Silvia Federici: “A resignação é um luxo”

Há um quadro de paralisia na sociedade, mas não significa que nada pode ser feito, diz a pensadora. As condições materiais de vida escorrem pelos dedos, o que alimenta as “revoltas” à direita. Reflete: a “comuna digital” pode reverter a fragmentação das lutas

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Silvia Federici, em entrevista Huáscar Salazar e Diego Castro, com tradução no blog da Elefante

Se alguém um dia pensou em dizer a Silvia Federici que está na hora de se aposentar, a entrevista abaixo começa com uma resposta categórica: “É um luxo dizer ‘bem, não podemos fazer nada’”. Ou seja, a resignação é um luxo do qual essa pensadora italiana radicada nos Estados Unidos desde os anos 1970 não tem nenhum interesse de usufruir. A conversa abaixo revela essa disposição de forma cristalina: aos 82 anos, a autora do já clássico Calibã e a bruxa está com os ouvidos atentos e a cabeça tinindo de ideias sobre o que considera as missões prioritárias das forças de esquerda diante da ascensão global da extrema direita. Boa leitura!
— Tadeu Breda, editor da Elefante

Que época é esta em que estamos vivendo? Fazer essa pergunta, de certa forma, também implica uma transformação. Estamos vendo várias guerras, genocídios, crise climática, mas também lutas muito poderosas.

Acho que é um momento muito perigoso. São tempos muito difíceis. São tempos que vão decidir nosso futuro porque todas as forças políticas e econômicas do sistema capitalista estão concentradas em uma guerra de várias frentes. Não se trata apenas de uma guerra com armas, com soldados, com paramilitares, mas também com medidas econômicas e políticas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a Suprema Corte decretou que um presidente da república não será julgado por nada que faça em suas funções públicas. Veja, esse é um microexemplo que nos mostra o cerceamento de qualquer direito constitucional. Vemos essa vontade de nos expropriar em todos os níveis. Pode ser a terra, pode ser os compromissos, os direitos que conquistamos por meio de muitas lutas, pode ser a garantia do futuro, de ter recursos adequados para nos sustentar.

Portanto, é um momento muito difícil. Acredito que este momento não precisa apenas de lutas isoladas; também é necessário criar grandes movimentos, conectados uns aos outros, que tenham uma base comum e uma visão de como construir outro sistema.

Silvia, também sentimos que esta época em que vivemos é um momento paralisante, um discurso catastrófico que tende a nos dominar, como se estivéssemos vivendo o fim de tudo e que não há nada a fazer. Como lidamos com essa sensação de paralisia?

Acho que esse catastrofismo e essa sensação de paralisia são, na verdade, um luxo, porque as pessoas precisam continuar vivendo. Novas gerações nascem o tempo todo, crianças nascem todos os dias. Portanto, é um luxo dizer “bem, não podemos fazer nada”. A resignação é um luxo.

Acho que a perspectiva a partir da qual devemos nos mover deve ser a de que, naturalmente, não há garantias, não há segurança, mas o importante é entender e começar a nos organizar. Entender quais formas de luta são possíveis e eficazes. Não é verdade que nada pode ser feito. O avanço da liderança capitalista pode ser interrompido em muitos lugares.

É claro que, se olharmos para o quadro geral, veremos um quadro muito negativo, mas isso não significa que nada pode ser feito. Para mim, significa que isso nos impõe novos imperativos, nos obriga a repensar o que foi feito e como chegamos até aqui.

É importante entender como chegamos até aqui. Nos últimos dois anos, fui confrontada com essa virada negativa: a eleição de Milei, a eleição de Meloni e, recentemente, da direita na França. Por exemplo, quando fomos ao Brasil, vimos essa grande força dos evangélicos, que envolve muitos proletários. Nessas igrejas, você vê cada vez mais pessoas chegando, e eu me pergunto: como isso foi possível? Me perguntei isso na Itália, e também no Brasil.

A resposta é sempre a mesma: “Bem, é porque a esquerda não tem sido capaz de lidar com as demandas do povo”. No Brasil, me disseram: “A esquerda abandonou completamente as favelas por um longo tempo”. Se você é uma pessoa sem recursos, mora em uma favela e algo acontece — uma enchente, um desastre —, não há ninguém que possa ajudá-lo, somente os pentecostais que estão lá. Eles te ajudam e, é claro, uma vez que o ajudam, impõem condições a você.

Perguntei aos colegas da Argentina: “Como foi possível que Milei tenha vencido também com o apoio dos trabalhadores, não apenas dos empregadores? Eles me disseram a mesma coisa: “As pessoas estavam tão exasperadas, tão angustiadas com a política da chamada ‘esquerda’, que acharam que era necessária uma mudança”.

Portanto, acho que esse momento de derrota, que parece uma derrota e é uma derrota, não deve ser interpretado como uma impossibilidade ou inevitabilidade. Não era algo que não pudesse ser evitado. Parece-me que há uma história a ser entendida. É como aqui [nos Estados Unidos]: Trump, Trump, Trump. Ele é terrível, ele é um ditador, um homem que pode se dar ao luxo de dizer que, quando for eleito, será um ditador, ele diz isso abertamente agora. Mas quando vemos a alternativa, quando vemos os democratas e todos os compromissos que eles têm; além da falta de uma visão, a fragmentação dos movimentos que não conseguiram se unir nos últimos anos, que estão muito fragmentados, que lutam, que há muitas divisões… Acho que é hora de começar a repensar como sair dessa paralisia; não é uma paralisia inevitável.

Sim, porque em muitos países também temos essa sensação de estar em uma armadilha. Ou seja, nos momentos em que o progressismo, a centro-esquerda governa, há uma espécie de falta de expectativa porque os desejos das pessoas não são atendidos. Mas quando a direita retorna ao governo, ela se reposiciona rapidamente e a esperança está em uma espécie de carrossel, em que um substitui o outro e assim por diante. Como podemos sair dessa situação?

Acho que há uma questão fundamental a ser entendida aqui: quais são os grandes problemas enfrentados pela maioria das pessoas, pelas pessoas que não gerenciam o capital, pela maioria dos trabalhadores? São os problemas de território, de moradia, de recursos para se sustentar, de falta de tempo, de trabalho explorador. Nos Estados Unidos vemos isso muito bem. A grande crise que todas as famílias — e, em primeiro lugar, as mulheres — vêm enfrentando há muitos anos é a crise de cuidados, da reprodução diária da vida, do fato de não haver segurança para o futuro. Esses são os problemas.

Li recentemente que nos Estados Unidos — e estou falando desse país porque se diz que é o país mais rico do mundo — a expectativa de vida está caindo, não apenas para as mulheres, mas também para os homens, e também para os homens brancos, para os homens da classe trabalhadora. Há um aumento de suicídios entre os trabalhadores brancos, de mortes por alcoolismo, por depressão, por drogas; o diagnóstico geral é de mal-estar, infelicidade, preocupação com o futuro. As pessoas não se sentem bem, não se sentem protegidas, sentem que a qualquer momento sua vida pode ser completamente destruída, podem perder tudo o que têm, podem acabar dormindo na rua.

Acho que essa tem sido a principal dificuldade dos movimentos: realmente lidar com as condições materiais de vida, com a questão do futuro, a questão da segurança. Não a segurança como o capital a entende, que é a segurança militar, que é a segurança da polícia, de aumentar a polícia, mas a segurança em termos de garantir o acesso aos recursos necessários para nos mantermos, e também para sairmos do isolamento, para sairmos da crise em que enfrentamos o sistema sozinhos.

Acredito que, por trás de todas essas vitórias da direita, há uma grande revolta contra um sistema que se diz democrático, contra um sistema que se diz favorável aos direitos humanos, mas que nos coloca em uma situação terrível de precariedade da existência, de precariedade da vida.

Mesmo para as pessoas que não têm doenças crônicas, mas que têm um emprego precário, existe a sensação de que a qualquer momento você pode perder tudo, essa sensação — que não é uma sensação, é uma realidade — de que a maioria não tem nenhuma garantia para o futuro. Porque o sistema previdenciário, o sistema de garantias, está sempre encolhendo. Acho que essa é a grande crise fundamental que as pessoas associam aos sistemas que se dizem de centro-esquerda, aos partidos de centro-esquerda; que ainda são muito pró-capitalistas, que ainda não acabaram com o investimento em armas e guerras.

Acho que o que precisamos fazer é entender o que está por trás disso, dessa paralisia, dessa guinada à direita. O que significa essa guinada à direita? É uma espécie de revolta, mas o que há por trás disso? Por que aqueles que não têm interesse em proteger o capitalismo, em proteger os ricos, que não têm interesse na acumulação de capital, por que votam nessas pessoas? É uma revolta, é um tipo de protesto; eu acho que deve ser lido dessa forma.

Trata-se de entender quais são os problemas, de colocar na mesa os problemas reais, que é o problema de garantir a vida, o futuro, os recursos, o isolamento, a doença, o trabalho de cuidado que não existe, as crianças enlouquecendo porque não há tempo para elas. Porque agora todos vivem com um telefone celular e sem tempo para se conectar, em um contexto em que a militarização da vida, a presença de uma política em que a guerra é um fenômeno permanente, também se traduz em uma cultura de violência que afeta todos os momentos da vida, inclusive as crianças, a infância.

E a alternativa institucional parece ser a direita, parece que essa é a única coisa que está sendo viabilizada como alternativa?

Exatamente, e nesse ponto acho que os movimentos de esquerda têm muita responsabilidade. Por exemplo, a esquerda nunca se preocupou com as condições perversas em que vivem milhões de mulheres, que têm de se sustentar com trabalho mal remunerado fora de casa, têm de cuidar do lar, têm de cuidar dos doentes, têm de cuidar dos idosos; elas vivem em condições nas quais não lhes sobra tempo, que estão reduzindo sua expectativa de vida. Por que nunca vimos um movimento de esquerda forte — e isso inclui muitos movimentos feministas — que realmente tenha feito campanha sobre a necessidade de lidar com a problemática da reprodução, que é fundamental para a vida de tantas pessoas?

Há também as questões da guerra, do investimento militar — nos Estados Unidos há agora um movimento que propõe abolir a polícia, o que é muito importante —, acho que precisamos repensar o que foi feito, quais alternativas foram apresentadas às pessoas, quais foram as alternativas reais. Precisamos entender o que está acontecendo hoje para superar essa visão de que nada pode ser feito. Não é que nada possa ser feito, acredito que os problemas são muito claros.

Nas décadas de 1980 e 1990, passamos por uma desestruturação da economia e da política mundial que mudou muitas coisas e destruiu muitas possibilidades. Foi a contrarrevolução em resposta à subversão social da década de 1960, em resposta à subversão contra o colonialismo, à subversão contra o patriarcado, à subversão contra todas as medidas que o capitalismo implantou ao longo dos séculos para nos desorganizar, nos dividir e nos explorar mais intensamente.

Nesse período, experimentamos a contrarrevolução, e esse é um ataque muito forte. Mas, como respondemos a esse ataque que tornou a vida mais precária, que expropriou as pessoas, que criou novas formas de divisão internacional do trabalho? Acho que é importante fazer o que em inglês é chamado de “go back to square one”, voltar ao ponto de partida, para entender.

Houve um grande processo de desestruturação econômica e política, e também de guerra, da economia global — isto é chamado de globalização ou neoliberalismo. Atualmente, estamos vivenciando seu mais recente desenvolvimento com a fascistização da política, da economia e da cultura. Portanto, nesse contexto, é importante entender o que foi feito, qual foi a resposta; e o que não foi feito, o que não foi tentado.

Vejo isso em relação ao feminismo. Por exemplo, toda a questão da reprodução social foi colocada na mesa pelas trabalhadoras domésticas. O discurso do cuidado entra na perspectiva feminista, entra na política feminista por meio da luta das trabalhadoras domésticas, não por meio da luta das próprias militantes feministas — já que elas estavam concentradas na luta pelo trabalho fora de casa, na luta pela igualdade. Por exemplo, não vimos uma resistência forte nos Estados Unidos contra a entrada de mulheres nas forças armadas. Pelo contrário, as lutas eram para que as mulheres entrassem nas forças armadas, para que os gays entrassem nas forças armadas, para que as pessoas trans entrassem nas forças armadas. Ser aceito abertamente nas forças armadas foi visto como uma conquista. E isso é um absurdo.

Essa situação acontece em muitas esferas da vida, no sentido de que, por exemplo, o esforço que as lutas feministas ou comunitárias fazem para cuidar da vida muitas vezes é diluído por essa questão de igualdade de acesso aos lugares. Então, você estava dizendo para voltarmos àquele ponto inicial em que começamos a nos perder, mas também, qual é o ponto inicial a partir do qual podemos aprender com os processos políticos? Parece que quase sempre voltamos ao mesmo lugar ou, pelo menos, repetimos estratégias semelhantes como, por exemplo, colocar a expectativa em alguma transformação política eleitoral momentânea.

Acredito que há programas e mudanças sociais para os quais é necessário se organizar. Por exemplo, essa questão da guerra, como é possível o que está acontecendo agora na Palestina? É uma coisa inacreditável. Os israelenses estão agora, de novo, expulsando milhões de pessoas com bombas, com carros armados, e elas não têm para onde ir. Não apenas prenderam milhares e milhares de professores, médicos e enfermeiras; parece que os médicos têm as mãos quebradas, são torturados, ficam nus, não são alimentados. Como isso é possível? Milhares e milhares foram encontrados em valas comuns, pessoas foram encontradas amarradas sem órgãos, como isso é possível?

Precisamos entender que todos nós passamos por um processo de desumanização. Aceitamos todos os dias, pouco a pouco, a barbárie da vida cotidiana. Por exemplo, quando andamos por Nova York, encontramos em cada esquina pessoas dormindo na rua, pessoas que não têm nada, que não têm moradia. Agora, essas pessoas foram criminalizadas e há uma lei que as manda para a prisão. Então, quando você passa pela esquina, cada um de nós passa e não sabe o que fazer, mas isso nos choca. É uma desumanização diária, você gradualmente se acostuma a considerar os outros como lixo, como algo que não é da sua conta e sobre o qual você não pode fazer nada. É uma lição contínua de impotência. Acho que isso nos acostuma, nos prepara para aceitar que na Palestina as pessoas sejam torturadas, mortas e que sejam praticados atos de horror extremo.

Há também a questão de que vivemos o dia todo com o computador, com o telefone celular. As pessoas andam pelas ruas com celulares nas mãos, é uma subordinação à tecnologia. O celular é uma droga.

Silvia, você acha que esses celulares, mas também a saturação de informações, fake news, redes sociais, também é um fator importante nos processos de desmobilização, de captura das mobilizações das organizações?

Sim, com certeza. Acho que os telefones celulares aceleraram o capitalismo em duzentos anos. As pessoas não se perguntam sobre o modo de produção desses aparelhos, mas eles são produzidos pela guerra, pela matança de pessoas no Congo, e é algo sobre o que deveríamos falar. A esquerda comemorou o celular, dizendo que com o celular chegaríamos a milhares de pessoas e conseguiríamos nos encontrar em menos tempo. Lembro-me da Primavera Árabe, todo mundo com um telefone celular, sim, mas quanto tempo durou? Na realidade, essas são lutas que foram destruídas muito rapidamente. Elas duram um momento e depois silenciam.

Os autonomistas italianos também disseram que a internet é uma nova forma de bem comum, os bem comum digitais. Uma celebração, como se fosse uma conquista do proletariado, essa comuna digital através do uso de computadores e da telefonia. Mas, na realidade, é uma forma de nos isolarmos, de nos separarmos, de nos acostumarmos a viver sem contatos materiais. E, é claro, aceitamos tudo isso cegamente, porque as pessoas não se perguntam como um telefone é produzido. É um desastre ecológico.

Portanto, acho que há muitas coisas que não estão sendo questionadas. Por exemplo, o internacionalismo. A esquerda perdeu o internacionalismo há muito tempo. Eles falam sobre a Primavera Árabe e assim por diante, mas não falam sobre como os telefones celulares e os computadores são produzidos, sobre os rios de sangue que essa tecnologia custa. Como é possível falar sobre o uso e não sobre a produção?

Acho que há muitas coisas a serem analisadas: como esse sistema capitalista internacional funciona, o que permite que ele funcione, quais são seus mecanismos centrais, seus mecanismos vitais? A divisão internacional do trabalho, a hierarquia, o racismo, os patriarcados, o que significa de fato a pauperização e a desapropriação?

Entender qual é o plano do capital, que é um plano para tirar de todos nós o acesso direto à terra, aos rios, às águas. O plano do capital é muito claro: restringir completamente o acesso à terra, à água e às árvores. Tudo isso deve ser controlado pelas grandes corporações, enquanto todos nós estamos nas cidades. Pela primeira vez na história da humanidade, a maioria da população mundial está nas cidades. Estamos perdendo o contato e o acesso à terra. Uma vez que o percamos completamente, haverá uma grande crise.

Tudo isso deve ser uma questão fundamental de luta: não perder, reivindicar, reconquistar o acesso à terra, não permitir que ela seja expropriada, porque, caso contrário, você criará um mundo de refugiados, de pessoas vivendo em tendas. Mas, se a moradia é um luxo agora, temos um proletariado vivendo em tendas, um proletariado que precisa migrar daqui para lá. Eu sempre digo que a Palestina é o mundo. O que está acontecendo com os palestinos, agora? Os israelenses lhes estão dizendo: “Cocê não pode estar aqui, você tem que estar lá”. A mesma coisa está acontecendo de forma diferente com tantos proletários que não sabem para onde ir, que morrem no Mediterrâneo, que morrem nos barcos.

Creio que precisamos entender que não há movimentos com uma visão de transformação do sistema neste momento. A transformação, é claro, não é um programa de uma única frente, mas estas frentes devem estar interligadas. Elas devem expor quais são os mecanismos centrais que permitem que o sistema se reproduza a despeito da resistência, a despeito de todos os limites. Acredito que, se há esperança, ela está nesse tipo de trabalho.

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