Peru: as peças da trama de um golpe

Derrotada por Pedro Castillo, Keiko Fujimori reúne tropa de advogados para contestar as urnas – e tumultuar o processo democratico. Ela conta com assessoria de especialistas em golpes sujos, com ligações estreitas com a Embaixada dos EUA

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Por José Carlos Llerena Robles e Vijay Prashad, no Counter Punch, em tradução na Carta Maior

Pedro Castillo do partido Perú Libre já começou a receber congratulações de todo o mundo. É certo que ele ganhou as eleições presidenciais de 6 de junho. O Escritório Nacional de Processos Eleitorais – ONPE – anunciou os resultados finais: Castillo recebeu 50,125% dos votos (8.83 milhões), contra 49,875% (8.79 milhões) de sua opositora no segundo turno, Keiko Fujimori, da Fuerza Popular. Por todos os números, Fujimori perdeu a eleição.

Entretanto, a candidata da direita se recusa a reconhecer a derrota. Na verdade, ela contratou as melhores mentes da advocacia do Peru para contestar os resultados eleitorais. Poucas horas depois que os boletins eleitorais começaram a ser divulgados, a equipe de Fujimori entrou com 134 pedidos de anulação de votos e de atas, e adiantou que já tinha prontos outros 811. Todos que conhecem a fraternidade judicial peruana percebe que alguns dos mais importantes nomes estão na lista de Fujimori: Echecopar; Gersi; Miranda & Amado; Payet, Rey, Cauvi, Pérez; Rodrigo, Elías & Medrano; Rubio Leguía Normand; Rebaza, Alcázar & De las Casas. Apenas em Lima a equipe tem mais de 30 advogados trabalhando. O grupo de Fujimori reuniu esses advogados mesmo antes da votação, antecipando a possibilidade da vitória de Castillo e a necessidade de levá-lo aos tribunais. O exército legal de colarinhos brancos armou uma estratégia racista de lawfare; todo o jogo visa invalidar os votos do núcleo de apoio de Castillo, ou seja, as comunidades indígenas do Peru.

Pedro Castillo, durante campanha eleitoral, em Lima, em maio (Miguel Yovera/Bloomberg)

Os Estados Unidos nomearam este ano um novo embaixador para o Peru. Trata-se de Lisa Kenna, ex-assessora do secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, uma veterana de nove anos na Agência Central de Inteligência (CIA), funcionária no Iraque do secretário de Estado e envolvida no escândalo Trump-Ucrânia. Pouco antes da eleição, a embaixadora Kenna divulgou um vídeo, no qual ressalta os estreitos laços entre os EUA e o Peru e a necessidade de uma transição presidencial pacífica. A “transição presidencial estabelece um exemplo para toda a região”, adiantou, como se antecipasse um desafio legal. Se existe alguém que sabe sobre interferência no processo eleitoral na América Latina, esse alguém são os Estados Unidos.

Mas também membros-chave do time da Keiko Fujimori, como Fernando Rospigliosi. Este ex-ministro do Interior do presidente Alejandro Toledo uniu-se à equipe de Fujimori exatamente para esse tipo de contestação legal (por anos, Rospigliosi vinha sendo grande crítico dos crimes cometidos pelo pai de Keiko, o ex-presidente Alberto Fujimori, que cumpre sentença na prisão). Trabalhar com a embaixada dos EUA consta no currículo de Rospigliosi. Em 2005, o ex-militar de tendência esquerdista Ollanta Humala se mostrou disposto a entrar na disputa presidencial de abril de 2006. As pesquisas indicavam que Humala, que havia tentado um golpe contra o pai de Keiko Fujimori em 2000, tinha grande apoio popular. Alguns até pensavam que Humala seguiria os passos de Hugo Chávez e Evo Morales e faria o Peru caminhar para a esquerda. Naquela época, Rospigliosi foi à embaixada dos EUA buscar apoio para impedir a vitória de Humala.

Em 18 de novembro de 2005, Rospigliosi e o ex-ministro do Interior Ruben Vargas foram almoçar na embaixada. Eles apresentaram suas “preocupações sobre a perspectiva de o ultranacionalista Ollanta Humala se estabelecer como uma força política a ser reconhecida”. Rospigliosi e Vargas trabalharam com uma ONG chamada Capital Humano y Social (CHS), que prestava serviço para o Gabinete de Aplicação das Leis e Assuntos sobre Narcóticos (NAS, na sigla em inglês), do governo estadunidense. Rospigliosi e Vargas pediram à embaixada dos EUA para orientarem sua contratada empresa de comunicação Nexum a “monitorar a cobertura de Humala e promover notícias e comentários anti-Humala nas regiões cocaleiras”. Eles queriam que a embaixada usasse seus fabulosos recursos para minar a imagem de Humala.

Os EUA estavam preocupados com pronunciamentos de Humala contra a presença militar estadunidense no Peru e seus laços com Hugo Chávez. A embaixada dos EUA gostou do que ouviu de Rospigliosi e Vargas. Humala perdeu a eleição de 2006. Mas ele venceu a de 2011, derrotando Keiko Fujimori; mas então, Humala tinha se estabelecido como candidato dos neoliberais, visto pelos EUA como alguém inofensivo e útil. Em 19 de maio de 2011, Humala assinou um documento que o amarrou à agenda neoliberal (“Compromiso en Defensa de la Democracia”). Na ocasião, ele foi abençoado pelo poderoso chefão da direita do Peru, o escritor Mario Vargas Llosa.

Keiko Fujimori trama um golpe no Peru com a tentativa de anulação de urnas em que Pedro Castillo obteve mais votos (Gian Masko/AFP)

Vargas Llosa é uma figura-chave no país, aproveitando seu prestígio como prêmio Nobel de Literatura de 2010. Quando chegaram as notícias dando conta que Pedro Castillo havia tido uma votação avassaladora na zona rural, Vargas Llosa menosprezou os eleitores da região e advertiu que o Peru se tornaria uma Venezuela e isso seria uma catástrofe para o país. Temperado na bílis do racismo, Vargas Llosa se uniu a outros intelectuais da extrema-direita para diminuir os trabalhadores e camponeses peruanos, numa tática visando ajudar a encobrir o golpe sendo processado no ONPE.

Tudo parece acertado: uma embaixadora dos EUA com credenciais da CIA, um homem especialista em golpes sujos com o hábito de ir à embaixada pedir ajuda para satanizar a esquerda, um importante idoso com alergia a seu próprio povo e uma candidata cujo pai foi apoiado pela oligarquia quando promoveu um autogolpe em 1992.

Pedro Castillo continua a dominar as ruas. A multidão se manifesta. Ela não quer que sua eleição seja roubada. Mas existe medo no Peru. Forças obscuras rondam o país. O povo será capaz de derrotá-las?

José Carlos Llerena Robles é um educador, integrante do movimento popular peruano La Junta.

Vijay Prashad é correspondente do Globetrotter, diretor do Institute for Social Research e editor chefe do LeftWord Books. Seu mais recente livro é Washington Bullets,com prefácio de Evo Morales Ayma.

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