Trabalho invisível: ser influencer virou obrigação

De psicólogos, professores e advogados a manicures ou microempreendedores: apresentar-se nas mídias sociais tornou-se imperativo. Horas incalculáveis de trabalho são dedicadas ao marketing digital – e não há nenhuma garantia de retorno

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Por Matheus Silveira de Souza, no Blog da Boitempo

As redes sociais se consolidaram como o novo espaço do debate público e a vitrine de exposição da vida privada. Esse espaço, longe de ser neutro, é configurado por donos de Big Techs que possuem o monopólio das mídias digitais e determinam a nossa comunicação. A dialética entre forma e conteúdo nos revela que as redes sociais impõem uma determinada forma a partir da qual podemos nos comunicar que, em última medida, determina o próprio conteúdo da nossa comunicação. 

Essa discussão, entretanto, já é realizada de forma mais ampla na sociedade. Um ponto que talvez passe mais despercebido é que milhões de trabalhadores e trabalhadoras — formais ou informais — possuem uma dependência cada vez maior das redes para captarem clientes, venderem produtos ou divulgarem seus serviços. Assim, quando falamos em plataformização do trabalho não podemos olhar apenas para empresas como Uber e iFood, mas devemos considerar mídias sociais como Instagram e TikTok1

Rosana Pinheiro Machado e outras pesquisadoras mapearam milhares de trabalhadores e trabalhadoras informais de baixa renda que dependem do Instagram para a divulgação e venda de seus serviços, como manicures, empregadas domésticas, comerciantes. Os resultados indicam que o mercado informal está migrando progressivamente para as redes sociais, e essas plataformas estão se tornando importantes agentes da economia informal no Brasil2. Essa análise dialoga com a ideia de “platform dependent3, pois há uma necessidade cada vez maior de alguns profissionais estarem presentes nas redes sociais como forma de inserção no mercado, ainda mais quando atuam por conta própria. 

Essa dependência ocorre para pessoas com diferentes graus de escolaridade. É comum vermos advogados, psicólogas e outros profissionais liberais criando perfis no Instagram para venderem seus serviços e captarem clientes. Mais do que uma ferramenta de exposição, as redes viraram uma forma de inserção profissional para milhares de jovens que, ao conquistarem um diploma universitário, encontram um mercado precarizado e com portas nem sempre abertas em sua área de formação. Já são outros tempos: se há duas décadas um recém-formado imprimia currículos para distribuir em escritórios ou clínicas, hoje é muito provável que ele crie um perfil no Instagram e assista a alguns vídeos sobre marketing digital. Não se trata de um desejo de ser influencer, mas sim, dos novos contornos da viração em uma sociedade subordinada às plataformas digitais. Isso não significa, obviamente, que apenas recém-formados utilizem essa estratégia de trabalho. Há profissionais com alta remuneração e décadas de experiência que utilizam as redes para amplificar sua influência e seus rendimentos. 

Esse quadro nos coloca algumas questões. Se as redes sociais também devem ser incluídas na análise da plataformização do trabalho, quais são as determinações laborais que elas criam para milhões de indivíduos que as utilizam de forma profissional? O controle algorítmico e a confusão entre o que é ou não tempo de trabalho também entram nessa análise? A atuação nas mídias digitais seria mais uma maneira de informalização do trabalho? 

“Eu não achei que teria que estudar marketing digital para ser psicóloga” 

Nas entrevistas que realizamos em nossa pesquisa de doutorado com psicólogas e advogados que utilizam o Instagram profissionalmente, algumas questões aparecem com maior frequência. A primeira é a dificuldade para descobrir como agradar o algoritmo da plataforma e, consequentemente, ter maior engajamento. Um dos psicólogos relatou o seguinte: “Nunca é 100% claro né. Parte da dinâmica do algoritmo é essa, sempre deixar você nessa constante tensão: ‘o que eu preciso fazer pra agradar?’” 

O problema é que as regras do jogo não são explícitas, ou seja, não está claro quais conteúdos postar ou não para ter maior alcance, e esse é um conhecimento que vai se descobrindo no dia a dia. Esse processo cria uma adequação dos trabalhadores e trabalhadoras à forma e à estética imposta pelo Instagram, pois o conteúdo terá mais engajamento na medida em que cumpra os requisitos da plataforma. Desse modo, diferentes empregos passam por um processo de homogeneização, na tentativa de cumprir os parâmetros da rede social4.

Não podemos cair em um fetichismo da tecnologia e apagarmos o trabalho humano que permitiu a criação do algoritmo e suas posteriores reconfigurações. Partindo de Marx5, compreendemos que a interação entre trabalhadores e algoritmos não é uma relação entre um sujeito e uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, pois os comandos dos algoritmos são configurados por programadores que, em última análise, obedecem às diretrizes dos donos dessas empresas-plataformas. 

Outra determinação do Instagram é a necessidade de produção frequente de conteúdo. Essa regra impõe um ritmo de trabalho aos indivíduos, pois suas postagens terão maior alcance se sua produção for constante. Não é raro encontrarmos relatos de trabalhadores que se sentem pressionados para produzirem posts e vídeos com maior frequência. Foi dialogando sobre essa questão que uma das entrevistadas relatou: “Eu não achei que teria que estudar marketing digital para ser psicóloga, nem pensei que teria que ficar me expondo nas redes para conseguir pacientes.”A dinâmica das mídias sociais cria a aparência de que um bom psicólogo ou advogado não será, necessariamente, aquele que se aprofundar nos estudos da sua área, mas quem dominar as técnicas de marketing nas redes e compreender as regras da economia da atenção. Ao mesmo tempo, se cada trabalhador é uma empresa de si mesmo, é preciso explicitar a produtividade da sua marca. 

Talvez um dos imperativos do nosso tempo seja que não basta trabalhar, mas é necessário mostrar que estamos trabalhando. Nas palavras de uma psicóloga entrevistada: “Se você tem que tá ali mostrando seu trabalho, não basta estar trabalhando, você precisa mostrar seu trabalho, e isso é um outro trabalho. Então você acaba trabalhando mais, porque isso é uma atividade extra.” 

Redes sociais e a perda de formas estáveis do trabalho 

A desregulamentação laboral, a flexibilização e o advento de plataformas como Uber e Ifood aprofundaram uma dinâmica que já estava presente há décadas no Brasil, conhecida como perda de formas estáveis do trabalho. Esse fenômeno significa que há uma “dificuldade em mapear e discernir quais são os custos do trabalho e quem arca com eles; o que é e não é tempo de trabalho; e o que é e não é trabalho pago e não pago; o que são meios de produção e instrumentos do trabalho”6. Essa perda de formas estáveis pode ser compreendida como um processo de informalização, pois há uma tendência a trazer para dentro de trabalhos formais elementos típicos da informalidade. A flexibilidade e a instabilidade, reconhecidas como elementos próprios da atividade informal, são progressivamente encontradas como uma característica de empregos formais. 

O fato de que o Instagram se tornou um importante agente do mercado informal pode ser compreendido como um aprofundamento da perda de formas do trabalho. O indivíduo gastará dezenas de horas produzindo conteúdo sem ter a mínima garantia de que isso lhe trará algum retorno financeiro. Além disso, as horas gastas com produção de vídeos e carrosséis frequentemente não serão sequer reconhecidas como tempo de trabalho. Não é o Instagram que irá remunerar o trabalhador, mas o trabalhador que pagará para que seu perfil seja impulsionado7. Isso sem falar nos dados pessoais que a plataforma extrairá do trabalhador e transformará em ativos econômicos. 

Segundo Pinheiro Machado et al., o mercado de trabalho nas plataformas é estruturado como um esquema de pirâmide, com alguns influenciadores no topo e milhões de indivíduos aspirando ao crescimento digital. Assim, “os influenciadores no topo da pirâmide são mentores de influenciadores de médio e pequeno porte, criando uma linha de sucessão”8, de modo que vender cursos ou mentorias se torna o principal negócio de diferentes tipos de profissionais que atuam nas redes. Essa dinâmica cria a prática de pessoas que vendem cursos ensinando como vender cursos. A contradição fundamental é que, embora as plataformas preguem a plena liberdade e a chance de ficar milionário, apenas uma parcela ínfima consegue sucesso na atuação pelas plataformas, enquanto milhões de trabalhadores não ultrapassam os 5 mil seguidores e são incapazes de vender cursos ou ampliar seus rendimentos. Obviamente, questões relacionadas a raça e gênero serão determinantes para o aprofundamento dessas desigualdades. 

Gramsci demonstrou, ao analisar o surgimento do fordismo nos EUA, que a forma de organizar o trabalho é um instrumento de subjetivação e uma arma utilizada na disputa de hegemonia9. Não se trata de uma ideologia externa que opera na consciência dos indivíduos, mas, sim, que os diferentes métodos de organização laboral são mecanismos concretos de subjetivação. Pois bem, se as redes sociais estão se tornando determinantes para uma parcela do mundo do trabalho, podemos nos perguntar quais os impactos dessa organização laboral nas disputas políticas. 

Ao mesmo tempo, as dinâmicas que reorganizam o trabalho também reconfiguram as formas de luta, algo demonstrado amplamente pela mobilização dos entregadores no Breque dos Apps, a organização dos trabalhadores e trabalhadoras do Mercado Livre e até a greve dos streamers. Se as redes sociais amplificaram a diluição entre vida privada e profissional, entre trabalho e descanso, nomear os fenômenos pelo seu nome e reconhecer exploração onde aparentemente só há lazer pode ser um primeiro passo para seguir construindo as lutas do presente. 

Notas


1 PINHEIRO-MACHADO, R.; MATHEUS, J.; ALVES-SILVA, W.; FRID, M.; PETRA, P.; PENALVA, J. Mídias sociais como plataforma de trabalho digital: avaliando os impactos sociais, culturais e políticos da migração do mercado de trabalho para o Instagram. Digital Economy and Extreme Politics, n. 1, 2024.

2 Idem.

3 NIEBORG, David; POELL, Thomas. The platformization of cultural production: theorizing the contingent cultural commodity. New Media & Society, v. 20, n. 11, p. 4275-4292, 2018.

4 PINHEIRO-MACHADO, R et al. op. cit. 2024.

5 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

6 ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento ou viração?: Uberização, o trabalhador just-in-time e o despotismo algorítmico na periferia. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, v. 11, n. 3, 2021.

7 Um relato comum entre os entrevistados é que o Instagram impõe que o usuário gaste cada vez mais para patrocinar os conteúdos. Se inicialmente R$ 400 reais por semana garantiam uma boa divulgação do perfil, em pouco tempo o trabalhador terá que gastar o dobro para garantir o mesmo nível de alcance do conteúdo patrocinado.

8 PINHEIRO-MACHADO, R et al. op. cit. 2024.

9 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, volume 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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