SP: Smart Sampa vigia, mas não protege
Prefeitura já gastou R$ 100 milhões. Vigilância das 40 mil câmeras não produz segurança, mas desconfiança: metade delas são privadas e gestão dos dados carece de transparência. Baseado em IA, algoritmo é sujeito a erros e ao racismo. Pelo que tanto se gaba Ricardo Nunes?
Publicado 03/10/2025 às 17:27
Por Alex Teruel, Daniela Gonçalves, Davi Alves, Fernanda Franco, João Victor Vilasbôas, Maria Eduarda Oliveira e Samuel Amaral, na Ponte Jornalismo

Pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI) revelaram que a Prefeitura de São Paulo já gastou mais de R$ 100 milhões com o programa Smart Sampa desde sua implementação, em 2023. Das atuais 40 mil câmeras instaladas, 20 mil são próprias do programa e 20 mil da iniciativa privada. O levantamento da Ponte revela que as imagens captadas por equipamentos particulares seguem sob propriedade de seus donos e não são armazenadas pela Prefeitura, que mantém apenas registros de ocorrências — correspondentes a menos de 0,2% da capacidade de armazenamento prevista em edital.
A Prefeitura confirmou que os dados coletados são processados em nuvem e compartilhados com a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) e com a Plataforma Córtex, do governo federal, por meio de convênios e acordos de cooperação. A LAI também expõe que o descarte das imagens ocorre de forma automática após sete dias. Tudo isso levanta questionamentos sobre a privacidade dos cidadãos e a efetividade do programa.
Ao todo, três pedidos foram feitos via Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC) da Prefeitura, com o objetivo de obter informações que não estão disponíveis nos canais oficiais. Elas dizem respeito a aspectos operacionais, como abrangência do monitoramento, contratos e critérios de uso das tecnologias de vigilância urbana utilizados pelo programa. Apenas uma solicitação foi aceita. A exata destinação dos recursos também não foi especificada.
A consulta evidenciou a falta deliberada de dados básicos sobre o funcionamento do programa, como o perfil das pessoas abordadas a partir do reconhecimento facial. A ausência de transparência reforça as críticas de especialistas sobre os riscos de arbitrariedade e de uso político do sistema.
Falta de transparência
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU), órgão da Prefeitura do Município de São Paulo responsável pela gestão e implementação do Smart Sampa, foi questionada quanto à ausência dos dados do programa e do uso do reconhecimento facial.
“O uso de tecnologias como o videomonitoramento e, em casos específicos, o reconhecimento facial, está amparado pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Lei Federal nº11 13.709/2018. O programa adota protocolos de segurança cibernética e de governança da informação, em conformidade com a LGPD, assegurando o uso responsável e restrito das imagens captadas”, informou, em nota, a Secretaria.
Quanto à recusa em responder os pedidos via LAI, a Secretaria argumentou que “eventuais negativas ocorrem com base na legislação vigente, especialmente quando os dados solicitados podem comprometer a segurança pública ou a privacidade de indivíduos”. Por essa metodologia defendida em nome da segurança pública, São Paulo tem investido cada vez mais em sistemas de vigilância baseados na inteligência artificial.
A gestão Nunes planejava atingir a marca de 40 mil câmeras conectadas ao sistema até o final do mandato, em 2028. Essa meta foi conquistada este ano e se tornou uma de suas principais bandeiras na área de segurança. A estrutura da política de vigilância impressiona por sua dimensão. Segundo o último comunicado da Prefeitura, das 40 mil câmeras instaladas em toda a capital, a maioria na Zona Oeste e no Centro — com 11 mil e 9 mil aparelhos, respectivamente.

Das 40 mil câmeras totais, 20 mil são próprias da plataforma e 20 mil integradas do setor privado.. [Imagem: Samuel Amaral]
Sociedade de suspeitos
Em junho deste ano, a Polícia Federal avaliou uma possível parceria com o Smart Sampa. O prefeito Ricardo Nunes (MDB), em entrevista à Folha de São Paulo, disse que o programa está “à disposição para eles poderem utilizar nas suas atividades”. As negociações fazem parte de um grupo de ações que o governo municipal vem fazendo para expandir a política pública.
A gestão de São Paulo tem feito convênios com as esferas estadual e federal desde o começo das operações do projeto, em 2024. O sistema do Smart Sampa já acessa os bancos de dados de procurados e foragidos da secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo e o de pessoas desaparecidas da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC).
O pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e doutor em tecnologias de segurança, Daniel Edler, alerta que um dos maiores problemas do Smart Sampa é o risco de abordagens errôneas. Para ele, essas falhas podem comprometer o acesso da população a outras políticas públicas, sobretudo em regiões mais vulneráveis, por criar “uma sociedade em que todo mundo é, por princípio, suspeito”.
Edler questiona o aumento de câmaras próximas a escolas, unidades de saúde e centros de reabilitação. “Isso faz com que as pessoas se afastem de serviços básicos para as políticas públicas. Os efeitos são bastante problemáticos se essa tecnologia de reconhecimento facial é usada em tempo real e de forma tão disseminada”, aponta.
Racismo algorítmico e propaganda política
O especialista aponta ainda que a composição do banco de dados de procurados é um dos principais fatores que influenciam os erros do sistema. Edler diz que os sistemas são treinados com bancos de imagens não representativos da diversidade social brasileira e, por isso, cometem mais erros contra pessoas de pele escura do que em indivíduos de pele mais clara — um processo conhecido como “racismo algorítmico”.
Isso se soma à falta de transparência dos dados e resultados. “A questão não é só que a prefeitura esconde os dados, eles de fato não existem. É feita a abordagem e encaminham a pessoa para a delegacia, mas o sistema não tem necessariamente dados agregados de quem são essas pessoas, seu perfil racial ou tipificação criminal que fez com que esse indivíduo tivesse um mandado de prisão em aberto”, afirma.
O ex-ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo e ex-secretário de Segurança Urbana da capital, Benedito Mariano vê que há uso político do programa, que define como um perigo. “Esse equipamento sob a gestão do atual prefeito, além de virar uma espécie de marketing político permanente com o ‘prisômetro’, vejo com certa preocupação porque tem um viés mais eleitoreiro do que uma efetiva qualificação do equipamento público”, diz.
O “prisômetro” citado por Mariano é um painel de LED, com 3 metros de altura por 1 metro de comprimento, instalado na rua 15 de Novembro, em frente ao Centro de Comando do Smart Sampa. A tela apresenta o número de ocorrências com veículos, foragidos da Justiça capturados, presos em flagrante e de pessoas desaparecidas encontradas. O painel é atualizado diariamente e também está disponível no site oficial do programa.

Alto custo, baixa eficiência
Os últimos vídeos sobre o programa divulgados no perfil de Nunes no Instagram tiveram entre 400 a 500 mil visualizações até 29 de setembro deste ano. Neles, há a exposição de casos considerados como sucessos do sistema e um destaque da atual gestão como responsável pela execução do projeto, geralmente elogiado pelos internautas nos comentários.
Mariano percebe a situação como um descompasso entre publicidade e eficiência da política pública. “Não tem aumentado a sensação de segurança, o que aumentou foi a propaganda da prefeitura. O programa por si só não diminui o furto ou o roubo de celulares, por exemplo, que são problemas sérios da capital”, comentou.
Segundo a pesquisa “Smart Sampa vigia, mas não protege” do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o programa não reduziu significativamente as taxas de furtos, homicídios e outros crimes após a instalação do sistema. O estudo também não registrou aumento na produtividade policial, como expõe o prisômetro diariamente.
Faroeste regulatório
Um dos principais gargalos apontados pelos especialistas – que reduziria o impacto do racismo algorítmico, por exemplo — é a ausência de uma regulamentação clara. Para Edler, as forças de segurança operam atualmente em um “faroeste regulatório”, já que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não possui dispositivos relacionados ao direito penal dos dados, e que são agora objeto do Projeto de Lei 1515/2022 — o que deixa “brechas perigosas” no uso de tecnologias sensíveis como o reconhecimento facial.
“Não temos um padrão nacional mínimo de quais são as empresas que fornecem essa tecnologia, quais os parâmetros delas, qual o tipo de abordagem dos protocolos operacionais padrão (POPs). Esse é o problema”, explica. Além disso, a integração entre câmeras públicas e privadas, como as de estações de metrô, shoppings e hotéis aumenta a opacidade sobre quem controla e acessa as imagens. “O que falta é monitorar quem está monitorando”, disse Mariano.
Para o juiz e professor da Faculdade de Direito da USP, Guilherme Madeira, a ausência de uma norma legal específica para regulamentar o reconhecimento facial em larga escala no Brasil é o primeiro e mais grave desses riscos. “Estamos fazendo esse tipo de vigilância sem que haja uma legislação autorizando. Isso é muito preocupante”, alerta.
O professor lembra que a face das pessoas é um dado sensível, protegido pela LGPD. “A autodeterminação informativa é um direito fundamental. As pessoas têm o direito de saber o que é feito com sua imagem e como seus dados são tratados”, explica Madeira. O advogado em Direito Digital, Coriolano Camargo, reforça que “O cidadão precisa saber por que está sendo filmado, por quanto tempo os dados ficam armazenados, quem tem acesso. Transparência é essencial”. Para ele, “a regulação deve acompanhar a inovação, e não correr atrás dela”.
Segundo o advogado, hoje o Smart Sampa opera como uma “caixa preta” – sem portal de dados, auditorias públicas ou prestação de contas à sociedade. “Segurança pública não pode ser confundida com vigilância total. Sem critérios bem definidos e sem debate democrático, a tecnologia pode se transformar em um instrumento de controle social seletivo”, completa.
Erros que vieram a público
Em mais de 19 meses de operação, notícias divulgadas sobre falhas do Smart Sampa têm se acumulado. Em 13 de abril de 2025, o site UOL noticiou que um senhor de 80 anos foi confundido com uma pessoa condenada por estupro que estava foragida. Francisco Ferreira da Silva é aposentado e cuidava do jardim de uma UBS quando foi abordado por guardas civis e levado à delegacia. Ele permaneceu 10 horas no local até ser liberado.
A SMSU se pronunciou. A secretaria garante que o sistema é eficiente e que “ninguém foi preso por equívoco após reconhecimento facial”. A justificativa, dada em nota ao UOL, diz que o senhor foi levado por não ser possível confirmar sua identidade. Quando procurada, a Secretaria de Segurança Pública disse que não há registro dessa ocorrência em sua base de dados.
No dia 16 do mesmo mês, a Agência Pública publicou uma reportagem sobre Gabriela Crescencio. Grávida de oito meses, ela foi abordada de forma violenta pela Polícia Civil enquanto levava o filho mais velho a uma consulta médica. O sistema a identificou como foragida, e ela foi levada para a 47ª Delegacia de Polícia, no Capão Redondo. Segundo o relato, Gabriela entrou em trabalho de parto durante a abordagem. Ela relatou que começou a sentir dores abdominais dentro da viatura e, ao chegar à delegacia, percebeu que sua bolsa havia estourado.
Uma policial feminina interveio e ela foi levada ao Hospital do M’Boi Mirim. Após o parto, Gabriela ainda teria passado dez dias internada sob custódia. Durante esse período, os agentes impuseram restrições a cuidados básicos de higiene a ela. Segundo afirma, a proibiram de escovar os dentes e usar o banheiro. O bebê recém-nascido precisou ser internado em uma UTI neonatal, onde ficou por dois meses.
A prisão ocorreu devido a uma investigação da polícia de Campo Grande, de 2021, que apontou Crescencio como envolvida em tráfico de drogas. Ela residia na capital sul-mato-grossense à época. A mulher nunca foi detida, pois não havia flagrante, e ela tinha ficha limpa. O motivo para a prisão, quase quatro anos depois, é porque ela não comunicou sua última mudança de endereço.
Mariane Vieira Rizzo, defensora pública que cuida do caso, revelou que pediu a liberação da mulher para responder em liberdade assim que soube da detenção. Atualmente, Crescencio passa por acompanhamento psiquiátrico para tratar o estresse pós-traumático desenvolvido com o episódio. O bebê, prematuro, recebeu alta da UTI, mas ainda necessita de cuidados especiais.
Como agir em caso de identificação incorreta?
O advogado Coriolano Camargo dá instruções sobre como agir em casos como de identificação errônea — como os de Crescencio e Ferreira —, em três esferas diferentes:
- Fui identificado por uma câmera do Smart Sampa. O que posso fazer?
Você tem direito de saber se foi realmente identificado, como seus dados foram tratados e pode contestar as decisões automatizadas. Procure a Defensoria Pública ou um advogado.
- Fui preso por engano por causa do reconhecimento facial. Posso processar o Estado?
Sim. A responsabilidade do Estado é objetiva. O simples erro de reconhecimento já permite a ação de indenização.
- Como participar da discussão sobre o Smart Sampa?
Todo cidadão pode exigir transparência. Procure conselhos municipais, participe de audiências públicas, acompanhe projetos de lei sobre inteligência artificial e segurança pública em trâmite no Congresso.
Os riscos da hipervigilância
Desde sua implementação, o Smart Sampa está no centro de um debate que envolve, de um lado, a promessa de maior eficiência na segurança e gestão urbana; e de outro, riscos à privacidade e suspeitas de uso político dos dados coletados. O pesquisador do NEV Daniel Edler explica que o Smart Sampa vai além do monitoramento ostensivo. “Ele integra diversos serviços públicos — como transporte, trânsito e limpeza urbana — com objetivo de pronta resposta e prevenção. Mas a face mais visível e controversa é a segurança pública, com uso de câmeras e reconhecimento facial”, afirma.
A proposta de modernização, portanto, é acompanhada por preocupações com a chamada hipervigilância, um modelo onipresente que envolve tanto o Estado quanto empresas privadas e indivíduos. “Não é só o governo que coleta dados hoje. Todos os dispositivos – de celulares a colchões inteligentes – ajudam a construir um cenário em que todos vigiam todos”, observa o especialista.
A ideia é reforçada por Alcides Peron, pesquisador da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits), que analisa a governamentalidade nas políticas de segurança. Segundo Peron, o foco dessas tecnologias não é a gestão efetiva do crime, mas entender os contornos da normalidade e saber quem foge dos padrões do corpo social, o chamado “desvio” de conduta.
“Trata-se de um modelo que transforma todas as instituições em produtoras de conhecimento, mas não se vê necessariamente uma eficácia dessa tecnologia para prevenir, inibir ou coibir qualquer forma de ilegalidade. O objetivo não é prender bandidos, mas vigiar comportamentos”, conclui o pesquisador.
Esta reportagem é uma parceria da Ponte Jornalismo com alunos da disciplina Legislação em Jornalismo, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
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