Políticas para mulheres: em busca de uma nova etapa

Verba para programas como Bolsa Família são importantes, mas reduzir a desigualdade exigirá mais. Movimento feminista começa a despertar para essa lacuna. É preciso olhar para dados de violência, desigualdade salarial e participação na política

.

O fato de haver uma ou mais políticas públicas com perspectiva de gênero nem sempre significa que determinado programa ou ação governamental dispõe de recursos financeiros suficientes para pôr seu planejamento em prática e impactar concretamente a vida das mulheres.

Pensando nisso, coletivos de mulheres historicamente têm pressionado o poder público para identificar dentro do orçamento do governo federal o que de fato está sendo investido nas mulheres. Algumas ações iniciaram nos anos 2000, foram descontinuadas em 2012 e retomadas timidamente a partir de 2020, com pressão de parlamentares feministas.

O artigo 165 da Constituição Federal prevê três leis orçamentárias para gestão do dinheiro público: Plano Plurianual (PPA), que tem relação com as principais metas e objetivos relacionados às despesas dos quatro anos de mandato presidencial; e duas leis anuais, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que define as prioridades anuais para o orçamento, e a Lei Orçamentária Anual (LOA), que aponta como os recursos são aplicados.

O Plano Plurianual (PPA) de 2024 trouxe inovações importantes: incluiu metas de resultados e agendas transversais – como gênero, raça, diversidade, povos indígenas e meio ambiente -, que são uma espécie de filtro que determina quais ações e qual fatia orçamentária de cada programa podem ser consideradas políticas direcionadas a uma determinada área..

A Secretaria de Orçamento Federal (SOF), órgão do Ministério do Planejamento e Orçamento, lançou em março uma opção de consulta para que a agenda transversal de gênero fique mais clara no Painel do Orçamento Federal. A ferramenta também permite consultar outras agendas transversais

Também em março, o Ministério do Planejamento lançou o relatório A Mulher no Orçamento, referente aos recursos destinados para esta área no exercício de 2023.

Para entender a situação orçamentária das mulheres no Brasil, a Gênero e Número ouviu Rita Santos, consultora de orçamento no Senado Federal e cofundadora do Elas no Orçamento — uma iniciativa colaborativa, apartidária e voluntária criada por mulheres que trabalham na área de planejamento, orçamento e finanças públicas. Rita também é doutora em Políticas Públicas e Gestão para o Desenvolvimento pela Universidade de Manchester (Reino Unido).

Alfabetização orçamentária 

Reconstruir o caminho das pedras sobre a agenda das mulheres no orçamento federal exige retornar aos anos 2000. Na época, conta Rita Santos, havia um movimento de mulheres se organizando em todo o país para cobrar a implementação de políticas públicas voltadas para mulheres, o que gerou a estruturação do primeiro Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) – organização da sociedade civil sem fins lucrativos – propôs ao Senado um mapeamento das políticas pra as mulheres dentro do orçamento federal e a divulgação dos resultados.

As próprias integrantes do CFEMEA criaram um filtro e selecionaram as ações orçamentárias com algum impacto na vida das mulheres. A equipe de consultoria do orçamento do Senado, da qual Rita faz parte, uniu o filtro criado pela organização ao demonstrativo do orçamento. Relatórios passaram a ser publicados com esse detalhamento, muito embora ainda fosse de difícil entendimento para o público leigo.

A partir dessa iniciativa da sociedade civil, começamos a enxergar o que chamamos hoje de orçamento sensível a gênero. Porque não havia iniciativa nenhuma do Poder Executivo, nem por parte da Secretaria Nacional das Mulheres”

Entender o funcionamento do orçamento público não é algo simples. Para monitorar o impacto do orçamento na vida das mulheres, foi necessário investir em formação. O CFEMEA, então, organizou encontros nacionais com coletivos de mulheres para que a equipe de consultoria do Senado pudesse oferecer oficinas.

“O fato de a iniciativa não ter vindo do Poder Executivo limitou o filtro àquilo que expressamente estava carimbado como algo pertinente às mulheres, além da compreensão de algumas políticas públicas que têm impacto em suas vidas”.

A metodologia criada pelo CFEMEA, por exemplo, considerava que o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), apesar de ser um programa para todas as pessoas, tinha uma importância muito significativa para as mulheres rurais.

Parlamentares mulheres movimentam ação 

Em 2012, durante o governo Dilma, houve uma alteração metodológica na classificação das ações orçamentárias que as tornou mais genéricas, o que dificultou verificar a perspectiva de gênero.

“Pegaram as ações de combate à violência contra a mulher, a ação de desarmamento, a fiscalização de fronteiras e colocaram tudo dentro de uma ação geral chamada Fortalecimento da Segurança Pública. Aí você já não sabia mais o que era das mulheres, o que era das armas e assim por diante”.

A junção de diferentes programas em uma única ação acabou por descontinuar o filtro criado pela sociedade civil e a consultoria do Senado. Ao longo de oito anos, até 2020, não houve produção desse tipo de informação.

Em 2020, por conta de um movimento da bancada feminista no Congresso Nacional, foi criada a Secretaria da Mulher na Câmara dos Deputados. As parlamentares, por sua vez, conseguiram aprovar um dispositivo na Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) obrigando o Executivo a publicar anualmente um demonstrativo do que seria o orçamento voltado para as mulheres. O governo Bolsonaro chegou a vetar a obrigatoriedade de o Executivo publicar a informação, mas o Congresso derrubou o veto.

“Veja, no começo dessa história, na década de 2000, a gente publicava um demonstrativo que permitia às mulheres acompanhar, com atualização online quase que diária, todos os valores que estavam sendo autorizados, executados, liquidados e pagos. O que a gente conseguiu resgatar em 2020 foi um documento estático, em PDF, e anual. O acesso a esta informação ainda estava muito insatisfatório.”

Para Rita, o dispositivo criado na LDO é uma iniciativa precária, uma vez que depende de aprovação anual e, por sua vez, está à mercê de vetos, a depender do governo que está na atuação. Na avaliação dela, seria necessário instituir uma normativa permanente que pudesse assegurar uma ação de Estado.

Recursos para mulheres e políticas universais

O relatório referente a 2022 demonstrou um investimento de pouco mais de R$ 300 bilhões em políticas para mulheres. Segundo Rita, boa parte desses recursos não auxilia o desenvolvimento da vida das mulheres, mas serve de base de sobrevivência para homens e mulheres em situação de vulnerabilidade.

“Dentro desse montante, tem o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Bolsa Família e a merenda escolar. Só isso já chegou perto dos R$ 300 bilhões. Não quero dizer que os gastos universais não têm impacto, claro que têm. Mas eles servem como colchão para impedir que as pessoas, não só mulheres, caiam na extrema pobreza”.

Quando o olhar se volta para questões que vão além das políticas universais e contribuem para a desigualdade de gênero, como os indicadores de violência, o diferencial de remuneração, a empregabilidade da mulher e a inserção da mulher nos processos políticos, Rita avalia que não houve uma evolução significativa nos últimos 20 anos.

Leia Também: