Por que o neoliberalismo, em crise, ainda sobrevive?

Regime, que emerge nos anos 1970, não busca legitimidade na democracia. Pelo contrário, blinda instituições contra a decisão das maiorias. Por isso, está tão associado ao neofascismo. Foi esta transformação que Foucault não compreendeu

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Por Juarez Guimarães, em A Terra é Redonda | Imagem: Ralph Zabel

Em meio a uma crise sistêmica, da globalização e do hegemon norte-americano, de sucessivas falências financeiras e de curto circuitos em seu dinamismo econômico, de instabilidade política e perda de credibilidade de suas razões, o capitalismo neoliberal tem conseguido sobreviver e se reproduzir no século XXI. Por que?

Uma explicação, decerto, diz respeito a uma correlação de forças ainda largamente desfavorável às classes trabalhadoras no plano internacional, a partir de uma grande ofensiva capitalista iniciada nos anos oitenta do século passado e que até hoje ainda não foi invertida. Outra apontaria que ainda não se produziu com credibilidade, legitimidade e um mínimo de estabilidade uma alternativa ao capitalismo neoliberal, lembrando que um paradigma em crise permanece enquanto não for superado e não apenas criticado.

Mas há uma outra razão, que pesa sobre a própria alteração da correlação de forças e sobre a produção de alternativas ao neoliberalismo, que diz respeito ao próprio limite do entendimento do que vem a ser o neoliberalismo. Este limite tem relação central com a própria gênese dos estudos sobre o neoliberalismo, que vinha de uma matriz da crítica à economia política neoliberal e dos seminários dados por Michael Foucault no Collège de France nos anos de 1978 e 1979. Ambos careciam de um conceito político do neoliberalismo, em particular das profundas mudanças que ele provocou no regime dos Estados liberais.

Conquistas e limites de Michael Foucault

Os estudos sobre neoliberalismo devem à razão crítica, livre e selvática, de Michael Foucault a identificação de uma mutação em curso no interior do próprio campo liberal, ainda invisível e em processo de expansão para o centro desta tradição. Ali estava se produzindo uma alteração no próprio conceito de liberdade, pensado agora como ontológico a própria formação, desenvolvimento e reprodução da vida mercantil, deslocando o conceito clássico de liberdade no liberalismo. Agora não se tratava de regular negativamente a expansão do Estado pelos direitos do homo economicus liberal, delimitando e interditando o seu espaço de intervenção, mas de criar uma nova razão expansiva que deveria organizar não apenas o próprio Estado, mas toda a vida social. Esta nova razão buscava modelar a própria sociedade a partir de uma modalidade empresarial e a própria personalidade dos indivíduos, sua formação e modos de vida, a partir de sua compreensão como um capital humano em acumulação.

Outro grande mérito de Michael Foucault está em historicizar a formação do ordoliberalismo alemão desde os anos vinte do século passado, a partir das suas relações com a Escola de Viena, como reação liberal à emergência e aos impasses da República de Weimar. Esta tradição, criada por economistas e juristas alemães como Walter Eucken, William Ropke, Alexander Rustow e Franz Bohm, fazia a crítica do laissez-faire, da concepção de um funcionamento da economia de mercado sem um Estado forte que a normatizasse, garantisse suas regras e atuasse sobre suas dinâmicas hostis à concorrência.

Prevalecente no pós-guerra alemão, ela se constituiria como uma alternativa ao keynesianismo dominante na época e levaria a uma subordinação do Partido Social-Democrata alemão a seu paradigma, constituindo um capítulo importante e decisivo para a história futura da Europa. Seria exatamente esta tradição neoliberal alemã que estaria no centro do processo de unificação europeia nas décadas seguintes.

Michael Foucault diferencia, com razão, este ordoliberalismo, associado à Escola de Freiburg, da emergência do neoliberalismo nos Estados Unidos, onde há uma tradição menos estatista e onde uma nova razão mercantil pode se desenvolver mais plenamente como reguladora do Estado e como organizadora da vida social.

O neoliberalismo norte-americano, se formaria na crítica ao New Deal, e nos anos cinquenta incorporaria uma visão que atribuía um sentido virtuoso à própria formação dos monopólios, como fruto de ganhos competitivos em tecnologia e produtividade. O que Michael Foucault, então, registra é a tensão entre estas duas tradições que convergem para a necessidade de uma refundação e atualização da tradição liberal contra o liberalismo social ou keynesiano e as ameaças do socialismo.

Neste esforço de produzir um estudo da genealogia das relações entre saber e poder, podemos identificar uma grave falha conceitual, uma leitura ainda incompleta da mutação do conceito de liberdade na tradição liberal, a ausência ainda de uma história de como estas ideias se vincularam à formação de poderes políticos com dimensões geopolíticas mundiais. E, ainda, a barreira de uma crítica vulgar a Marx que o impede de ver como o neoliberalismo é orgânico à dinâmica do capitalismo em sua crise de época e em suas atualizações.

O principal déficit conceitual de Michael Foucault, expressivo de sua trajetória de um estruturalismo a uma concepção da microfísica do poder, é a ausência de um conceito de Estado, decisivo para a compreensão do que é o neoliberalismo. Michael Foucault trabalha centralmente com o conceito de governamentalidade, chegando a definir no seminário de 31 de janeiro de 1979 o Estado como sendo “o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas”. O neoliberalismo seria, então, para ele um novo regime de governamentalidade.

Ora, faz falta aqui a distinção clássica da filosofia política entre Estado (que envolve centralmente a dimensão da soberania e um princípio de legitimação desta soberania), regime (que diz respeito aos diferentes modos de exercício e reprodução do poder político, das diversas combinações possíveis entre coerção e consenso) e governo (que diz respeito ao exercício atualizado do poder no interior das regras e pactos constituídos por um regime). Certamente o neoliberalismo é mais do que uma governamentalidade, uma racionalidade de governo: é uma alteração do próprio regime do Estado liberal, uma mudança nos padrões de exercício e reprodução do poder político, em particular, uma alteração regressiva de suas dimensões democráticas e republicanas.

A leitura incompleta da mutação do conceito de liberdade que está em curso na gênese do neoliberalismo diz respeito à ausência de uma análise mais detida dos capítulos iniciais do livro A constituição da liberdade (1960), de Friedrich Hayek. Se é certo que a identificação da liberdade como somente ontologicamente possível no mundo mercantil é central para Friedrich Hayek, não é menos importante a sua desvinculação da noção de autogoverno ou de soberania popular, que marca o sentido anti-democrático e anti-republicano de raiz do neoliberalismo. Ainda, se o liberalismo do século XIX já expressava a tensão entre liberdade e igualdade, em Friedrich Hayek a linguagem liberal já faz o elogio aberto da desigualdade como intrinsecamente vinculada à aventura da liberdade no mundo mercantil.

O passo importante de Michael Foucault em estudar e demonstrar a gênese das ideias neoliberais e o modo como formou a tradição política da Alemanha no pós-guerra foi completado de um modo decisivo com o livro The Road from Mont Pelèrin; The Making of the Neoliberal Thought Collective, editado por Philip Mirowski & Dieter Plehwe em 2009. Este livro identifica a centralidade de Friedrich Hayek e da sociedade Mont Pellèrin para construí uma convergência histórica possível entre o neoliberalismo norte-americano e o ordoliberalismo, na formação de uma tradição unificada em seu pluralismo. Falta ainda a este livro, no entanto, uma identificação de como este pensamento coletivo tornou-se orgânico ao poder político, tendo como epicentro o Estado norte-americano.

Enfim, o modo vulgar como Michael Foucault se refere ao marxismo no Seminário final de 4 de abril de 1979 não deixa também de marcar o limite deste importante autor. Pois quem faz crítica vulgar, vulgariza o seu próprio pensamento. Todo um rico campo de análise da crítica do capital feita por Marx, incontornável para o estudo do neoliberalismo, fica esterilizado por esta vulgar crítica de Foucault.

Um novo regime do Estado liberal

Quando Joseph Stiglitz em 2008 na eclosão da grande crise financeira internacional – prognosticou o fim do neoliberalismo, ele provavelmente partia de um senso comum que atribuía a ele o sentido de ser uma certa orientação de políticas de governo. Mas a crise do neoliberalismo foi enfrentada a partir dos modos de regulação, pelas instituições e novas regras do exercício do poder criadas pelo próprio neoliberalismo. A crise do capitalismo neoliberal levou, então, a um aprofundamento do próprio regime neoliberal, do seu sentido anti-democrático e anti-republicano, como ficou claro nas décadas seguintes.

Quando Wendy Brown escreveu os seus referenciais Desfazendo o demos. A revolução discreta do neoliberalismo (2015) e Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política autoritária no Ocidente (2019), livros inspirados originalmente por Foucault e que procuram mapear as macro-dimensões políticas do desenvolvimento neoliberal, ela ainda carece de um tratamento conceitual do neoliberalismo como um novo regime de Estado neoliberal. Se é verdade que o neoliberalismo destrói o demos democrático, ele constrói um novo regime anti-democrático e anti-republicano. Não são propriamente nas ruínas do neoliberalismo em que se desenvolvem fenômenos autoritários e protofascistas mas como expressão mesmo de seu desenvolvimento.

Este novo regime do Estado liberal, que é o neoliberalismo, é fundamental para explicar porque ele é resiliente e se reproduz mesmo em sua crise. E poderia ser assim caracterizado.

Em primeiro lugar, a construção de uma meta legalidade não submetida ao controle democrático, como bancos centrais independentes ou autônomos, regimes de austeridade fiscal que se impõem aos escrutínios eleitorais, criação de regimes contratuais regulados por órgãos superiores, insulamento burocrático de órgãos decisivos de decisão econômica, adesão a tratados ou organismos internacionais que se impõem às soberanias nacionais.

Este regime político, como nos propõe Bob Jessop, organiza um novo regime de acumulação capitalista, centrado na hegemonia dos setores financeiros do capital, imprimindo uma dimensão global de financeirização aos ciclos capitalistas.

O novo regime neoliberal de Estado conduz a um severo encolhimento do direito público, da esfera pública, dos bens públicos em prol de uma expansão inaudita do direito privado, da privatização da informação, da formação de opinião e do debate democrático, além de privatizar a propriedade e gestão dos serviços públicos. Conduz inevitavelmente a uma crise das dimensões republicanas da democracia, da própria capacidade das democracias em institucionalizar e processar os conflitos.

Por fim, este novo regime neoliberal de Estado expande as suas dimensões coercitivas e de repressão na mesma proporção que impede o desenvolvimento e corrói a expansão dos direitos democráticos e sociais.

Quando candidatos com plataformas antineoliberais vencem eleições é contra este regime neoliberal de Estado que têm de governar. E o grau em que enfrentam ou são capazes de transformar, e não se conformar a estes regimes, define a própria aplicação de seus programas legitimados pelo voto das maiorias e, enfim, a sua própria identidade e futuro.

*Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).

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