Por que estatizar a Avibras?
Câmara debate projeto para nacionalizar a maior empresa privada de defesa do país, em grave crise financeira. A utilidade pública vai além do plano econômico: é a própria disputa por soberania e autonomia para construir um futuro estratégico
Publicado 20/10/2025 às 19:27

Por Laura Ludovico, na Le Monde Diplomatique Brasil
Nesta quarta-feira, 15 de outubro, a Câmara dos Deputados realizou audiência pública sobre o Projeto de Lei nº 2957/24, que propõe a desapropriação, por utilidade pública, da Avibras Indústria Aeroespacial S.A., maior empresa privada de defesa do Brasil. Se aprovada, a medida permitirá que a companhia passe a ser propriedade estatal, mediante indenização justa e prévia, para atender interesses estratégicos nacionais.
O texto, de autoria do deputado Guilherme Boulos (Psol-SP), justifica a iniciativa como essencial à consolidação da soberania e da defesa nacional. Mais do que uma proposta pontual, o projeto reflete dois temas centrais para o Brasil contemporâneo: a redefinição de sua política de segurança e a busca por maior autonomia econômica e tecnológica.
Embora o país seja reconhecido como potência agrícola e ator diplomático relevante, o setor de defesa segue à margem da agenda nacional. A Avibras, responsável pela produção dos sistemas de lançamento de foguetes Astros e do míssil tático de cruzeiro AV-TM 300, é peça-chave nesse cenário. Sua eventual estatização poderia transformar um ativo em crise em um polo de inovação estratégica, capaz de impulsionar o desenvolvimento industrial e tecnológico do país.
No entanto, a pergunta que paira é inevitável: por que agora? O Brasil pretende financiar guerras ou simplesmente evitar ser refém delas?
Para compreender o contexto, é preciso voltar a 2022, quando a Avibras entrou em recuperação judicial pela terceira vez. A pandemia havia desorganizado as cadeias globais de produção e deslocado prioridades orçamentárias, levando à suspensão de contratos e à queda drástica nas exportações. Mesmo assim, a empresa seguia atendendo às Forças Armadas brasileiras e exportando para países do Oriente Médio, Ásia e América Latina. Sua derrocada representava, portanto, uma perda estratégica para o Estado.
Em 2023, gigantes estrangeiras como a alemã Rheinmetall e a emiradense Edge Group demonstraram interesse em adquirir a companhia – o que acendeu o alerta sobre a vulnerabilidade do Brasil diante da cobiça internacional por seu capital tecnológico. A Avibras, apesar da fragilidade financeira, era um ativo de ouro à espera de ser capturado. E o único país que parecia não perceber isso era o próprio Brasil.
Em julho de 2023, o plano de recuperação judicial foi aprovado. Contudo, as tentativas de venda fracassaram uma a uma: em abril de 2024, a negociação com a australiana Defendtex não prosperou; em junho, o Ministério da Defesa confirmou o interesse de um investidor chinês, que também recuou; em outubro, a empresa buscava um comprador brasileiro, que desistiu em dezembro. No início de 2025, novas tratativas surgiram com uma companhia saudita e, em maio, a credora Brasil Crédito anunciou intenção de compra, ainda sem desfecho.
Nesse vácuo de decisão, soma-se outro problema histórico: a fragilidade do setor de defesa nacional. Em 2025, o governo voltou a ser criticado por sindicalistas de São José dos Campos, que denunciaram a falta de políticas efetivas para proteger a indústria estratégica do país em meio às tensões e interferências externas, sobretudo dos Estados Unidos.
A discussão sobre a estatização da Avibras, portanto, não ocorre em um vácuo político. O mundo vive uma nova fase de reconfiguração geopolítica, marcada pela ascensão de blocos como os Brics+ e pelo deslocamento do eixo de poder global. Nesse cenário, a defesa e a soberania nacional tornam-se instrumentos indispensáveis à projeção internacional. Para um país que busca liderança no Sul Global, proteger seus setores estratégicos não é apenas uma questão militar, mas também diplomática: é garantir que sua política externa de mediação e cooperação não seja enfraquecida por dependências tecnológicas ou vulnerabilidades industriais.
O Brasil, historicamente reconhecido por sua diplomacia conciliadora e pela aposta no multilateralismo, agora se vê diante de um dilema: manter-se como mediador neutro ou afirmar-se como potência autônoma, capaz de defender seus próprios interesses estratégicos. A estatização da Avibras pode ser vista como um gesto simbólico dessa transição – um movimento que combina a tradição diplomática com a necessidade de consolidar um poder material correspondente à influência política que o país pretende exercer.
É nesse contexto que o Projeto de Lei de Boulos ganha relevância. Publicado em 2024 e agora em debate na Câmara, ele reabre uma discussão que ultrapassa o campo econômico e toca o núcleo da soberania nacional.

A estatização da Avibras não é apenas uma disputa sobre propriedade – é uma disputa sobre autonomia. É decidir se o Brasil continuará vendendo seu potencial tecnológico a potências estrangeiras ou se terá coragem de investir nele como parte do seu futuro estratégico. Em tempos de incerteza global, proteger o que é nacional não significa isolamento: significa estar preparado para competir, cooperar e sobreviver em um mundo que já não perdoa ingenuidades.
Após a audiência: o peso da crise e o apelo dos trabalhadores
Durante a audiência, a crise da Avibras foi detalhada em uma linha do tempo que evidencia a dimensão do problema. Em março de 2022, a empresa pediu recuperação judicial alegando uma dívida de R$ 600 milhões. Em setembro do mesmo ano, os trabalhadores entraram em greve por causa dos atrasos salariais, um movimento que já dura mais de 31 meses, tornando-se uma das greves mais longas da história do sindicalismo brasileiro.
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Herbert Claros Weller, lembrou que esta é a terceira grande crise da Avibras e cobrou um posicionamento concreto do governo federal. Ele defendeu que a empresa seja estatizada sob controle dos trabalhadores e que o Estado assuma a responsabilidade pelos salários atrasados: “Quem tem o poder da caneta na mão? Quem é o presidente da República? É o Lula. E nós achamos que o governo tem que resolver essa situação”. “Precisamos saber qual é o aporte que o governo vai dar, porque neste momento a prioridade é o pagamento de centavo por centavo do que se deve para cada trabalhador. Por soberania e garantia de direitos: estatização da Avibras, já!”, completou Weller.
Boulos, mediador da audiência, reiterou que a estatização da empresa é uma forma de proteger a soberania nacional. Ele mencionou o recente caso do tarifaço de Donald Trump contra o Brasil, apontando que medidas como essa reforçam a importância de fortalecer setores estratégicos internos. Para o deputado, o investimento público em defesa e inovação tecnológica militar é também uma mensagem política: o Brasil precisa afirmar-se como país capaz de produzir e proteger o que é seu.
Laura Ludovico é advogada especialista em direito internacional e diretora de projetos e pesquisa do Brics Tech Fórum.
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