Prisões femininas e a negação da dignidade reprodutiva
No Brasil, há apenas 26 ginecologistas para 29 mil mulheres presas. Mães, em climatério ou em idade reprodutiva, enfrentam pobreza menstrual e não acessam exames preventivos ou atendimento médico. Impactos na saúde sexual perduram para além da sentença
Publicado 17/09/2025 às 17:20

Por Mariana Rosetti e Paola Churchill, na Ponte Jornalismo
Amanda Cristina da Silva, hoje aos 32 anos, passou quatro meses sangrando na Penitenciária Feminina de Votorantim, no interior de São Paulo. Primeiro, achou que era sua menstruação. Depois, que estava grávida ou sofrendo um aborto espontâneo. As dores e a intensidade do sangramento persistiram com o passar dos dias e, sem visitas, implorou por absorventes íntimos na unidade — que os cedia a contragosto e de forma racionada. Recorria às companheiras de cela para conter o fluxo.
Sabia que precisava de atendimento médico — de um ginecologista, responsável pela saúde do sistema reprodutor feminino e das mamas, cuidando de órgãos como vagina, útero, ovários e trompas —, que não era normal o corpo responder com uma hemorragia incessante. Só o que conseguiu, no entanto, foi o amparo de uma enfermeira que, sem solicitar qualquer exame, receitou dipirona. Amanda não teve qualquer outro atendimento e só depois de muitos meses conseguiu se recuperar.
O que ela passou esbarra em um problema sistêmico: no segundo semestre de 2024, o sistema prisional brasileiro dispunha de 24 ginecologistas para atender 29.137 mulheres privadas de liberdade, segundo dados do Sisdepen. O que significa dizer que cada profissional é responsável pelo atendimento de, em média, 1.214 mulheres presas.
Fora das grades, mulheres ou pessoas que menstruam também enfrentam dificuldades no atendimento ginecológico. Dentro delas, porém, essas vidas estão sob a tutela integral do Estado — que se torna responsável direto por garantir seus direitos básicos.
Número de ginecologistas despencou em 2022
Nos últimos cinco anos, o número de ginecologistas nas unidades prisionais não acompanha a população carcerária. No segundo semestre de 2020, 26 ginecologistas atendiam mais de 41 mil mulheres. O mesmo período de 2021, foram 40 ginecologistas para mais de 42 mil mulheres. O colapso mais severo ocorreu em 2022, quando o número de ginecologistas despencou drasticamente para 16 profissionais no primeiro semestre e 17 no segundo para mais de 45 mil mulheres.
A situação torna-se ainda mais preocupante quando se analisam as faixas etárias no sistema prisional. As mulheres entre 35 e 45 anos, muitas próximas à menopausa, chegaram a 9.939 em alguns semestres. As mais jovens, em idade menstrual e reprodutiva, também representam números significativos: de 18 a 24 anos somaram entre 4.208 e 7.582 mulheres; e de 25 a 29 anos, quase 8.000.
A proporção entre ginecologistas e mulheres privadas de liberdade mostra que, no 2º semestre dos últimos 5 anos, tivemos 1 ginecologista para 1.214 mulheres em 2024; 1 para 1.080 em 2023; 1 para 1.190 mulheres em 2022; 1 para 1.057 mulheres em 2021 e 1 para 1.592 mulheres em 2020.

A médica obstetra Albertina Duarte Takiuti, chefe do Ambulatório de Ginecologia na Adolescência da USP, “todas as mulheres, a partir dos 30 anos, devem fazer os marcadores tumorais, exames de sangue muito fáceis de serem feitos. O exame da tireoide, que está muito relacionado com o estresse e com a falta de vitamina D”, pontua. Já “a partir dos 40 anos, a densitometria óssea para ver se está havendo perda óssea e a mamografia.”
Além disso, a obstetra reforça a importância do atendimento ginecológico não só para queixas já existentes, mas também para o diagnóstico precoce de doenças graves como os cânceres de mama e de colo de útero. “O câncer da mama tem que ser diagnosticado nessa época, principalmente depois da menopausa. No Brasil, estima-se que 70.000 mulheres por ano têm câncer de mama, das quais 22.000 morrem — praticamente um terço, o que é extremamente grave”, explica.
Portanto, a falta de atendimento ginecológico não é um problema apenas de acesso pontual à saúde: é uma violação estrutural dos direitos reprodutivos e sexuais. A ausência desse cuidado básico compromete não só o hoje, mas também o futuro das mulheres em cárcere no Brasil.
Vulnerabilidade compromete saúde mental
Quando Amanda chegou na Penitenciária Feminina de Votorantim, recebeu um kit com uniforme, cobertor, sabonete, pasta de dente, escova e gilete, mas nenhum item de higiene menstrual. Durante os primeiros 15 dias na cela de inclusão — quando sangrou sem parar —, dependia das guardas para acessar absorventes.
Ao ser transferida para a cela, sem visitas regulares da família, Amanda precisou improvisar. Como já fazia sobrancelhas antes da prisão, começou a oferecer o serviço em troca de maços de cigarro, a moeda do cárcere. “Os maços é como se fosse o dinheiro”, explica. Era assim que conseguia comprar absorventes e outros itens de higiene.
Para as mulheres sem habilidades para “fazer um corre” — como chamam as atividades que geram renda no cárcere — e sem apoio familiar, a situação é ainda mais dramática. Além do desconforto físico, a escassez de absorventes e a falta de autonomia sobre o próprio corpo geram constrangimento e insegurança que afetam a saúde emocional. A necessidade de negociar itens básicos, além de fragilizar a autoestima, intensifica o sentimento de abandono.
A médica obstetra Albertina reforça esse cenário. Durante atendimento em uma das unidades da Fundação CASA, percebeu que diversos tipos de objetos eram utilizados para substituir o absorvente. “Mulheres jovens usavam rolha de papel, rolha normal de garrafa, rolha de plástico, vasinhos de plástico, jornal e panos colocados [para conter o sangramento]”, pontua.
“É uma situação de vulnerabilidade que vai comprometer a saúde da mulher”, pontua. “A partir desse momento, não só sua autoestima (que já está abalada) fica pior, como também sua saúde mental passa a ficar com mais esse trauma e mais comprometida”. Em um ambiente já marcado pela vigilância e pelo controle, menstruar sem condições adequadas é também uma experiência de humilhação silenciosa que corrói, pouco a pouco, a saúde mental.
Baixa escolaridade e alto número de mães
Boa parte das mulheres já ingressa no sistema prisional em situação de vulnerabilidade social evidente — e o nível de escolaridade é um dos principais indicativos disso. Das 29 mil mulheres presas no país, mais de 19 mil não completaram o ensino médio. Especificamente, 11.246 têm apenas o ensino fundamental incompleto, 2.904 completaram essa etapa, e outras 5.268 sequer terminaram o ensino médio.
Além disso, 355 são analfabetas e 761 apenas alfabetizadas. Esses dados revelam um perfil marcado por barreiras de acesso à educação, o que, somado ao encarceramento, aprofunda desigualdades e limita ainda mais o acesso a direitos fundamentais, como o cuidado com a saúde íntima e reprodutiva.

A maioria das mulheres privadas de liberdade no Brasil é mãe — o que torna ainda mais urgente o acesso a um acompanhamento ginecológico contínuo e de qualidade. Dos 29 mil registros, apenas 6.109 mulheres declararam não ter filhos, enquanto mais de 12 mil relataram ser mães de pelo menos uma criança. Há casos de mulheres com até 11 filhos, o que reforça a importância de garantir atendimento especializado voltado à saúde reprodutiva e ao planejamento familiar.

Boa parte das mulheres que estão privadas de liberdade no país não cometeram crimes contra a vida — homicídio, latrocínio, instigação ou auxílio ao suicídio, o infanticídio e o aborto. Cerca de 46,3% respondem por tráfico de drogas ou associação ao tráfico.
Para Luana Escamilla, fundadora do Fluxo sem Tabu — organização que combate a pobreza menstrual que já impactou mais de 26 mil pessoas no Brasil desde 2020 — a situação das prisões brasileiras exemplifica como a pobreza menstrual vai além da falta de absorventes.
“A gente ter 24 ginecologistas para 29.000 mulheres em cárcere é pobreza menstrual. Porque pobreza menstrual é a falta de educação, é a falta de cuidado, de você ter acesso a ginecologista”, explica. “Então, eu entendo que a pobreza menstrual vai muito além da falta do absorvente. Ela é um problema infraestrutural: de falta do acesso a recursos, do conhecimento sobre menstruação, acesso a banheiros dignos, acesso a médicos.”
Ao longo de seu projeto, Luana enfrentou dificuldades para alcançar mulheres em locais remotos, como comunidades ribeirinhas, ou no sertão. “Não dá para você doar um absorvente se a mulher não tem uma calcinha. Não dá para doar um absorvente se a mulher não tem um banheiro”, pontua.
No caso do sistema prisional, porém, a situação deveria ser diferente, observa, já que falamos de um ambiente controlado, com endereço fixo e logística facilitada para distribuição de produtos básicos. “Logicamente é uma das formas mais fáceis de realizar uma doação de um produto. Se você parar para pensar, você tem um endereço, você manda e tá todo mundo lá dentro”, argumenta.
Para ela, a negligência no sistema prisional tem raízes na invisibilidade social dessas mulheres: “Com certeza, é uma negligência, porque ninguém vê essas pessoas. Elas e suas necessidades acabam sendo completamente invisíveis. Se elas estão presas ainda, o que importa uma mulher ter dignidade dentro de um sistema prisional?”, ironiza.
Menopausa atrás das grades
Não só o ciclo menstrual e o acesso à absorventes são demandas das mulheres privadas de liberdade, mas toda a sua saúde reprodutiva, incluindo a menopausa. Quando “a mulher fica 1 ano sem menstruar”, o que costuma ocorrer entre os 45 e 54 anos, sendo que “menopausa precoce é antes dos 40 anos” e “menopausa tardia após os 55 anos”, explica Takiuti.
“Os sintomas mais frequentes são: alterações menstruais — antes da menstruação parar por completo —, ondas de calor, ressecamento vaginal, mudança da pele, dos cabelos, ganho de peso, perda de massa óssea, insônia, fadiga e também alterações do humor”, detalha.
A reportagem da Ponte esteve na saída temporária do Centro de Progressão de Pena Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, no Butantã, zona oeste de São Paulo, em 17 de junho. Na ocasião, perguntamos a mulheres sobre suas experiências com a menopausa, e se tinham acessado o atendimento ginecológico na unidade. Vilma*, aos 55 anos, está desde setembro de 2022 sem consulta ginecológica. “Às vezes sinto um calorão, com esse monte de gente junto. Dificuldade para dormir, para acordar, fora a irritabilidade”, conta sobre sintomas da menopausa que se intensificam na cela que divide com 8 presas.
Na unidade prisional, Vilma sabe que existe uma médica. Sempre que pode, ela envia um “PP” — o bilhetinho pelo qual as presas solicitam atendimento médico, mas nunca teve resposta. “A gente tenta, manda o nome, manda PP toda semana, mas eu nunca fui chamada”, explica. “Às vezes pessoas que não necessitam acabam passando duas, três vezes. E quem realmente precisa não é chamado.”
Antônia*, que também fala com a reportagem na porta do CPP, tem dificuldades para calcular há quanto tempo está presa: “Faço nem ideia, muito”, diz. O que ela lembra com precisão são os nove meses de menstruação contínua que viveu no Centro de Detenção Provisória de Franco da Rocha — uma tortura que só cessou quando chegou ao CPP do Butantã.
Quando sua menstruação parou, aos 47 anos, o que acredita ser a menopausa, sentiu alívio. “Não dá para ficar menstruada na cadeia”, resume. Em Franco da Rocha, precisou usar absorventes emprestados de outras detentas e até fraldas para conter a hemorragia. A última consulta ginecológica que teve foi há mais de dois anos, na Penitenciária Feminina de Santana, quando o médico pediu exame de urina por suspeitar de infecção. Quando o doutor a chamou para dar o resultado, a resposta foi desconcertante: “Olha, eu peguei o resultado. Não sei se é o seu.”
Noemia* tem 50 anos e 13 de prisão. Consegue contar nos dedos as consultas ginecológicas que teve ao longo de mais de uma década encarcerada. No CPP do Butantã, onde está atualmente, tentou agendar uma consulta ginecológica, mas recebeu como resposta: “Esquece, tem 100 pessoas na sua frente.” Com histórico familiar de câncer, Noemia precisa fazer exames preventivos. “É mais fácil você ir na rua, na tua saidinha, porque você não consegue passar no ginecologista aqui dentro”, foi o que ouviu. Mas as saídas temporárias são curtas demais para consultas e exames de retorno.
Para quem está na menopausa, a falta de acompanhamento significa enfrentar ondas de calor, alterações hormonais e problemas ósseos sem acesso a exames ou tratamentos adequados. Para as mais jovens, a ausência de cuidados ginecológicos pode resultar em problemas reprodutivos não diagnosticados e falta de acesso a métodos contraceptivos e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
O que dizem as autoridades
Procurada pela reportagem da Ponte, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) informou que “a Polícia Penal oferece o acolhimento necessário às mulheres presas no Estado de São Paulo, por meio de equipes de saúde próprias”. Segundo a secretaria, “em situações de emergência ou quando há necessidade de atendimento especializado de média ou alta complexidade, os custodiados são encaminhados para unidades externas, devidamente escoltados e com autorização judicial”.
A pasta destacou que “mantém convênios com municípios que prestam atendimento de Atenção Básica a presos, conforme a Deliberação CIB 62/2012”. De acordo com a SAP, “nos últimos três anos, foram realizados 4.038 atendimentos ginecológicos externos, em unidades de saúde públicas, hospitais de referência e no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, na zona norte da capital”.
A secretaria também informou que “durante todo o ano, ainda são realizadas campanhas de saúde e prevenção à saúde da mulher, como exames ginecológicos, vacinação, ultrassom e mamografia”, acrescentando que “nessas campanhas, ocorrem palestras e oficinas e são distribuídos entre as custodiadas material informativo com orientações sobre doenças e os cuidados”.
Sobre os itens fornecidos, a SAP pontuou que “as unidades prisionais fornecem roupas íntimas, que compõem o kit de uniforme, e distribuem kits de higiene pessoal”, detalhando que “entre os itens estão dois pacotes de absorventes, contendo oito unidades cada e quatro rolos de papel higiênico”. A pasta garantiu ainda que “caso a reeducanda solicite mais item, o material é reposto na quantidade necessária”.
Leia a íntegra da nota da SAP
A Polícia Penal oferece o acolhimento necessário às mulheres presas no Estado de São Paulo, por meio de equipes de saúde próprias. Em situações de emergência ou quando há necessidade de atendimento especializado de média ou alta complexidade, os custodiados são encaminhados para unidades externas, devidamente escoltados e com autorização judicial.
Atualmente, a Secretaria da Administração Penitenciária mantém convênios com municípios que prestam atendimento de Atenção Básica a presos, conforme a Deliberação CIB 62/2012. Nos últimos três anos, foram realizados 4.038 atendimentos ginecológicos externos, em unidades de saúde públicas, hospitais de referência e no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, na zona norte da capital.
Durante todo o ano, ainda são realizadas campanhas de saúde e prevenção à saúde da mulher, como exames ginecológicos, vacinação, ultrassom e mamografia. Nessas campanhas, ocorrem palestras e oficinas e são distribuídos entre e as custodiadas material informativo com orientações sobre doenças e os cuidados. As unidades prisionais fornecem roupas íntimas, que compõem o kit de uniforme, e distribuem kits de higiene pessoal. Entre os itens estão dois pacotes de absorventes, contendo oito unidades cada e quatro rolos de papel higiênico. Caso a reeducanda solicite mais item, o material é reposto na quantidade necessária.
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