estados e se movimenta no Congresso
Na edição divulgada nesta quarta-feira, o “Caderno Conflitos no Campo 2024” apresenta um levantamento sobre o movimento Invasão Zero, grupo com atuação semelhante à de milícias armadas, de acordo com movimentos sociais, e que vem realizando diversas ações ilegais e violentas de “reintegração de posse” em áreas ocupadas por indígenas e trabalhadores sem-terra.
Segundo o relatório da CPT, em 2024 ocorreram ataques violentos comprovados e/ou assumidos como do Invasão Zero nos estados de Goiás, Maranhão, Bahia, Espírito Santo, Paraná, Pará e Pernambuco. Além disso, aconteceram ações suspeitas de terem sido articuladas pelo movimento em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Ceará e Santa Catarina.
A atuação do grupo na Câmara dos Deputados também foi monitorada. De acordo com o levantamento, 44% dos projetos de lei ligados ao Invasão Zero apresentados são da região Centro-Oeste, seguida por Sudeste (22%), Norte (14%), Nordeste (12%) e Sul (8%).
De acordo com a CPT, a maior parte das propostas é de autoria dos deputados federais de Mato Grosso do Sul Marcos Polon (PL) e Rodolfo Nogueira (PL). Nogueira, autointitulado “o terror do MST”, foi eleito em março deste ano para a presidência da Comissão de Agricultura da Câmara.
Disputas por terra representam 80% dos conflitos no campo
Os dados do Caderno Conflitos no Campo 2024 mostram ainda que, dos 2.185 conflitos no campo, 1.768 envolveram disputas por terra, o maior número da última década.
Entre as vítimas, 29% eram indígenas, seguidos por posseiros (25%), quilombolas (13%) e sem-terra (11%). Os fazendeiros aparecem como principais responsáveis das disputas por terra, com participação em 44% dos casos. Empresários (15%) e governo federal (8%) figuram em segundo e terceiro, respectivamente.
Os conflitos pela água, por sua vez, somaram 266 ocorrências, aumento de 16% em comparação com o ano anterior. Novamente, os indígenas são os maiores atingidos (27%), com quilombolas (22%), ribeirinhos (11%) e posseiros (10%) vindo logo atrás. Entre os agentes causadores dos conflitos, destacam-se empresários (24%) e fazendeiros (22%).
Por fim foram registrados 151 casos de trabalho escravo, com 1.622 trabalhadores rurais resgatados. Os números representam queda de 40% nas ocorrências e de 39% no número de resgatados, em relação a 2023.
O Sudeste foi a região com o maior número de resgatados, com 938 pessoas (principalmente nas lavouras de café e cebola). Em seguida, vem o Centro-Oeste, com 234 (destaque para pecuária e cana-de-açúcar), Nordeste, com 207 (produção de etanol e mineração), Norte, com 132 (desmatamento ilegal e garimpo) e Sul, com 111 (cultivo de maçã e lavoura de uva).
Agrotóxico como ‘arma química’

Com relação à forma como ocorrem os conflitos, chamou atenção da CPT a violência por contaminação de agrotóxico. Foram 276 ocorrências em 2024, contra 32 em 2023, envolvendo tanto conflitos pela terra quanto por água. Essa alta é explicada pela realização de um levantamento sistematizado sobre o uso indiscriminado de pesticidas no Maranhão – com 228 casos – e pela subnotificação nos demais estados.
Conforme noticiado pela Repórter Brasil em janeiro deste ano, comunidades rurais maranhenses afirmam que a pulverização de agrotóxicos por drones está sendo utilizada como instrumento de intimidação e de expulsão de agricultores familiares.
Do total de casos de contaminação, 214 casos (94%) correspondem a esse tipo de aplicação. As denúncias, porém, não são investigadas, segundo advogados que acompanham os casos.
Cecília Gomes, da CPT, concorda que a contaminação por pesticidas é utilizada como uma das ferramentas “mais cruéis” de expulsão de comunidades do campo. “É um banho de agrotóxico, lançado por um drone que você não sabe de onde vem nem para onde vai, mas que que destrói vidas, comunidades, povos, territórios”, diz.
“É uma forma silenciosa de violência e expulsão, que chamamos de arma química. É uma maneira de expulsar sem ter um mandante, sem ter algo ou alguém que você possa responsabilizar”, completa.
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