SP: Suicídios de PMs e a indiferença de Tarcísio

Número de mortes autoinfligidas por agentes de segurança é o maior em 11 anos. O que os dados revelam sobre a natureza violenta do modelo militar da corporação? E como garantir a vida e saúde mental dos trabalhadores da Segurança Pública?

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Por Thiago Bloss de Araújo, no A Terra é Redonda

Não é novidade para os estudiosos e pesquisadores do fenômeno da violência autodirigida que a categoria dos policiais, sobretudo a militar, é uma das mais vulneráveis ao suicídio. Dentre os conhecidos fatores de risco para esse tipo de morte nos militares, estaria o fácil acesso à arma de fogo e a pressão imposta pelas condições de trabalho.

Contudo, na atual gestão do governador do estado de São Paulo (Tarcísio de Freitas) uma importante tendência, que antes era silenciosa, tem se revelado de maneira explícita: a aproximação entre o impulso de destruição do outro e o impulso de destruição de si.

Segundo os dados revelados pela Ponte Jornalismo,[i] o número de suicídios de policiais militares bateu o recorde sob a gestão de Tarcísio de Freitas. Em 2023, houve um aumento de 63% das mortes voluntárias de policiais em relação ao ano anterior, constituindo o maior número em 11 anos (31 mortes no total). Para se ter uma ideia, policiais militares morrem mais por suicídio do que por homicídio.

Não por coincidência, esse aumento de mortes autoprovocadas é acompanhado do aumento de assassinatos cometidos pela polícia paulista. Sob a chefia do secretário Guilherme Derrite, foram realizadas operações na baixada santista que resultaram em brutais chacinas. Sob o argumento de “combate à criminalidade” ou de “contra ofensiva” à morte de um policial na região, foram assassinadas 134 pessoas no primeiro bimestre de 2024, as quais, em muitos casos, não possuíam qualquer tipo de periculosidade ou vínculo com atividade ligada ao crime.

Na reportagem da Ponte Jornalismo, pesquisadores apontam como o tema da saúde mental dos policiais tende a ser visto com ressalvas pela corporação, pois fragilizaria a representação social “viril” e “heroica” da categoria. Nesse sentido, sinalizam como a própria Polícia Militar contribui para o não cuidado de seus membros.

Há, porém, um fator agravante que não foi citado pelos pesquisadores na reportagem: a naturalização da prática da tortura entre os militares. Dias atrás, foi publicado nos veículos de imprensa o caso de um policial vítima de tortura em um curso de formação promovido pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar do Distrito Federal. Segundo o portal G1,[ii] a vítima sofreu múltiplas lesões, tais como, insuficiência renal, ruptura do músculo esquelético, ruptura do menisco, hérnia de disco, lesão lombar e lesão cerebral. O crime resultou em quinze mandados de prisão contra policiais envolvidos.

Dessa maneira, não se torna difícil constatar que a militarização da polícia – por sua natureza rigidamente hierarquizada, masculinizada e violenta – é atualmente uma das principais determinações para o sofrimento mental de policiais e, consequentemente, para o risco de suicídio. Os dados oficiais revelam que o modelo militar é mais nocivo aos policiais do que a suposta “marginalidade” que eles visam combater de maneira compulsiva.

Entretanto, é possível ir além. Há um elemento fundamental a ser considerado nesse aumento de mortes dos militares, a saber: a indissociação entre heterodestruição e autodestruição que constitui o atual Estado suicidário brasileiro. Esse conceito – desenvolvido por autores como Paul Virilio e, atualmente, por Vladimir Safatle[iii] – é importante para se pensar como a divisão da sociedade entre “nós x eles”, típico do pensamento fascista, não apenas é responsável pelo direcionamento da violência contra grupos específicos, mas também dos agentes contra si-mesmos.

Noutras palavras, a natureza suicidária do Estado fascista torna indiferenciada a violência contra os outros e contra si, convertendo o inimigo externo em inimigo interno.

Talvez caberia a hipótese de que o avanço do fascismo no Brasil (e no mundo) nos últimos anos – que resultou em uma dissolução do que ainda restava de mediação entre indivíduo e sociedade – fez com que a gestão estatal de destruição do outro se convertesse em autodestrutividade a serviço do Estado. Sob o atual estado suicidário brasileiro, a heterodestruição promovida pela polícia militar está se convertendo em autodestruição administrada.

Nesse sentido, a indiferença de Tarcísio de Freitas com as dezenas de mortes resultantes das operações policiais se amplia para uma indiferença com as mortes dos próprios policiais por suicídio. O “tô nem aí” do governador (quanto à denúncia encaminhada à ONU em decorrência de sua gestão homicida) também se dirige à maneira como ele e a instituição militar administra o sofrimento mental de seus membros. De certa maneira, a carta branca para realizar o assassinato ritualístico nas periferias de São Paulo tem se convertido, em contrapartida, em suicídio ritualístico dos militares.

Daí a urgência em se retomar o debate sobre a desmilitarização da polícia. Ela é necessária tanto para uma reestruturação da natureza violenta e golpista da corporação, como para a garantia de vida de seus trabalhadores.

A desmilitarização da polícia militar é, assim, necessária para a sobrevivência dos próprios agentes de segurança pública.

Thiago Bloss de Araújo é psicólogo social e doutor pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP.


Notas

[i] https://ponte.org/sob-tarcisio-suicidio-de-pms-bate-recorde-em-sp-e-faz-duas-vezes-mais-vitimas-do-que-homicidios/

[ii] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2024/04/29/pm-denuncia-ter-sido-torturado-por-colegas-no-batalhao-de-choque-no-df.ghtml

[iii] https://aterraeredonda.com.br/estado-suicidario/

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