SP: Como Uber e 99 querem impor o mototáxi 

Empresas pagam mil reais a motociclistas para recrutar outros. Objetivo: criar fato consumado; mobilizar a sociedade contra a lei, que proíbe o serviço pelo alto risco à segurança. Acidente envolvendo motos representam 37% das mortes no trânsito na cidade

Foto: Uber/Divulgação
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Por Hélen Freitas, na Repórter Brasil

Em meio à guerra jurídica com a Prefeitura de São Paulo sobre o serviço de transporte de passageiros por motos, 99 e Uber vêm promovendo campanhas com bônus de até R$ 1.100 para estimular condutores já cadastrados nas plataformas a indicarem novos motociclistas.

Nesta segunda-feira (27), o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acatou um pedido da prefeitura e suspendeu o serviço na capital paulista. Em notas distribuídas à imprensa, as empresas afirmaram que vão recorrer da decisão e anunciaram que vão retirar temporariamente a atividade do ar.

De acordo com mensagens disparadas pelas plataformas antes da decisão do TJSP, a 99 oferece R$ 1 mil a cada indicação de condutor — o dinheiro só cai na conta do motociclista cadastrado após o novo usuário completar 250 corridas. Já a Uber oferece uma recompensa ainda maior, de R$ 1.100, se o novo condutor também completar 250 viagens. A empresa promete ainda uma bonificação extra se a indicação for de uma mulher.

Uber oferece até R$ 1.100 por indicação de condutores para a plataforma (Imagem: Reprodução/Uber)
Uber oferece até R$ 1.100 por indicação de condutores para a plataforma (Imagem: Reprodução/Uber)

O presidente do SindimotoSP (Sindicato dos Motociclistas Intermunicipal do Estado de São Paulo), Gilberto Almeida dos Santos, critica a tática das empresas para atrair mais trabalhadores e ganhar apoio para manutenção da atividade. “É um serviço extremamente de risco, que não dá pra ser explorado mediante promoção”, afirma.

Questionadas sobre a campanha de recrutamento de motociclistas, as assessorias de imprensa de 99 e Uber não se pronunciaram até o fechamento desta reportagem. O texto será atualizado se um posicionamento for enviado.

Não é a primeira vez que aplicativos tentam conquistar a opinião pública para forçar a entrada de um serviço de transporte de passageiros na capital paulista. Em 2014, a Uber começou a operar no Brasil sem que houvesse regulamentação. A plataforma até chegou a ser classificada como ilegal, mas em 2016 um decreto do então prefeito Fernando Haddad autorizou os chamados “serviços de transporte individual por aplicativos”.

TJSP suspende transporte de passageiros por moto em São Paulo

Desde o dia 14 de janeiro, quando começou uma batalha com a prefeitura, a 99 vem apostando na estratégia de convencer quem mora em regiões periféricas a utilizar a moto por aplicativo para se deslocar até estações de trem e de metrô, de forma “rápida e barata”. De acordo com a plataforma, a maioria das corridas começa ou termina a 100 metros de um ponto de transporte público.

O especialista em mobilidade urbana Rafael Calabria, com passagens pelo Idec (Instituto de Defesa de Consumidores) e pelo Fórum de Mobilidade do Ministério das Cidades, questiona os dados divulgados pelas empresas. “São informações totalmente privadas, sem nenhum embasamento”, afirma.

99 dispara mensagens a condutores para recrutamento de novos condutores (Imagem: Reprodução/99)
99 dispara mensagens a condutores para recrutamento de novos condutores (Imagem: Reprodução/99)

Para o presidente SindimotoSP, a atuação das empresas gera insegurança não só para os passageiros, mas também para os motociclistas. “Você vai meter uma tonelada de trabalhadores sem experiência nenhuma, com as motos sem manutenção, desesperado para ganhar um dinheiro para transportar passageiro dentro de São Paulo”, critica Santos. “Não precisa ser especialista para entender no que vai dar isso aí”, complementa.

Na segunda-feira (27), o desembargador Eduardo Gouvêa, da 7ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, acatou o pedido da prefeitura e determinou a interrupção do serviço de transporte de passageiros por motocicletas no município. O desembargador, no entanto, não determinou aplicação de multa diária, nem declarou crime de desobediência em caso de continuidade do serviço, conforme solicitado pela prefeitura.

O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) também abriu um inquérito para investigar se 99 e Uber descumpriram a lei ao oferecer transporte de passageiros em motocicletas, causando prejuízos ao erário público.  

Lei federal só permite transporte de aplicativos por carro

O prefeito Ricardo Nunes comemorou a decisão da Justiça e afirmou que a geração de emprego e renda não pode colocar em risco a vida da população. “A gente tem esse grande desafio para que os motociclistas possam ter oportunidades de operar, de trabalhar, mas não com atividade que coloque em risco a vida dele e do passageiro”, disse Nunes, em áudio enviado à reportagem pela assessoria de imprensa da Prefeitura.

Há diferentes normas que regulamentam o serviço de transporte de passageiros no Brasil. A primeira é a Lei 12.009 de 2009, que regulamenta o serviço de mototáxi e motofrete e define regras, como idade mínima de 21 anos, habilitação por pelo menos dois anos e a obrigatoriedade de cadastro nos órgãos municipais de trânsito. A Resolução nº 943/22 do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) complementa a lei e estabelece a inspeção semestral para verificação dos equipamentos obrigatórios e de segurança.

As empresas baseiam sua atuação na  Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei federal 12.587 de 2012), modificada em 2018 por outra legislação que regulamentou os serviços de aplicativos de transporte. Especialistas, no entanto, criticam a interpretação das plataformas.

“É até meio besta eles citarem a lei de 2018, porque ela, claramente, não cita moto. Ela fala do serviço de motoristas de CNH B ou mais, ou seja, motorista de carro”, afirma Calabria.

Em sua avaliação, a estratégia da Uber e da 99 é a de judicializar a discussão porque elas só precisam de uma decisão que valide a existência do serviço. “Se eles estivessem preocupados com qualidade, com a segurança dos trabalhadores e dos passageiros, eles estariam brigando para definir regras de segurança, mas as empresas não querem isso”, afirma Calabria. “Elas fazem lobby no judiciário porque o judiciário não pode regular o serviço, só pode dizer se é permitido”, resume.

Em 2024, 483 pessoas morrem em acidentes com moto na capital

Para proibir o transporte de passageiros por motocicletas na capital paulista, a Prefeitura se baseia em argumentos de saúde e segurança.

As mortes de motociclistas registraram um aumento de 20% na cidade de São Paulo no ano passado, de acordo com dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran). Em 2024, foram 483 óbitos, enquanto em 2023 o número foi de 403. Os acidentes envolvendo motos representam 37% de todas as mortes no trânsito da capital paulista.

Os órgãos de trânsito não diferenciam acidentes envolvendo motoristas e passageiros de aplicativos. Calabria explica que as empresas se aproveitam dessa ausência de dados específicos para pressionar pela aprovação da modalidade, embora haja uma suspeita de que os acidentes possam aumentar com a oferta desse serviço. “As cidades que tiveram a entrada rápida da Uber e da 99 tiveram aumento das ocorrências de acidentes com motociclistas no trânsito”, aponta o especialista em mobilidade.

Diante da escassez de informação, o Ministério Público do Trabalho de Pernambuco determinou a identificação dos aplicativos nas quedas e colisões no estado.

“Nós resolvemos usar os dados do estrago que esse tipo de serviço, com motos, está provocando na saúde. Estamos falando de pessoas que trabalham 14 horas por dia e que, quando se machucam, a ocorrência é registrada apenas como sinistro de trânsito e, não, de trabalho. Há uma subnotificação dos episódios”, explicou a procuradora Vanessa Patriota em entrevista ao Jornal do Commercio.

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