Vida precária: Para uma teoria do “corre”

Plataformização do trabalho trouxe outra temporalidade: a “escala” 24 horas/7 dias por semana. Sem estabilidade, ela requer engajamento ativo. A competição é o imperativo. E qualquer “vaga arrombada” deve ser aceita, pois, se não fizer, outro fará

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Por Douglas Barros, no Blog da Boitempo

Amanhã (10/12), Douglas Barros lançará seu novo livro, O que é identitarismo?, em São Paulo (SP). O evento contará com uma conversa com Barros — também autor do texto que se segue –, Deivison Faustino e Letícia Parks. Douglas também escreve para Outras Palavras, leia aqui seus textos.

LOCAL: Livraria Megafauna (Edifício Copan – Av. Ipiranga, nº 200, Loja 53, São Paulo/SP)
QUANDO: Terça-feira (10/12), às 19h

Pressupostos da questão

A flexibilização, causada pela desestruturação do mundo do trabalho, eliminou qualquer esperança em relação às aspirações de que ele enquanto ideologia mantinha. A formação, necessária à modernidade clássica, foi substituída pela especialização. Não há mais trabalho, mas trabalhos que no geral servem tão só à reprodução do trabalhador como mão de obra precarizada, flexível e potencialmente consumidora. O centro dessa crise, que permanece como horizonte, se desenvolve a partir daquilo que Marx chamava de valor.

Para entender esse processo é necessário levar em consideração que o capital reduz toda a atividade humana à sua necessidade de crescimento. No âmbito social, de acordo com um imperativo que lhe é intrínseco, o capital, impelido a buscar mais dinheiro numa caçada apaixonada, abstrai tudo que é produzido na vida social ao valor que só pode se realizar na troca. Assim, o processo de quantificação que lhe é necessário tende a uma abstração da realidade concreta, reduzindo tudo a um denominador comum passível de ser trocado. Tal fato transforma o dinheiro em poder social cuja capacidade acumulativa é infinita; o problema é que os recursos naturais são finitos e escassos e como o capital precisa do movimento de acumulação temos aqui uma contradição destrutiva que hoje mostra sua face com a crise climática.

A abstração do valor, entretanto, se efetiva primeiro na produção do trabalho onde é operado em potentia. Esse processo busca realizar o capital através de uma diferença quantitativa entre o dinheiro que se lança inicialmente na produção e o dinheiro que dela se retira quando a mercadoria é realizada. Daí a questão: se o valor já se opera na relação de dispêndio da força de trabalho humana, o que ocorre quando essa força se torna dispensável? Eis o cerne da crise: com a alta produtividade marcada pelo processo de automação há um curto-circuito aqui.

Dois dedinhos sobre o valor

Para seguir o fio da meada precisamos levar em consideração que a manutenção do valor só é possível com meios de trabalhos realizados em dois movimentos: a) um trabalho morto denominado por uma abstração quantitativa (trabalho humano indiferenciado) cuja expressão ganha forma concretamente em edifícios, fábricas, estradas etc. (o valor como potentia realizada, passada, morta); e b) um trabalho concreto realizado pelo dispêndio da força de trabalho numa temporalidade cronométrica (potentia). É justamente porque o trabalho em Marx é pensado com esses dois movimentos – como concreto e abstrato (valor) – que podemos compreender a emergência da lógica do capital e a organização industrial em torno de um processo de quantificação no qual o dinheiro lançado no início do processo se torna mais dinheiro com a expropriação do tempo gasto pela força de trabalho.

Isso significa que o valor precisa se valorizar numa recomposição de crescimento que leva ao reinvestimento do capital obtido. A lógica do capital responde à caça de lucro radicalmente diferenciada de outras épocas: reinveste-se na produção de mercadorias com intuito de que o dinheiro investido se torne mais dinheiro e, portanto, capital. (O esquema fundamental pensado por Marx: D-M-D’). Para o velho Barba, muito além da obtenção do lucro por meio dos jogos usurários, como ocorre, p. ex., no comércio, no contrabando, no tráfico ou na agiotagem (D-D’); a transformação de uma quantia inicial de valor numa quantia superior, como condição de possibilidade da lógica do capital, só pode ocorrer através de uma mercadoria especial que cria o valor: a faculdade do trabalho que por meio do tempo socialmente gasto, e não pago, realiza o mais-valor.

Mas como se realiza o valor? Marx considera que o fundamento do valor reside no trabalho que produz a mercadoria – no entanto, o que constitui sua forma não é o tempo gasto de maneira individual, mas o tempo socialmente necessário. Então, a força de trabalho social, numa escala cronológica, transforma matéria morta em matéria viva e o valor se impõe como potentia passível de se realizar no ato da troca. O valor constitui a substância da mercadoria. Por isso, “a forma simples de valor da mercadoria é também a forma-mercadoria elementar do produto do trabalho, coincidindo, portanto, o desenvolvimento da forma-mercadoria (impressa pelo trabalho) com o desenvolvimento da forma valor[1]”. Eis o valor expresso como condição de possibilidade da realização da mercadoria. Ele está lá, media e tem que ser realizado no mercado.

Esse processo de abstração (entendida como redução a um denominador comum que possa se realizar como troca), efetivado pelo valor, reduz os inumeráveis trabalhos, dispendidos na produção da mercadoria, equiparando-o a outra mercadoria (o dinheiro). Em outras palavras, o valor reduz tudo a uma forma aparente em que se expressa a manifestação geral do trabalho abstrato “simples geleia de trabalho humano indiferenciado, isto é, de dispêndio de força de trabalho humana, sem consideração pela forma de seu dispêndio”[2]. Há uma constatação no mínimo instigante que Marx faz e que foi de certa maneira desprezada: “na circulação do capital esse valor se revela subitamente uma substância que tem um desenvolvimento, um movimento próprio e da qual a mercadoria e o dinheiro são meras formas”[3].

O valor, portanto, engloba toda a atividade social tornando-se uma força atratora que reduz todas as nossas ações ao seu imperativo. Para se manter, necessita se tornar uma progressão quantitativa num ritmo cada vez mais acelerado tornando toda relação social dependente de sua contínua expansão. Se, como diria Goethe, “uma atividade sem limites acaba sempre em bancarrota!”, a grande questão é que se a força produtiva do trabalho aumenta, mais produtos podem ser fabricados reduzindo o tempo de trabalho socialmente necessário e, portanto, reduzindo também a grandeza do valor. Eis um dos modos de explicar a crise: a crise atual pode ser vista como uma crise de valorização do valor.

A crise

Se Marx estiver certo (risos), o problema na reprodução do valor se inicia com a alta produtividade tecnológica: uma relação em escala global que passa a eliminar o dispêndio do trabalho vivo restando impossibilitado de ser reabsorvido. A década de 1970 marca um ponto de inflexão: alterando a paisagem industrial das economias desenvolvidas, as novas tecnologias redefinem a organização da vida social. Esses anos se tornaram o lugar de entrecruzamento da revolução tecnológica informacional, da transformação do ideário econômico via reestruturação produtiva e do surgimento de um discurso que orienta uma nova cosmovisão social.

Esse processo é imposto por uma crise de valorização do valor operacionalizada pela diminuição do dispêndio da força de trabalho humana. Ela forçou a ruptura com os vínculos empregatícios e o exército de reserva – trabalhadores desempregados – se torna um exército de inabsorvíveis já que o dispêndio da força de trabalho humano por unidade de mercadoria é substituído pela contínua automação que cada vez mais gera uma diminuição na grandeza do valor.

A aceleração dos fluxos de mercadoria, o domínio radical do tempo do indivíduo e a transformação na produção, com espaços transnacionalizados, levaram à implosão da estabilização do mundo do trabalho fordista. Agora, se a lógica do capital se baseia na valorização do valor, ou isso que vivemos é uma crise permanente do capital ou já é uma nova lógica. Eu, sinceramente, entendo que carecemos de uma investigação radical desse processo sem ceder ao dogmatismo[4]. Importa, porém, observar como esse evento cataclísmico no capital foi paralelo à determinação das identidades como problema e preocupação da gestão estatal.

 E o que tudo isso tem a ver com o “corre”? O velho mundo do trabalho estável é substituído pela flexibilização como mandamento social, o currículo se torna o lugar de destino – fortalecê-lo é constantemente correr atrás da adaptabilidade ao mercado – e eis que a especialização em qualquer coisa se torna horizonte comum. Os empregos informais vão tomando um espaço relevante na economia e uma nova temporalidade de exploração se constitui: com radical aumento da produtividade via tecnologia e reestruturação da produção em escala global, saímos do tempo cronológico fordista para um tempo presente 24 horas/7 dias por semana. Daí que as tecnologias informacionais se tornam fundamentais à dinâmica de um tempo social que precisa ser integrado ao lucro. A conexão faz parte da nova lógica.

Com o radical desenvolvimento da tecnologia da informação homóloga à informalização dos empregos, a hierarquização das probabilidades via algoritmos faz com que os smartphones objetifiquem seus usuários ao reduzi-los a um sistema organizado por um fator de incerteza calculado pelos cliques em busca de lucro. “Se você não paga, você é efetivamente a mercadoria”. A necessidade do engajamento de cada um é fundamental para o sucesso das operações organizadas pelo algoritmo que, com as plataformas, passam a orientar o admirável novo mundo do trabalho.[5] Nesse engajamento 24/7 não há mais lugar à camaradagem, somos só visitantes do lugar de trabalho e podemos ser dispensados ou nos dispensar a qualquer momento.

Se o que resta é tão somente as especializações; se já não temos tempo para contemplar os locais que cruzamos; se toda nossa observação é dirigida por algoritmos de afinidades eletivas; então, também se pode concluir que a aceleração produtiva tecnológica não levou à abundância de tempo livre, mas aos grilhões da hiperconectividade que sempre demandam nosso engajamento. Isso revela que, em termos absolutos, a necessidade do trabalho – precarizado, sobretudo – aumentou. Nessa distopia, a velha busca por uma comunidade de identificações comuns foi capturada e redefinida como reserva de mercado. Diante da liquidez da realidade contemporânea, há uma tendência crescente à busca por um grupo de pertencimento.

E é esse um dos motivos pelos quais a identidade se coloca como uma forma preponderante no pós-fordismo: o laço de solidariedade, organizado pela experiência da partilha do ambiente social e do espaço de trabalho, foi substituído, na dinâmica capitalista atual, pela narrativa visualmente constituída das redes sociais. Eis, o casamento perfeito de uma tendência: a cultura jurídico-democrática nascida da racionalidade neoliberal, que precisou reduzir a potencialidade das identidades aos critérios identificáveis pelos aparatos de controle, teve como resultado a redução da experiência comunitária à identificação identitária.

Assim, nossa relação passou a ser inscrita numa temporalidade singular de difusão instantânea de nossas práticas via internet, para lembrar Paul Virilio. E, agora, com a interconexão virtual, paradoxalmente não há mais obstáculos físicos que nos separem, nem relações espaciais que nos unam: a mediação social é feita pela virtualidade da Internet que impede o encontro. Por isso, a crise do valor, fundamentalmente uma crise do trabalho produtivo, revolucionou a vida em sociedade. Para sobreviver, tornou-se necessário se adaptar e seguir a concorrência de um mercado de trabalho que se precariza de maneira vertiginosa.

O mandamento da concorrência é internalizado subjetivamente e a especialização é só o sinônimo de uma busca para encontrar um trabalho fodido. Somos trabalhadores full time empreendendo (marmitas, hamburgueres, caronas, motocicletas, divãs, conselhos [coachs], militância, aulas etc.) ou tendo que aderir às famosas vagas arrombadas que se tornam regra e não exceção. Acontece que essa necessidade de adaptação foi paralela ao desmonte do mundo do trabalho, ocasionando também a dominação do tempo individual na sua integralidade que levou o capital à colonização de todos os momentos de nossa vida. Daí, portanto, o corre.

O que talvez significa o corre?

O “corre” pode significar, entre outras coisas, manter-se pronto para ocupar a oportunidade que se abre – pois, se não fizer, outro fará. Nascido num solo marcado pela competitividade como anima do mundo social, é a verdadeira face da ideologia empreendedora que requer nosso engajamento ativo na plataformização do trabalho que constitui escalas extenuantes 24 horas nos 7 dias da semana. Evidentemente, o corre não é só um ato subjetivo do cachorro-louco que sobe numa moto para “ganhar a vida”, mas uma imposição social de um mundo de trabalho em descalabro. Necessário considerar que os que sofrem do “corre” constituem parte fundamental da classe trabalhadora atual.

A flexibilização, necessária à manutenção do lucro, impôs a quebra do regime trabalhista tradicional. O corre assim se determina pela falta de estabilidade ocupando a integralidade do tempo disponivel do indivíduo: estamos gastando hoje; preocupados com o amanhã; e fazendo os cálculos possíveis para o próximo semestre. Com a precarização do trabalho, ele tem para o indivíduo a única finalidade de reprodução de si como mão de obra consumidora e precarizada. Por isso, “fazer o corre” se tornou uma necessidade ante relações corroídas pelo desemprego estrutural e pelos trabalhos precários.        

O trabalho precário, garantido pelas vagas arrombadas, se tornou um destino social, alcançando inclusive as classes intermediárias – que perdem o prestígio que acreditavam ter e se veem obrigadas a fazer também o corre (professores, sociólogos, assistentes sociais, psicólogos, enfim, todos os cães de guarda, para lembrar Nizan, estão cercados pela crise do trabalho: “saiam agora com as mãos para cima!”). 

No corre, a gestão e a logística se tornam algo inerente à vida individual. As escolas substituem história, filosofia e geografia por cursos empreendedores. Saber a entrada e a saída dos dividendos, organizar as projeções para o ano e ficar à mercê dos humores do mercado, além de se impor como horizonte individual, são também as causas para as novas patologias. Dentre elas, a ansiedade e o burnout vividos no Brasil em escala pandêmica.

Para que tudo se desse numa aparente calmaria, entretanto, não bastava a imposição de classe feita pelos patrões. Era necessária a mobilização de afetos em torno da forma identificatória de grupo (identitarismo) e o engajamento ativo da esquerda governista empenhada na saúde financeira do Estado.

O saldo sistêmico da crise no mundo do trabalho foi a depreciação salarial que levou à explosão das horas trabalhadas em empregos fragmentados, vagas arrombadas e horários flexíveis que normalizaram a escala 6×1 (ou em muitos casos 7×0). Isso se reflete num dado curioso que devíamos ter como horizonte de qualquer crítica relevante: temos atualmente 39,968 milhões de trabalhadores na informalidade contra 47,49 milhões em empregos com carteira assinada, 7,6 milhões estão desempregados e 3,2 milhões de pessoas desistiram de procurar emprego devido ao “desalento”. Vemos que, em números absolutos, o emprego formal quase equipara-se ao informal; somado este último ao número de desempregados e de desistentes, temos então um quadro da precarização do trabalho. A pergunta é: que desalento é esse?

            Confio que você saiba a resposta!


Notas:[

1] Karl Marx, O capital. Crítica da economia política, Livro 1: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, p.84)

[2] Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p.116

[3] Ibidem.

[4] Quem irá colocar esse problema de maneira interessante será Mackenzie Wark.

[5] BUCCI, E. Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e orienta o mundo digital). Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

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