Radiografia do feminicídio no Brasil

Punições endurecem, mas mortes saltam: Em nove anos, houve aumento de 186% dos casos registrados. Dentre estas, não estão inclusas as mulheres trans. Uma variedade de estudos mostra as múltiplas camadas que levam a um crime quase sempre evitável

Ilustração: Graça Craidy
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Por Mônica Manir, na Revista Fapesp

“Estou aqui porque eu tinha uma filha de lindos olhos verdes.” Assim um pai se apresentou à socióloga Eva Alterman Blay num encontro no apartamento dela no bairro de Santa Cecília, região central de São Paulo, há cerca de 20 anos. Blay, que desde a década de 1970 é engajada na questão da violência contra a mulher, costumava receber em sua residência pessoas ligadas aos movimentos sociais. O homem, levado ao apartamento por uma colega da socióloga, trazia consigo um desabafo e um arrependimento. Revelou que, diante da intenção da filha de se separar do marido porque ele a agredia, havia pedido paciência: “Quem sabe ele muda, você muda e as coisas se ajeitam”. Dias depois, a moça foi morta com um tiro no olho dado pelo companheiro. “Também estou aqui porque acho que o trabalho que vocês fazem tem de continuar”, arrematou o homem.

Ele sabia que Blay fizera parte do grupo do governo estadual de Franco Montoro (1983-1987), que, em 1985, criou na cidade de São Paulo a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) do Brasil. Mas parecia reivindicar coisa maior, para que o assassinato de sua filha pelo marido não passasse de mais um. “Como socióloga, sei que, quando finalmente se faz uma lei, a sociedade já se adiantou e está a caminho de pedir essa solução”, diz Blay, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP. “A Lei do Feminicídio é recente e importante, mas, por si só, não soluciona o problema. Basta ver o aumento no número de casos no país nos últimos anos.”

Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança Pública, os feminicídios saltaram de 527 casos em 2015 para 1.510 em 2024, um aumento de 186,53%. Foram 11.714 vítimas de feminicídio nesse intervalo de tempo, numa média de três ocorrências por dia. Entre os estados brasileiros, São Paulo lidera o ranking, com 1.590 mortes até 2024, seguido de Minas Gerais (1.501) e Rio Grande do Sul (935).

No dia 9 de março, a Lei do Feminicídio (nº 13.104) completou 10 anos. Ao pé da letra, consiste no assassinato de uma mulher “por razões da condição de sexo feminino”, razões essas que envolvem dois incisos: o primeiro é a violência doméstica e familiar, o segundo é o menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Fruto da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, que vigorou no Congresso Nacional de março de 2012 a agosto de 2013, ela não apenas alterou o Código Penal, ao prever o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, como incluiu esse assassinato no rol dos crimes hediondos.

No ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 14.994, que endureceu a 13.104 ao tornar o feminicídio um crime autônomo (que possui características próprias) e estender a pena para até 40 anos de prisão. É a maior pena prevista no Código Penal.

Também foram criadas nesses últimos anos, por pressão da sociedade, medidas como o Ligue 180, serviço de utilidade pública que oferece suporte e orientação a mulheres em situação de violência – implantado em 2005, passou a receber em 2014 denúncias e encaminhá-las aos órgãos competentes.

Outras iniciativas são a Patrulha Maria da Penha (instituída pela primeira vez no país em 2012, no Rio Grande do Sul, a ação promove visitas regulares às vítimas de violência doméstica e familiar com medida protetiva) e o uso de tornozeleiras eletrônicas para submeter o agressor à monitoração eletrônica durante a aplicação de medida protetiva de urgência em casos de violência doméstica e familiar, que passou a ser obrigatória em 2025.

No entanto, se por um lado endureceu-se a penalização, por outro escancarou-se a falha do Estado em promover a proteção efetiva das mulheres. “Tecnicamente, quando a morte de mulheres é qualificada como feminicídio, há o reconhecimento de que os serviços públicos não funcionaram para combater uma prática que, na maior parte das vezes, é evitável”, diz a advogada Fabiana Cristina Severi, do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. “Ela não acontece de uma hora para outra, mas vem em escala.”

O feminicídio é compreendido pela literatura especializada e por organizações internacionais de direitos humanos como decorrente de outras formas de violência contra mulheres e meninas, sobretudo a violência doméstica e familiar. Seria a tragédia letal de um ciclo de desproteção.

Valentina Fraiz

De 2015 para cá, estudos acadêmicos a respeito do feminicídio buscam não apenas apontar falhas e acertos na aplicação da lei, como também levantar números mais fidedignos de feminicídios no país e entender seus impactos e sua dimensão em diferentes contextos.

No ano passado, Severi coordenou um levantamento feito no âmbito do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades na USP de Ribeirão Preto. Em fase de submissão a uma revista científica, o estudo analisou em torno de 20 mil processos de homicídios de mulheres que correram a partir de 2015 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) com o objetivo de identificar o que aqueles crimes reconhecidos pela Justiça como feminicídios tinham de diferente em relação aos não reconhecidos como tal.

De acordo com Severi, os processos avaliados por ela e mais três colegas da USP mostram que preponderou o olhar dos agentes da segurança pública e do sistema de Justiça, de policiais a promotores: se esses profissionais normalmente não titubeiam em classificar como feminicídio as mortes no ambiente doméstico provocadas por parceiros íntimos, não raro hesitam se o relacionamento for esporádico ou se o assassinato derivou de misoginia, ainda que essa condição se encaixe no menosprezo ou na discriminação à condição de mulher previstos na lei.

Ainda relativo ao texto da Lei do Feminicídio, um ponto que pode dificultar a avaliação dos casos é a utilização do termo “sexo”, e não “gênero”. Em 2015, antes de a lei ser aprovada, já existia um campo robusto de estudos que relacionava a violência doméstica e familiar não ao sexo feminino, e sim ao lugar desigual que a mulher ocupa em termos de acesso a direitos na sociedade. Mas, quando o projeto já estava para ser aprovado, o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha requereu a substituição da expressão “gênero” por “sexo feminino”. Caso contrário, retiraria o tema da pauta.

Um dos problemas da terminologia baseada no termo “sexo” e não “gênero” seria o distanciamento da Lei do Feminicídio em relação à violência contra mulheres transexuais. “Na maior parte das vezes, elas são mortas por conta do ‘desvio’ que fazem do gênero esperado delas”, diz Severi. “Uma vez circunscrita ao sexo, a Lei do Feminicídio não abraçaria essas cidadãs.”

Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) divulgado em janeiro apontou que, diante das 122 mortes de trans e travestis registradas em 2024, o Brasil mantém, pelo 16º ano consecutivo, o primeiro lugar entre os países que mais assassinam essas pessoas no mundo. O perfil das vítimas, em sua maioria, é de jovens pretas e pobres, com expectativa de vida média de até 35 anos.

Nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, assim como na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), aprovada em 9 de junho de 1994, a terminologia usada para violências é gênero, e não sexo. Daí estudiosos do direito sugerirem que, na leitura da lei, seja trocado o segundo pelo primeiro termo, como uma adequação mais apropriada ao controle de convencionalidade, que verifica a compatibilidade entre as leis de um país e os tratados internacionais.

Para a socióloga Ana Paula Portella, pesquisadora visitante do Centro de Estudos de População da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, o gênero (ou a falta dele na lei) se articula com outros pontos, como a questão racial e a própria segurança e a violência nos ambientes em que as mulheres vivem. “É muito diferente o risco que uma mulher corre num ambiente de precariedade social em relação àquela que tem acesso a serviços de saúde e transporte”, diz.

Dentro dessa precariedade, Portella destaca o contexto da criminalidade, mais especificamente o mercado das drogas ilícitas, como um meio de extremo risco de morte feminina. “Esses grupos criminosos são, em geral, controlados por homens que se orientam por uma masculinidade violenta, que transborda nas relações de poder entre homens e mulheres e das quais elas são as principais vítimas”, completa.

De acordo com a pesquisadora, o perfil desse agressor é muito semelhante ao da vítima: homens jovens, negros, de baixa escolaridade, residentes em áreas socialmente vulneráveis. Nesse meio, a arma de fogo é o principal método para aniquilamento da mulher. Já nos casos de violência doméstica, o perfil dos agressores atinge um espectro mais amplo. “Qualquer homem, de qualquer classe social, faixa etária, raça e nível de escolaridade, é capaz de cometer um feminicídio”, afirma Portella.

Autora do livro Como morre uma mulher? (Editora UFPE, 2020), adaptação de sua tese defendida em 2014, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a pesquisadora diz que ainda predominam as armas brancas no ambiente familiar, embora as de fogo venham crescendo também nesse espaço de convívio.

Em outra tese de doutorado, esta defendida em 2024 na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Luciane Stochero avaliou mais um cenário de grande vulnerabilidade para as mulheres vítimas de violência no Brasil: o meio rural. Ela investigou casos ocorridos em duas cidades do noroeste gaúcho, Bossoroca, município com cerca de 6 mil habitantes, e São Miguel das Missões, com aproximadamente 7 mil moradores.

O uso na lei do termo “sexo”, e não “gênero” feminino, pode dificultar a avaliação dos casos

“A distância geográfica é um dos fatores limitantes para que a mulher do campo seja acolhida em serviços sociais de proteção, isso quando eles existem”, observa a pesquisadora. “Uma das minhas entrevistadas, que estava grávida, disse que, quando o marido chegava bêbado em casa e era agressivo, ela andava quilômetros no escuro com três filhos para pedir abrigo no vizinho mais próximo.”

A internet e a telefonia também são falhas nesse meio, assim como o transporte público. Ainda que houvesse um carro na garagem, a maior parte de suas entrevistadas não saberia dirigir. No estudo, ela busca quebrar o estereótipo do homem do campo como mais violento do que o urbano. “O fato é que ele encontra no ambiente rural algo que o auxilia nessa violência, que é o isolamento. Ninguém o vê batendo na mulher, não há testemunha”, afirma.

Afora a dificuldade de chegar aos participantes da pesquisa, Stochero cita os percalços de acesso a informações específicas sobre o meio rural em bancos de dados oficiais como o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que não dispõe de uma variável que relacione o óbito de mulheres à área onde viveram, se rural ou urbana.

A pesquisadora recorreu especialmente ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no qual avaliou as notificações de violência contra as mulheres no meio rural brasileiro entre 2011 e 2020. Ao todo, foram 79.229 casos, sobretudo de ordem física, psicológica e sexual. As vítimas eram mulheres jovens, negras e casadas, com agressões cometidas principalmente na residência e pelo próprio companheiro. Ao estudar essas duas regiões rurais do Rio Grande do Sul, a pesquisadora registrou 6.335 notificações de, por exemplo, violência física e psicológica, além de tentativa de suicídio.

Homicídio, quando há corpo presente, seria um crime fácil de contabilizar pela obrigatoriedade da notificação. Já o feminicídio ainda sofre com a necessária caracterização de morte intencional de mulheres, como alerta a socióloga Silvana Aparecida Mariano, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná.

“Se pegamos fontes policiais, o dado é um; se for do Judiciário, é outro. E, se usamos dados produzidos com independência, como acontece no nosso caso desde janeiro de 2003, as informações também são outras”, constata a pesquisadora, à frente do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem), que abarca o Monitor de Feminicídios no Brasil (MFB).

Fruto da parceria entre a UEL e as universidades federais de Uberlândia (UFU) e da Bahia (UFBA), além da cooperação de outras instituições, o MFB centra sua coleta de dados no acompanhamento contínuo de notícias com indícios de feminicídios publicadas na mídia.

O levantamento leva em conta tipologias e definições das Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres (feminicídios), da ONU Mulheres, e do Mapa Latino-americano de Feminicídios, feito pela associação civil franco-argentina MundoSur, que busca denunciar a violência de gênero na América Latina.

Essa coleta é complementada com informações de bases públicas. São verificados não apenas os feminicídios consumados, como também os tentados, isto é, quando houve tentativa de assassinato de uma mulher motivada por razões de gênero em que a vítima sobreviveu.

O Informe feminicídios no Brasil janeiro-junho 2024, publicado pelo Lesfem, esmiúça a metodologia do MFB. A detecção das notícias é feita primeiramente com o uso de duas ferramentas digitais criadas pelo projeto “Dados contra o feminicídio” afiliado ao Data + Feminism Lab, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, em colaboração com ativistas do mundo todo, que foram adaptadas para o português.

A primeira ferramenta chama-se Alerta de e-mails, que ajuda a identificar notícias potencialmente relacionadas a feminicídios. Ela funciona a partir da identificação de palavras-chave e de um algoritmo de aprendizado de máquina, treinado por ativistas que coletam dados de feminicídio, capaz de filtrar notícias relevantes na base de dados do Media Cloud (ferramenta de código aberto que permite o estudo do fluxo global de notícias e informações). Os usuários registrados recebem, então, alertas de e-mail sobre essas notícias.

Esse sistema é usado pelo Lesfem em conjunto com outra ferramenta chamada Marcador de dados, uma extensão para o navegador Chrome que destaca palavras-chave em páginas da internet, facilitando a identificação de casos de feminicídio. A extensão, assim como a plataforma, funciona em inglês, espanhol e português e permite o registro de dados e compartilhamento de informações com outros colaboradores.

Após coletar e categorizar as notícias detectadas pela plataforma do Data + Feminism Lab, o Lesfem realiza uma segunda verificação utilizando o sistema de busca do Google. Isso é feito para identificar notícias faltantes na base de dados do Media Cloud usada pela plataforma do laboratório do MIT.

Os resultados do MFB são chamados de contradados por serem produzidos de forma independente com a finalidade de contestar, complementar ou revelar lacunas nas informações oficiais. Pelos cálculos da organização, em 2024, ocorreram no Brasil 1.859 feminicídios consumados, 349 a mais que os 1.510 divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que trabalha com dados informados pelos Estados e pelo Distrito Federal.

“Há uma violência que levamos em consideração nesse enquadramento, que é a violência simbólica”, exemplifica Mariano. “Quando tomam como alvo partes do corpo como genitália, seios, rosto, quando cortam o cabelo da vítima, quando enfiam uma lingerie na boca dela. São sinais de desprezo, menosprezo e ódio pelo feminino.”

Ao Lesfem importa também contabilizar os feminicídios tentados, que, pelos cálculos do laboratório, teriam sido 2.286 em 2024. A justificativa para esse levantamento vem do impacto negativo que ele causa na vida das mulheres atacadas e de suas famílias, na comunidade que a cerca e na sociedade como um todo.

Também seria um registro para reflexões a respeito da efetividade das medidas protetivas, previstas na Lei Maria da Penha, de 2006, que definiu a violência doméstica e familiar contra a mulher como crime e criou mecanismos para prevenir, combater e punir essa violência. No estado de São Paulo, em 2024, foram concedidas 103.519 medidas protetivas, segundo o Painel de Proteção do TJSP.

Outro ponto, lembra Mariano, é que os dados sobre feminicídios tentados são subdimensionados, considerando que muitas vezes não são veiculados pela mídia porque não levaram à morte imediata.

No momento, o projeto “Dados contra o feminicídio”, do MIT, desenvolve, em parceria com o Data in Society Collective (Disco Lab), da Universidade Brown (EUA), uma ferramenta de inteligência artificial que busca entender e mitigar os vieses de notícias jornalísticas ao abordar feminicídios. A mídia é a principal fonte das ativistas contra o feminicídio na América Latina e Caribe, onde, em 2024, foram computados mais de 12 mil assassinatos de mulheres sob esse rótulo.

“Agora, estamos desenvolvendo uma taxonomia das palavras em duas grandes categorias, uma em que a mídia é prejudicial em relação à violência contra as mulheres, outra de boas práticas da mídia nesse sentido”, diz a pesquisadora brasileira Alessandra Jungs de Almeida, que trabalha no projeto “Dados contra o feminicídio”.

Com formação em relações internacionais, Jungs de Almeida editou e organizou o livro Estudios feministas de seguridad desde América Latina y el Caribe, publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Lançada em fevereiro de 2025, por enquanto apenas em espanhol, a obra reúne artigos de autoras de 14 países da região.

Um dos capítulos trata do feminicídio transnacional, que seriam as mortes de meninas e mulheres ocorrida em contextos de crime organizado, migração forçada e militarização, por exemplo. Outro enfoca o feminicídio contra lideranças femininas do movimento em defesa do meio ambiente.

A violência contra mulheres está muito longe de ser algo recente. Em pesquisa de doutorado defendida em fevereiro na Universidade Estadual do Maranhão (Uema), a historiadora Nila Michele Bastos Santos analisou um crime com todas as características de feminicídio ocorrido em 14 de agosto de 1873, em São Luís (MA). Trata-se do caso Pontes Visgueiro ou, como prefere a pesquisadora, o assassinato de Mariquinhas.

O desembargador José Cândido Pontes Visgueiro (1811-1875) foi um magistrado que, na casa dos 60 anos, se apaixonou pela jovem Maria da Conceição, apelidada de Mariquinhas, que tinha entre 15 e 16 anos e era apontada por muitos como prostituta. Indignado com a falta de controle sobre a vida da jovem, premeditou o assassinato dela com a ajuda de um empregado. Visgueiro dopou, esfaqueou e esquartejou a adolescente, ocultando o cadáver num baú forrado de zinco, que mandou enterrar no quintal do sobrado onde morava.

Descoberto o delito, o desembargador foi condenado à prisão perpétua, embora a penalidade cabível na época fosse a pena de morte. Na sua pesquisa, Santos resgata a atuação das mulheres que cercavam Mariquinhas e seu respectivo apagamento da história.

“A mãe, a irmã e as amigas da vítima foram determinantes na descoberta do crime tanto pela pressão que exerceram sobre a polícia quanto pela vigília que fizeram na frente do sobrado em que morava o desembargador. Nos relatos encontrados, percebe-se que elas já supunham que Mariquinhas estivesse morta, pois vigiavam a casa para garantir que o corpo não fosse jogado no mar, próximo dali”, conta a pesquisadora.

Outra descoberta, vinda não apenas dos jornais, mas especialmente da literatura, foi a percepção de que, com o passar dos anos, Mariquinhas – uma mulher branca, conforme atesta o exame de corpo de delito da época – foi sendo enegrecida nos relatos. De acordo com Santos, o componente racial reforça a imagem de devassa que passou a marcá-la ao longo do tempo.

Da tese nasceu a história em quadrinhos Mariquinhas: Crime e resistência feminina na São Luís do Maranhão de 1873, voltada para alunos acima de 14 anos, que a historiadora pretende lançar neste ano. “A proposta é que a pesquisa acadêmica dialogue com a educação básica, contribuindo para fomentar debates sobre questões de gênero e violência de forma acessível”, afirma Santos.

A reportagem acima foi publicada com o título “No meio do caminho” na edição impressa nº 353, de julho de 2025.


Referências:

Livros
ALMEIDA, A. J. (org.). Estudios feministas de seguridad desde América Latina y el Caribe. Florianópolis: UFSC, 2025.
PORTELLA, A. P. Como morre uma mulher? Recife: Editora UFPE, 2020.

Relatórios
Dados Nacionais de Segurança Pública. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024.
BENEVIDES, B. GDossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024Brasília, DF: ANTRA, 2025.
CRUXÊN, I. e JUNGS DE ALMEIDA, A. Dados contra o feminicídio.Ativismo de dados contra o feminicídio. Londres: Queen Mary University of London, 2025.
Informe feminicídios no Brasil janeiro-junho de 2024Londrina: UEL, 2024.

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