Um raio x das cidades do agronegócio
Estudo investiga o processo de colonização do Centro-Oeste para além da violência e das relações de poder – mas sem ignorá-las. Desconstrói a dicotomia entre “litoral civilizado” e “sertão desabitado” na região que mais atrai brasileiros diante da desmetropolização de hoje
Publicado 15/10/2025 às 17:49 - Atualizado 15/10/2025 às 17:50

Por Camila Nunes Duarte Silveira, em A Terra é Redonda
1.
Cidades do agronegócio: Estado, território e identidade no Brasil, de Rafael Abreu, tem origem em sua tese de doutorado, defendida em agosto de 2015, intitulada “A boa sociedade: história e interpretação sobre o processo de colonização no norte de Mato Grosso durante a Ditadura Militar”. Na obra, o autor analisa a dinâmica da ocupação e colonização da região mato-grossense, especialmente entre as décadas de 1970 e 1980, no contexto do regime militar. No período histórico mencionado, a colonização desse território foi conduzida por uma empresa de origem paranaense, a Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná, que atuou na região sob a liderança de Enio Pipino.
O contexto do livro é conduzido pela história da formação da cidade de Sinop, nome do município derivado das letras iniciais da referida empresa. Sinop está situada a 500 km ao norte da capital Cuiabá, e faz parte da constituição da chamada Gleba Celeste, composta ainda pelos municípios de Vera, Cláudia e Santa Carmem. Enquanto essas três cidades se constituíram muito dependentes da extração de recursos madeireiros, Sinop foi beneficiada pelo traçado estratégico da BR-163 e apresenta, hoje, um parque agroindustrial mais bem estruturado.
A obra está dividida em 04 partes, cada uma composta por 05 capítulos bem conectados entre si. Diante da impossibilidade de falar sobre cada um deles, isto é, dos 20 capítulos, foram destacados os pontos considerados cruciais. Contudo, os leitores terão a oportunidade de observar outras questões que não serão aqui explicitadas.
2.
A Parte I é intitulada “A Conquista: Imaginário e Intervenções”, e seus capítulos foram construídos em torno da dicotomia “sertão-litoral”. Abreu realiza uma revisão histórico-crítica a respeito do processo de urbanização do estado de Mato Grosso – sobretudo a partir de 1964 – e da divisão do Estado, em 1979. Tal processo, segundo o autor, se deve a uma redefinição no campo, mediante a modernização da agricultura e a urbanização, compreendidos como processos complementares.
Duas questões nos chamam a atenção nos capítulos que compõem a primeira parte: 1) a dicotomia “sertão-litoral”, com destaque sobre a importância da generalização presente no imaginário brasileiro, que institui a dualidade litoral e sertão, e a consequente precedência e dominação do primeiro sobre o segundo, sendo o litoral relacionado à “civilização” e o segundo, o sertão, a lugar distante, desabitado. Questão que nasce no contexto Colonial e que perdura entre as elites políticas do Estado no período imperial, em que o “sertão” está relacionado a um sentido negativo; contudo, essa região é passível de desenvolver-se economicamente. Para o autor, a capacidade de articulação entre uma imagem do “sertão”, desprovido de valores “civilizados”, e o necessário exercício do controle da “mentalidade litorânea” sobre a outra parte do território guiou os pressupostos político-institucionais no período imperial e tal marca parece se fortalecer no simbolismo sobre a “conquista do Oeste” que, gradualmente, se torna uma realidade na ocupação desses espaços. A relação de dominação que busca demonstrar, ao levantar essa dicotomia brasileira, na qual o “sertão” é visto, muitas vezes, como um “grande vazio”, permeia os processos posteriores de ocupação nesses contextos territoriais, dos quais o Mato Grosso é um exemplo importante.
O segundo ponto de destaque trata da abordagem a respeito do movimento reorganizador do estado de Mato Grosso, com o “protagonismo” dos migrantes “sulistas”, os quais ocuparam posições de destaque que, na maior parte das vezes, populações oriundas do Nordeste, por exemplo, não conseguiram alcançar.
3.
Na parte II, “Colonização: Controle e Imposição”, é realizada uma importante revisão teórica a respeito dos processos de colonização no território: colonizadoras, colonizadores e colonos são os sujeitos que compõem o plano de fundo de um processo histórico, político e social que constituem a territorialização no norte de Mato Grosso. Para tanto, o autor afirma que seu objetivo na segunda parte do livro é demonstrar de que modo a tradição de se compreender a expansão pelo interior do Brasil por meio da linguagem do Estado territorialista influenciou as pesquisas e interpretações sobre o deslocamento, pelo interior do país, do “capitalismo autoritário”. Esse olhar, por sua vez, teria, consequentemente, condicionado as produções acadêmicas mais localizadas, ou seja, sobre casos específicos de colonização e povoamento no norte mato-grossense, principalmente a partir da década de 1970.
Rafael Abreu afirma que para pensarmos a respeito de um modelo interpretativo da colonização, quando nos concentramos, especificamente, nos estudos sobre a colonização em Mato Grosso, esses trabalhos, geralmente, possuem em comum uma ideia fixa, a de que os agentes da colonização — os motivadores: Estados e empresas — atuaram no sentido de colonizar não apenas a terra, o território, mas, também, as mentes daqueles que migraram para a região.
Assim, o autor tenta compreender quais foram os aspectos principais que orientaram esses estudos e abordagens os quais entendem que a colonização teria sido realizada por meio da utilização de determinados mecanismos, como o “controle do espaço” e “dos homens” e a imposição de uma forma e de uma mentalidade específica para levar adiante o processo de configuração social na chamada fronteira brasileira.
Nessa parte, o autor apresenta um denso diálogo com autores que escreveram sobre o processo de colonização no Centro-Oeste a respeito da relação estabelecida entre territorialismo e capitalismo no percurso da expansão territorial, realizado com a anuência do Estado brasileiro, e sobre as relações entre a colonização — e o colonizador — e os valores circunscritos na concepção de trabalho e de empreendedorismo, que envolveram os colonos dessas regiões. Rafael Abreu nos convida a vislumbrar outros fatores, além dos apresentados pelos estudos tradicionais que caracterizaram a colonização do território. Discussões que serão mais bem detalhadas nas outras duas partes da obra.
4.
“Colonização: territorialização e identidade regional” é o título que conduz a parte terceira parte do livro, na qual as discussões se dão em torno dos conceitos de ideal “civilizador” e “missão civilizatória”. O autor apresenta o caso do Henry Ford, no final dos anos 1930, como um exemplo que pode dialogar com as discussões apresentadas na parte II. As estratégias colonizadoras de Ford para explorar a Amazônia, consistiam em diretrizes para uma conduta exemplar, aliadas à necessidade de “moldar” os trabalhadores brasileiros. A tentativa frustrada do empresário de organizar a cidade de “Fordlândia”, na Amazônia, aos moldes norte-americanos, é um bom exemplo para discutir a relativização dos conceitos “imposição e controle”.
Rafael Abreu reforça os argumentos apresentados de que a colonização, especialmente no Mato Grosso, diferentemente das análises tradicionais, que focam nas ações do Estado ou do capital, é articulada por outros elementos, principalmente a participação ativa de grupos que tinham suas próprias visões de mundo, línguas e formas de organizar a sociedade, as quais influenciaram na forma como o território foi ocupado e como a sociedade do norte mato-grossense foi se formando. A territorialização, portanto, não pode ser entendida apenas como resultado de políticas oficiais ou interesses econômicos. Ela envolveu, também, processos sociais e culturais criados no cotidiano das populações locais e migrantes. Isso fica explícito a partir dos relatos etnográficos do autor, que morou em Sinop no tempo em que construiu a sua pesquisa e pôde conversar com os moradores da cidade, ouvir as suas histórias e visitar os arquivos das empresas colonizadoras. Dizeres, relatos e documentos que são apresentados ao longo dos capítulos e na parte IV do livro.
5.
“A formação da boa sociedade: o processo de colonização em Sinop”, é a quarta e última parte do livro. Nela, a cidade de Sinop entra em cena. Percebe-se, mais claramente, que a discussão teórica é envolvida pelas experiências cotidianas do pesquisador com a comunidade local. Aqui, o autor propõe apresentar uma terceira possibilidade de interpretação dos processos colonizadores. Ao analisar a história da colonização sinopense, Abreu prioriza um olhar que trata relações essenciais para se compreender de que modo essa sociedade foi configurada. Reitera que isso não significa ignorar por completo o tema das relações de poder, mas ressaltar a importância dos diálogos, as congruências, as aproximações, os conflitos e distanciamentos entre aquilo que ele chama de os três eixos da colonização: a Colonizadora (e o colonizador), o Estado (com suas agências e agentes) e parte dos migrantes (principalmente aqueles que constroem e/ou se vinculam, posteriormente, ao ideal do pioneirismo).
Nesse sentido, Rafael Abreu discute como o projeto de urbanização da colonizadora Sinop foi complementado pela ação de outros grupos envolvidos no processo, no sentido de realizar esse planejamento. Ainda destaca a importância de se compreender quais aspectos ajudaram a configurar a cidade de Sinop: os sucessos e fracassos do colonizador; a relação entre o rural e o urbano; o diálogo estabelecido com os agentes do Estado; e os eventos que foram protagonizados por uma parcela dos migrantes. Com essa reconstrução, o principal objetivo da colonizadora, ao tratar de um desejo compartilhado pela modernização, foi o de oferecer um conceito capaz de resumir os resultados do processo, portanto, aquele que trata da formação da “boa sociedade”.
A “boa sociedade” baseia-se no desejo coletivo por modernização, isto é, desenvolvimento, progresso, cidade planejada. Tal desejo é resultado do diálogo entre os três eixos mencionados, isto é, a Colonizadora (e o colonizador), o Estado (com suas agências e agentes) e parte dos migrantes. Esses eixos mantêm entre si acordos implícitos que, de algum modo, acolhem os valores e objetivos definidos pela colonizadora, e que legitimam certos pressupostos: a exemplo de que o progresso é bom, que a propriedade privada deve ser protegida, que a cidade precisa ser planejada. O autor também evidencia que, por trás desse desejo de modernização, houve exclusão, imposição de valores e violência social.
Ao “margear as conclusões”, é possível compreendermos que o autor pretendeu explorar a sua pesquisa sob um viés diferente do já abordado nos clássicos estudos sobre os processos de colonização. Ao tentar desvendar a formação da sociedade Sinopense, ele não priorizou uma abordagem que denunciasse diretamente as violências sofridas pelos grupos excluídos, ou as formas como eles tiveram que se adaptar aos novos contextos da colonização. Não que ele tenha ignorado essas violências, mas escolheu olhar mais profundamente para o que sustenta o sistema e não apenas para seus efeitos imediatos. Em vez de apresentar análises que se limitavam apenas ao papel do Estado ou das instituições capitalistas, Abreu nos convida a observar também as ideias, mentalidades, valores culturais e sociais que moldaram a forma como a ocupação do Mato Grosso aconteceu. Além de mostrar os conflitos, ele também se propôs a mostrar como esses valores se enraízam nas práticas sociais, no discurso e nas decisões cotidianas das pessoas. Análises essas que nos conduzem a uma crítica mais estrutural e de longo alcance.
6.
Nessa breve resenha, esperamos ter despertado o interesse pela leitura completa da obra e deixado transparecer a importância desse trabalho como fonte de estudos e reflexões a respeito de um tema tão caro, não apenas para a Sociologia Política, área de estudos do autor, mas que se encontra com a geografia, com a história, com a antropologia e com outros campos do conhecimento que abordam a relação entre o espaço, o poder estatal, as dinâmicas sociais e as identidades culturais em distintos territórios.
Camila Nunes Duarte Silveira é professora da área de Educação no IF Baiano.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.