Pochmann: Como quebrar a roda do regresso?

A história parece se repetir. Dependência do comércio externo e predominância do rentismo aproximam a República Velha do neoliberalismo de hoje. No intervalo entre esses períodos, lições para pensar um novo desenvolvimentismo no século XXI

Arte: Mihai Cauli
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Por Márcio Pochmann, em A Terra é Redonda

Mesmo com mudanças institucionais, tecnológicas e políticas inegáveis, as passagens do século XIX para o XX e do século XX para o XXI apontam tanto o bloqueio ao estruturante desenvolvimento nacional como a prevalência da desigualdade assentada na riqueza concentrada. Isso parece ser o caso de dois períodos históricos distintos, porém marcados por experiências democráticas dominantes com fortes traços liberais na República Velha (1889-1930) e neoliberais na Nova República (após 1985).

De certa forma, os dois intervalos de tempo convergem por serem expressão transitória de sociedades antecedentes em ruínas em plena mudança do capitalismo global. Enquanto a República Velha sucedeu a monarquia escravista em colapso durante a longa depressão do capitalismo inglês (1873-1896), a Nova República se consolidou na crise da sociedade urbana e industrial coincidente com o declínio da hegemonia capitalista dos Estados Unidos desde o final do século XX.

Se considerar o que havia antes da República Velha (monarquia escravista) e o que a sucedeu a partir da Revolução de 1930, identifica-se entre os anos de 1889 e 1930 a temporalidade transitória entre dois regimes políticos distintos sucedidos pelo declínio e ascensão oligárquicas. Isso porque a ausência política hegemônica entre as forças do velho e as do novo concederia uma situação temporal em disputas sobre um futuro que permaneceria indefinido.

Nesse mesmo sentido, poder-se-ia identificar a Nova República enquanto um regime político transitório? Evidente que o regime político-democrático instalado a partir de 1985 se caracterizou, ao longo das últimas quatro décadas, pela escassez de maiorias estáveis das forças do novo, pois foram constantemente questionadas, quando não interrompidas, por força do velho, impondo uma espécie de cancelamento do futuro.

O que se sabe até o momento é que os dois períodos históricos distintos parecem cada vez mais guardarem similaridades de continuidades estruturais. De um lado, pelos ganhos de minorias equivalentes (rentistas financeiros e grandes exportadores e importadores) que constituem a base da desigualdade estrutural expressada na subordinação condutora da política aos interesses econômicos dominantes, sejam internos, sejam externos.

De outro lado, a trajetória comum prevalecente no enfraquecimento sistemático do Poder Executivo ancorado no sistema político contaminado pela fragmentação dos interesses partidários junto ao Poder Legislativo capturado por elites econômica, financeira, comercial e agrarista. Um jogo de poder que guardada a devida proporção marcam dois períodos históricos com o Estado operando enquanto instrumento de manutenção de privilégios, seja no liberalismo da República Velha, seja no neoliberalismo da Nova República.

Embora possam ser identificadas como duas experiências políticas democráticas que funcionaram a seu modo (democracia censitária até 1930 e democracia de massa após 1985), nota-se que o conjunto de mudanças ocorridas evidenciou mais à sua natureza formal que a realidade de reformas estruturais profundas. Para tanto, basta mencionar brevemente tanto o programa político dos abolicionistas que tratou da inclusão social e emancipação dos libertos como o documento Esperança e mudança lançado pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) na fase final da ditadura civil-militar, em 1982.

Ambos projetos pretendidos de reformas estruturantes do desenvolvimento não foram realizados nos períodos históricos da República Velha e da Nova República. Mesmo se tratando de sociedades distintas, prevaleceu o registro da continuidade estrutural associada ao padrão rentista de um capitalismo periférico e dependente.

Um bom exemplo disso pode ser observado no tratamento da questão social. Enquanto a Velha República compreendia a questão social com um caso de polícia, vários governos da Nova República remodelaram as políticas públicas em torno da inclusão social, sobretudo nos segmentos pertencentes ao “andar de baixo” da sociedade.

Mas por ser incapaz de conseguir romper com a lógica excludente e o bloqueio ao horizonte do desenvolvimento, o ciclo político da Nova República permaneceu submetida à regressão capitalista que resulta do colapso da industrialização nacional na transição para uma sociedade de serviços hiperconectada. De outra forma, a República Velha terminou prisioneira do capitalismo nascente e de baixo dinamismo econômico na sociedade agrária pós-escravista, dominada pelos interesses do comércio externo e o rentismo.

A predominância do rentismo e do comércio externo

Nas décadas de 1930 e 1970, o papel do Estado na promoção da industrialização foi central no avanço do projeto nacional desenvolvimentista que se apresentou com um interregno temporal entre a República Velha e a Nova República. Nesses dois períodos históricos distintos, a função do Estado foi bem diferente, distante, contudo, do planejamento de médio e longo prazos.

Em geral, a gestão das emergências prevaleceu diante da submissão da política à economia operada por ações estatais de curtoprazismo. Assim predominou a força de setores econômicos vinculados, sobretudo, às altas finanças e ao comércio externo exportador de produtos primários e importador de mercadorias com maior valor agregado, conteúdo tecnológico e empregos superiores.

Enquanto refém dos interesses privados dominantes, seja da aristocracia agrária, seja da elite rentista, o Estado se viu asfixiado nos dois períodos históricos em evidência, obstaculizando a promoção do desenvolvimento pleno e democrático. Durante a República Velha, por exemplo, o Brasil era uma economia agroexportadora, sendo o café responsável por cerca de 70% das exportações nacionais.

Pelo convênio de Taubaté, em 1906, por exemplo, a política de valorização do café conduzida pelo Estado equivalia a uma espécie de rentismo institucionalizado. De um lado, a compra do excedente da produção pelo governo buscava manter preços internacionais e garantir lucros no comércio externo a partir do financiamento das operações com empréstimos estrangeiros. De outro, a gestão da dívida pública favorável ao rentismo financeiro era acompanhada pelo ônus maior para a sociedade, especialmente a parcela mais pobre.

Com a Nova República, o sucesso consolidado pela geração do excedente exportador encontra-se centrado no comércio externo de produtos primários, como minério de ferro, soja, petróleo e carnes. A reprimarização da pauta exportadora esvaziou o risco das crises de balança de pagamento, obscurecendo a especialização produtiva e a estagnação da produtividade resultantes da dominância do receituário neoliberal compatível com a lógica da financeirização.

Embora o Estado protetor não se reduziu como no passado quase estrito aos cafeicultores, as exportações de commodities contaram com o constante e fundamental apoio dos recursos governamentais. Não obstante a prevalência da política de austeridade fiscal, o Estado atuou como garantidor dos lucros rentistas potencializados pela abertura financeira assentada no regime de alta taxa de juros e rolagem do endividamento público desde os anos de 1990.

Nesse sentido, a forma contemporânea do rentismo fundamenta-se nos ganhos financeiros obtidos pelo endividamento do setor público. Ao mesmo tempo que prevalece o estágio de fraqueza da economia ao longo do tempo diante do contido investimento produtivo e do baixo desempenho na geração dos empregos de qualidade.

A barreira ao desenvolvimento pleno e democrático se deve, em grande medida, à apropriação improdutiva exercida pelo rentismo sobre os excedentes econômicos quando não reinvestidos na modernização e no fortalecimento da estrutura produtiva complexa, integrada e diversificada. Um reforço continuado no tempo em prol da elite não industrial e patrimonialista, complementado pela atuação do Estado como extensão dos interesses privados internos e externos.

Uma brevíssima comparação, em resumo, da República Velha com a Nova República permite notar como o Brasil não conseguiu superar as suas bases históricas de um processo de acumulação de riqueza desigual e excludente. O rentismo extrativista e/ou financeiro parece prevalecer desafiando o repensar urgente e necessário a respeito das funções do Estado, da política econômica e da justiça distributiva no Brasil contemporâneo com o olhar para o segundo quarto do século XXI.

Marcio Pochmann, professor titular de economia na Unicamp, é o atual presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Autor, entre outros livros, de Novos horizontes do Brasil na quarta transformação estrutural (Editora da Unicamp). [https://amzn.to/46jSkQk]

Referências


HOLANDA, S. Do Império à República. São Paulo: Difel, 1985; SOARES, R. Entre oligarquias. Rio de Janeiro: FGV, 2024.

FERNANDES, F. Poder e contrapoder na América Latina. São Paulo: Expressão Popular, 2015; SAMPAIO JR., P. A. Entre a nação e barbárie: os dilemas do capitalismo dependente. Petrópolis: Vozes, 1999.

VITAGLIANO, L. ; POCHMANN, N. O atraso do futuro e o “homem cordial”. São Paulo: Hucitec, 2024; FISHER, M. The Slow Cancellation of the Future. In: Ghosts of my Life: Writings on Depression, Hauntology and Lost Futures. Washington: Zero books, 2014; BERARDI, F.  Depois do Futuro. São Paulo: UBU, 2019.

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