Segurança: Por que defender a perícia autônoma?
Dossiê recém-lançado aponta: desvincular o trabalho pericial das polícias é tema-chave para o sistema judicial – especialmente na investigação em casos de violência do Estado. Proposta, recomendada pela Comissão Nacional da Verdade, é escanteada no STF
Publicado 24/04/2025 às 18:51

Por Paulo Batistella, na Ponte
Morto aos 38 anos na sede do Departamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em São Paulo, em 1975, o jornalista e cineasta Vladimir Herzog trazia no corpo lesões de tortura. Um laudo médico produzido à época, no entanto, as ignorava e apontava como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento” — alegando suicídio.
Não há registro de um eventual sulco duplo no pescoço de Vlado, sinal característico de enforcamento. O laudo ignorava a altura da vítima e descrevia roupas diferentes das citadas em um outro documento, de perícia da cena da morte. Esse segundo laudo era também sucinto, sem fotos que elucidassem o local da morte. O trabalho pericial submisso ao próprio DOI-CODI escondia a verdade evidente: Herzog havia sido torturado e assassinado pela ditadura militar-empresarial instaurada em 1964.
“A perícia criminal pode ser um instrumento de impunidade se não tiver garantias de independência”, disse Rogério Sotilli, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog (IVH), ao relembrar o caso do patrono da entidade nesta quarta-feira (23/4).
A fala ocorreu durante o lançamento do dossiê “Perícia e Direitos Humanos: recomendações para o aperfeiçoamento da Perícia Criminal“, em Brasília — a Ponte esteve no evento a convite do IVH, que produziu o relatório junto com a Fundação Friedrich Ebert Brasil (FES).
O dossiê reúne quatro estudos temáticos que traçam um panorama da perícia criminal no contexto do sistema de Justiça e dos direitos humanos no Brasil. As entidades responsáveis pelo diagnóstico defendem que os órgãos de perícia oficial — como os institutos médicos legais (IMLs) e de criminalística — sejam desvinculados da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Civil de cada estado, já que, 50 anos depois do assassinato de Herzog, a promoção da verdade e da justiça segue ameaçada pela falta de autonomia do trabalho pericial, especialmente em casos de violência policial e de Estado.
”É necessário aprofundar o debate e o próprio conceito de autonomia, entendendo que uma perícia realmente autônoma não é aquela que tem apenas orçamento e estrutura administrativa independente, mas aquela que, sobretudo, está comprometida com os direitos humanos e com a verdade factual”, acrescentou Rogério durante uma mesa que inaugurou o evento de lançamento. “Esse dossiê pode contribuir para a formulação de políticas públicas mais justas, técnicas e alinhadas ao direitos humanos”, emendou Jan Souverein, representante da FES no Brasil.
Peritos cobram autonomia na PEC da Segurança Pública
A cerimônia ocorreu em um auditório no Palácio da Justiça, sede do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP), que esteve representado na mesa inaugural pela diretora do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), Isabel Seixas de Figueiredo. Ela disse haver disposição da pasta em receber o dossiê e listou iniciativas dos governos petistas para aprimorar o trabalho pericial, como a criação da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG) e da primeira norma de cadeia de custódia.
Ela ponderou, ainda assim, reconhecer que a autonomia da perícia exige maiores esforços do governo Lula (PT): a recente Proposta de Emenda à Constituição 37/2022, a chamada PEC da Segurança Pública, foi entregue pelo ministro Ricardo Lewandowski ao Senado sem qualquer menção a um trabalho pericial autônomo. Uma outra PEC anterior, a 76/2019, que pretendia fixar na Constituição Federal a polícia científica como um órgão de segurança pública, também segue escanteada.
“A gente deve, por mais que trabalhe e trabalhe, o governo sempre deve. Dentre as coisas que a gente deve, talvez esteja a questão da autonomia da perícia. Eu consigo dizer que, ainda que por uma série de questões que não vêm ao caso não tenhamos incluído isso na PEC que saiu daqui, diferententemente de governos anteriores, o MJSP tem agora um posicionamento claro a respeito da PEC 76″, disse.
Lideranças de entidades de classe de peritos também presentes à mesa cobraram maior empenho do governo. “Infelizmente, às vezes as ações concretas ficam distantes dos discursos”, disse Marcos Camargo, que preside a Associação de Peritos Criminais Federais (APCF). “É complicado a gente ter uma discussão de modernização da segurança pública quando um dos elementos essenciais não está contemplado. Não dá para falar em melhoria sem valorizar um ramo tão importante quanto a Polícia Científica. Ela que dá cientificidade ao processo penal, possibilita políticas de segurança pública baseadas em evidências, dá robustez ao nosso conteúdo probatório.”
A Ponte apurou que, ao final do passado, as entidades de peritos criminais levaram ao ministro Lewandowski um pedido de inclusão da autonomia dos órgãos de perícia na PEC da Segurança Pública, o que acabou ignorado, embora a pasta tenha indicado não se opor à proposta. Os peritos entendem que existe um lobby de delegados, aos quais interessaria manter a perícia debaixo do guarda-chuva da Polícia Civil ou como mera linha auxiliar da investigação policial.
Presidente da Associação Brasileira de Criminalística (ABC), Marcos Secco reforçou a cobrança: “Há barreiras corporativas. Soa no Congresso como mais uma categoria que quer ser constitucionalizada, como se não houvesse benefício algum à sociedade. Esse relatório veio em um momento oportuno para nos auxiliar no Congresso, para que a gente possa ter isso o mais rápido possível.” Como lembra Marcos, “já se passaram 50 anos [do caso Herzog], com os modos quase parecidos.” Também estiveram no lançamento do dossiê Hamilton Pereira da Silva, coordenador-geral de Memória e Verdade e de Apoio à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e Clédisson Santos Junior, secretário de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Autonomia de perícia é tema-chave de sistema de Justiça
A desvinculação da perícia das pastas de segurança pública foi uma das 49 recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) ao Estado brasileiro em 2014 na ocasião em que analisou o caso de Vladimir Herzog. Para as entidades à frente do dossiê, a complacência da perícia naquele caso apareceu em episódios contemporâneos, como o da chacina do Jacarezinho, de 2021, em que a Polícia Civil assassinou 27 pessoas em uma favela do Rio de Janeiro.
Circularam na ocasião imagens de policiais carregando corpos sem qualquer atenção à necessidade de exame pericial. As perícias do caso acabaram inconclusivas, com laudos cadavéricos sem fotografias, ao terem sido dificultadas pela própria polícia à qual estavam vinculadas e que era parte interessada.
“Nossos esforços em apresentar um diagnóstico da situação da Perícia Criminal no país derivam do papel central que o trabalho pericial desempenha na prevenção de condenações injustas, na busca pela elucidação de homicídios e de desaparecimentos forçados, sendo um tema-chave para a construção de um sistema de justiça democrático e transparente, que respeite os direitos humanos”, aponta o dossiê.
O primeiro dos estudos que compõem o diagnóstico trata da autonomia da perícia oficial de natureza criminal. O segundo é sobre a formação dos peritos no país. O terceiro é dedicado à importância da cadeia de custódia na coleta e apresentação de provas. Já um último capítulo do dossiê aborda a expansão da identificação genética e as implicações disso para os direitos humanos.
Os trabalhos estão disponíveis para consulta desde outubro do ano passado. Antes disso, em 2020, o IVH havia publicado o relatório “Políticas de Perícia Criminal na Garantia dos Direitos Humanos”, que considerou um primeiro esforço sobre o tema. Três anos depois, o instituto havia lançado, junto da FES, o relatório “Fortalecimento da Democracia: Monitoramento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade”, no qual relatou ter ocorrido pouco avanço da desvinculação da perícia das polícias.
As duas entidades também estiveram juntas, entre 2021 e 2022, no Grupo de Trabalho Perícia Criminal (GT), no âmbito do projeto Núcleo Monitora CNV. A partir disso é que surgiu o dossiê mais recente.
STF abriu mão de perícia fora dos marcos policiais
A defesa de uma perícia criminal fora dos marcos policiais também ganhou projeção recente em meio à tramitação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, no Supremo Tribunal Federal (STF).
Integrantes do Fórum Popular de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (FPOPSEG) trataram do tema em um artigo publicado pela Ponte, no qual defendem um modelo de perícia não apenas autônomo, mas fora dos marcos policiais — em alguns estados do país, os peritos não ficam abaixo da Polícia Civil, mas estão integrados a uma Polícia Científica e ainda respondem à pasta de segurança.
No início de abril, o STF chegou, no entanto, a um voto de consenso que não desvinculou a perícia das polícias, mesmo em casos de mortes cometidas pelo Estado. A ordem foi para que, em ocorrências com óbitos, os próprios policiais terão de preservar a cena até a chegada de um delegado e dos peritos.
Ainda nessas ocasiões, o Ministério Público estadual (MP-RJ) terá de ser comunicado, conforme definir um protocolo próprio a ser elaborado junto à Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ). À Ponte, especialistas relataram que a decisão do STF não contemplava a necessidade de uma perícia autônoma.
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