Pandemia e atraso: a trágica marcha da covid ao interior

A doença migra dos grandes centros para o Brasil profundo. Faltam informações e UTIs. Sobram individualismo e cultura machista do descuidado. De olho nas eleiçẽos, prefeitos tomam decisões temerárias, como a reabertura do comércio

.

Por Amanda Rossi, na Piauí

“Estou ligando porque você gostava muito dele e merece saber: o primo Armando morreu”, ouviu a aposentada Ana Lúcia Santana, em 23 de julho. Fazia dez dias que ela estava internada com Covid-19 em Aracaju, capital de Sergipe, a 107 km de casa. Sua cidade, a pequena Cedro de São João, com 5,9 mil habitantes, não tem hospital. O primo, porteiro na escola onde Ana Lúcia fora professora e diretora, também pegou a doença e precisou ser internado em uma cidade vizinha, Propriá. Uma irmã de Ana Lúcia, também com Covid-19, foi hospitalizada em outro município da região, Lagarto. Muitos outros conterrâneos estavam doentes. Preocupada e respirando com a ajuda de um balão de oxigênio, a aposentada consultava o boletim epidemiológico de Cedro de São João diariamente. Quando o número de mortos subia, procurava saber: “Quem foi dessa vez?”

A Covid-19 demorou a chegar em Cedro de São João, mas, quando chegou, se espalhou rapidamente. Em 2 de maio, foram registrados os primeiros dois casos. Em 7 de julho, ocorreu o primeiro óbito. Na última quarta-feira, a cidade chegou a dez mortes. É 1,7 morte a cada 1 mil habitantes, em um intervalo de quarenta dias, a maior taxa de mortalidade de Sergipe e uma das maiores do país. Para comparação, a cidade de São Paulo, que registra mortes desde fevereiro, tem até agora 0,9 morte por 1 mil habitantes. “A gente não achava que a Covid-19 fosse chegar a Cedro de São João assim. É uma cidade pequena. Eu conheço todas as pessoas que morreram”, fala Ana Lúcia. A aposentada deixou o hospital no fim de julho, mas está de volta a Aracaju para tratar sequelas deixadas pela doença. “Graças a Deus estou viva e contando essa história, mas não está sendo fácil. Tenho muita fraqueza e dificuldade de respirar.”

Depois de debutar nos bairros ricos das capitais brasileiras, a Covid-19 se espalhou para as periferias metropolitanas. Em seguida, foi crescendo pelo interior do país. Em meados de março, apenas 8% das mortes por Covid-19 ocorriam no interior, e 92% nas regiões metropolitanas. Na primeira semana de agosto, o interior assumiu a dianteira e se tornou o novo epicentro da Covid-19 no Brasil, com 51% das novas mortes pelo novo coronavírus. Em Sergipe, o peso da cidades interioranas é ainda maior: 58%.

A transformação do interior em epicentro da Covid-19 inaugura uma nova fase de combate à pandemia no Brasil, mais difícil de gerir. As mortes não estão mais concentradas em 27 regiões metropolitanas, mas em mais de 5 mil municípios interioranos que já registraram casos. Entre eles, não há uniformidade de ações. Cada um pode enfrentar o vírus de um jeito, ao sabor da política local. “A criação do SUS gerou a tendência de municipalização da saúde. Isso foi excelente, exceto para controle de epidemias, que deveria ter um órgão federal. Como não há, a variação de ações é absurda”, diz o epidemiologista Paulo Lotufo, professor de medicina da Universidade de São Paulo.

Marco Aurélio Góes, diretor de Vigilância e Saúde da Secretaria de Saúde de Sergipe, exemplifica: “Em Sergipe, a gente tentou implementar o teste RT-PCR [o teste mais confiável para Covid-19] em todas as cidades. Mas tem município que diz que prefere o teste rápido, porque o RT-PCR demanda EPI [equipamento de proteção individual, usado pelas equipes de saúde para evitar contaminação] e o transporte da amostra para ser analisada em Aracaju. A gente tenta convencer que o RT-PCR é o melhor para esse momento da pandemia, mas a decisão é do município.” Paulo Lotufo dá outros exemplos: “Jaboticabal (SP) e Araraquara (SP) fizeram um trabalho incrível. Enquanto isso, em Itajaí (SC), o prefeito promoveu homeopatia, ivermectina e depois ozônio retal. Dessa forma, o combate à pandemia fica mais refém de politicagem. Em ano eleitoral, é pior ainda.” As eleições para prefeito e vereador estão previstas para novembro. 

A pulverização de políticas públicas é apenas um dos desafios de gerir a pandemia no interior. Outro é que, fora das capitais, há menos acesso a serviços de saúde. Enquanto nas regiões metropolitanas há treze leitos de UTI exclusivos para Covid para cada 100 mil habitantes, no interior são sete. O mesmo ocorre com leitos de UTI em geral, respiradores, leitos de enfermaria, equipamentos para realização e análise de exames. Por isso, Ana Lúcia Santana, sua irmã e seu primo precisaram ser transferidos de Cedro de São João para outras cidades. Se a identificação dos casos e o transporte para cidades maiores não for rápido, a “mortalidade no interior pode ser maior”, avalia Lotufo, da USP.

“A Covid-19 pode evoluir rapidamente para uma forma grave, necessitando de atendimento especializado imediato. Mas hospitais, UTIs e equipamentos de diálise estão concentrados em cidades maiores. Esse é o principal desafio do aumento de casos no interior, principalmente em cidades menores e povoados”, diz Góes, da Secretaria de Saúde de Sergipe. Além disso, “em cidades mais pobres e em comunidades rurais do Brasil, as pessoas têm probabilidade menor de ter saneamento adequado, oportunidade de trabalhar em home office e acesso a serviços de saúde, contribuindo para a disseminação da Sars-CoV-2 e um alto número de óbitos”, avalia Paulo Ricardo Martins-Filho, epidemiologista e professor da Universidade Federal de Sergipe.

Em Cedro de São João, a prefeitura adotou ações ambíguas. Por um lado, criou barreiras sanitárias nas duas entradas da cidade. Por outro, permitiu a continuidade da feira livre, uma das principais formas de comércio local, durante a maior parte da pandemia. Agora, os números negativos preocupam o grupo político no poder. O secretário municipal de Saúde, Danilo Morais, agendou entrevista com a revista piauí duas vezes, desmarcou, e não atendeu mais. A responsável pela atenção primária de saúde bloqueou a repórter após pedido de entrevista. Procurado, o gabinete do prefeito não respondeu.

“A cidade é muito envolvida em política”, explica a ex-diretora de escola Ana Lúcia. São dois grupos políticos: os “vermelhos”, ligados ao MDB, e os “azuis”, do DEM, que governam a cidade desde 2008. Por isso, estão pintados de azul a prefeitura, bancos de praça e meios-fios da cidade. A disputa é tanta que a Paróquia São João Batista, a principal de Cedro de São João, evita usar qualquer uma das duas cores, para não aborrecer os fiéis. 

A pandemia chegou para dividir ainda mais a população. Uns escolheram ficar em casa. Outros, desafiar as orientações de isolamento social. “A gente fala: ‘permaneça em casa’, mas tem muita gente na rua. Cedro de São João é uma cidade pequena e, ao mesmo tempo, é uma cidade teimosa”, relata Haleph Ferreira, coordenador da Pastoral de Comunicação da Paróquia São João Batista. A cidade teve um dos piores índices de isolamento social de Sergipe – na média, uma redução de menos de 40% no movimento.  

“Muita gente não acreditava que fosse ter Covid em Cedro de São João. É uma cidade pequena, onde o pessoal tem o costume de ficar na praça conversando. Às 6 horas da manhã, já começam a formar bloquinhos [nas praças]. E as pessoas não queriam usar máscara, ficavam sentadas nos bancos, a polícia tinha que tirar o pessoal”, conta a professora aposentada Ana Lúcia Santana. O principal ponto de aglomeração era a praça central, em frente à prefeitura, com seu coreto também pintado de azul.

Seguindo uma determinação estadual, a prefeitura chegou a interditar essa e outras praças da cidade. Mas pouco adiantou. “Nesta praça aqui, nós já colocamos [fitas de interdição] quatro vezes. O pessoal tem arrancado as fitas. Tem inclusive tomado bebidas, vocês observem que tem uma latinha naquela mesa [azul]. Se vocês souberem quem está fazendo essa desordem, de cortar [as fitas de interdição], já são quatro vezes, a gente solicita que vocês nos avisem”, esbravejou o secretário municipal de Saúde, em vídeo publicado nas redes sociais no final de abril.

Em 31 de julho, a morte de um homem de 72 anos por Covid-19 soou como um alerta mórbido e logo virou o principal assunto da cidade. “Ele dizia que a pandemia não existia, que era uma coisa política”, diz Ferreira. “Ele era um dos que estavam sempre na praça central. Dizia que não usava máscara porque isso [o coronavírus] não pegava nele, não. Mas pegou, ele ficou muito mal e faleceu. O próprio presidente [Jair Bolsonaro] saía muito. Ía para o meio do povo sem proteção. Muita gente acreditou no sistema dele”, compara Ana Lúcia.

A politização da pandemia por Bolsonaro não só influenciou o hábito de parte da população, como também estimulou a batalha de narrativas entre grupos políticos municipais. Em 15 de maio, um portal de notícias de Cedro de São João publicou: “Comunicado urgente: Prezados prefeitos e vereadores! Avisamos às Vossas Senhorias que o PICO da PANDEMIA será dia 04/10/2020 NAS URNAS e os que colaboraram com a histeria e corrupção do coronavírus SERÃO LEMBRADOS!” No final daquele mês, o anúncio do prefeito Neudo Alves (DEM) de que estava com Covid-19 gerou descrença nos partidários da oposição. 

Quando a primeira pessoa da cidade morreu, no início de junho, também pairaram dúvidas. Em resposta ao boletim epidemiológico que comunicou a morte, uma pessoa escreveu: “É incrível ter um óbito na cidade e a população não tem conhecimento.” Dois dias depois, a Secretaria Municipal de Saúde publicou nas redes sociais uma imagem com os dizeres: “A ignorância dura até surgir um caso na família. Depois disso, as piadas perdem a graça.”

Outras cidades, seguindo o exemplo de Bolsonaro, tentaram minimizar a Covid-19. “O que dificultou muito nosso trabalho foi a tentativa de alguns municípios negarem a existência da doença. Houve uma guerra de narrativas. O número de casos novos é fácil de esconder, basta não testar ou orientar a equipe [de vigilância municipal] a não notificar. Já os óbitos não dá para esconder”, diz Magda Almeida, Secretária Executiva de Vigilância e Regulação do governo do Ceará (PT). Em Sergipe, a situação foi semelhante, segundo Marco Aurélio Góes. “Como a estrutura de saúde é concentrada na capital, muitas vezes o Estado sabia do resultado do exame de Covid-19 ou da morte antes da prefeitura. Então, quando informávamos o município, negavam que era Covid-19 ou diziam que a pessoa não morava naquela cidade, só visitava. O gestor municipal tinha medo de ser responsabilizado pelo aumento de casos e óbitos da doença.” 

Apesar de estar no ápice da pandemia, Cedro de São João já começou a voltar à vida normal, com o comércio funcionando. Uma das últimas a abrir foi a Paróquia São João Batista. Depois de quase cinco meses fechada por causa da pandemia, e transmitindo as missas pelo YouTube, voltou a receber os fiéis no último fim de semana. A diferença é que, nos bancos onde antes se sentavam até quatro pessoas, agora só pode haver um paroquiano. Para lidar com o espaço reduzido, foi preciso distribuir senhas. A aposentada Ana Lúcia Santana tinha se inscrito para pegar a senha da missa da reabertura. Mas teve que tirar o nome da lista. Dias antes da celebração, precisou voltar a Aracaju para tratar a falta de ar persistente. Na praça, na escola, na vida de cada um, as sequelas da Covid não irão embora tão cedo.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também: