Tarifaço: Europa se ajoelha aos valentões
Sob protestos da população, UE cede às chantagens de Trump: taxação de 15% e bilhões em compras de energia estadunidense. Europeus ampliam sua dependência em nome de “paz temporária”. Sul global assiste atento a nova dinâmica de “acordos”
Publicado 28/07/2025 às 17:52 - Atualizado 28/07/2025 às 17:53

Por Maria Luiza Falcão, no GGN
Edimburgo e Aberdeen começam o domingo com gaitas de fole e cartazes de deboche.“Welcome to our wind farms, Mr. Trump”, dizia uma das faixas “This is not what my grandfather fought for”, lia-se em outro. Trump chegou à Escócia como um chefe de Estado sem Estado. O sarcasmo escocês, tradicional e afiado, não foi apenas contra Trump, foi contra o que ele representa.
Hospedou-se no seu resort de luxo em Turnberry, entre campos de golfe e protestos. A mídia britânica foi impiedosa. O Sunday Herald estampou: “Trump wants tariffs, we want wind turbines.”
A cidade escocesa, terra natal da mãe do ex-presidente americano, não perdeu tempo em mostrar o que pensa dele. Enquanto isso, Trump pousava com cara de vitorioso preparando-se para anunciar seu novo troféu internacional. Um acordo comercial entre os Estados Unidos (EUA) e a União Europeia (EU) que pode redefinir as regras do jogo no Ocidente e que, segundo seus críticos, mais parece um contrato assinado sob ameaça.
Um acordo para evitar o caos e entregar bilhões
Depois de meses de tensão e ameaças públicas, a União Europeia decidiu ceder. Com medo de perder acesso ao mercado americano, topou praticamente tudo. Aceitou, por exemplo, manter tarifas de 50% sobre aço e alumínio por enquanto, com uma promessa futura de revisar isso dentro de um sistema de cotas. Também concordou com um regime tarifário desigual entre países europeus e, curiosamente, beneficiando a Irlanda do Norte que agora exportará para os EUA com tarifas mais baixas do que o resto do Reino Unido. Isso pode parecer detalhe técnico. Mas na delicada geopolítica britânica, mexer na posição da Irlanda do Norte é cutucar vespeiro. Pode até reacender tensões com o Acordo de Belfast.
Em vez de enfrentar a perspectiva de uma guerra tarifária, os europeus aceitaram uma tarifa fixa de 15% sobre praticamente todos os produtos exportados para os EUA. Em tempos normais, isso seria visto como um retrocesso. Mas sob a mira das ameaças de Trump, que falava em tarifas de até 30%, o “acordo da paz” virou um mal menor.
A lista do que foi negociado é longa e ainda não foi totalmente disponibilizada para o público. Já se sabe que foi estabelecido:
- 15% de tarifa fixa para carros, produtos industriais e farmacêuticos europeus que entram nos EUA.
- Setores com tarifa zero: equipamentos de semicondutores, peças de aeronaves, certos produtos agrícolas, fármacos genéricos e recursos minerais considerados estratégicos.
- Tarifas de 50% sobre aço e alumínio permanecem por enquanto, com a promessa vaga de transição para um sistema de cotas “nos próximos meses”.
E isso é só o começo. Para acalmar Trump, a Europa topou mais ainda:
- Compra de US$ 750 bilhões em energia dos EUA até 2028 — a maior parte em gás natural liquefeito, o famoso GNL.
- Investimento de US$ 600 bilhões por empresas europeias em solo americano, especialmente em infraestrutura, defesa e energia.
O que se vê é um pacote gigantesco que combina comércio, energia e segurança, com ares de submissão. Para a UE, o principal ganho é evitar sanções punitivas. O custo ainda está sendo calculado.
Trump blefa, a Europa cede e o Sul Global observa
O estilo de Trump como negociador global já é conhecido: ameaça em público, negocia em particular, posa de herói ao final. A tática funcionou com a China, e agora está funcionando com a Europa.
Para os EUA, o acordo é vantajoso. Garante bilhões em vendas de energia, abertura de mercado para seus setores estratégicos, investimentos diretos estrangeiros e ainda fortalece a indústria militar americana. Tudo isso, sem ter que ceder quase nada em troca.
Já a Europa sai com a sensação de ter comprado sua própria segurança econômica. Em vez de confrontar Washington, preferiu pagar para manter o comércio funcionando. Em outras palavras, escolheu a estabilidade, mesmo que sob pressão.
E o que isso diz ao restante do mundo?
Países como o Brasil, a Índia e a África do Sul observam atentos. O recado que o acordo passa é claro: as regras do multilateralismo estão sendo substituídas pela lógica do mais forte. Negociações comerciais viraram campos de batalha disfarçados, onde não há mais espaço para neutralidade. Ou se alinha, ou se prepara para ser tarifado.
Do sarcasmo escocês ao novo mapa da dependência
Voltamos à Escócia. Enquanto os líderes europeus sorriam tensos ao lado de Trump em Bruxelas, as ruas de Edimburgo e Glasgow diziam outra coisa. “No deals with bullies”, dizia uma jovem segurando um cartaz.
E o que ele representa? Uma nova lógica em que acordos são firmados não para construir, mas para evitar o colapso. Onde parcerias históricas são reconfiguradas a partir de blefes e ameaças. Onde a Europa compra gás dos EUA por imposição geopolítica, não por escolha estratégica.
Energia e dinheiro agora compram paz, temporária. Mas a dependência criada nesse processo é estrutural. Ao amarrar sua matriz energética ao gás americano, a Europa se torna ainda mais vulnerável. Ao aceitar regras comerciais ditadas de Washington, abre mão de autonomia.
O Reino Unido, por sua vez, segue numa crise de identidade. Não faz parte da UE, mas também não consegue se afastar dos efeitos colaterais desses acordos. E na Escócia, cresce o movimento que deseja se reaproximar da Europa e se distanciar da retórica inflamada que tomou conta de Londres e Washington.
No fim das contas, o que se viu neste domingo, 27 de julho, foi um retrato das relações internacionais em tempos de populismo. Um presidente que provoca, um bloco que cede, e um povo que responde com ironia.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
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