Onde foi parar o fogo nas favelas?

Há dez anos, sucessão de incêndios expulsou famílias pobres do centro de SP. CPI chegou a relacioná-los às condições climáticas. Agora, na pior seca em décadas, esses números caíram – mas não as coincidências que ligam esses “desastres” à gentrificação

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Por Cesar Vieira, na CartaCapital

Há pouco mais de dez anos, um dos principais temas nos noticiários brasileiros era o crescente número de incêndios em favelas, o que afetava, principalmente, a cidade de São Paulo. Segundo o relatório de 2012 da CPI dos Incêndios na Câmara Municipal de São Paulo, as excessivas ocorrências se deviam a um conjunto de fatores climáticos, principalmente a correlação entre a baixa umidade relativa do ar e a falta de chuvas.

Mais de uma década depois, mesmo com o mês de junho de 2024 sendo o mais seco na capital paulista desde 1961, o número de incêndios que atingiam grandes quantidades de barracos em comunidades carentes nas regiões mais valorizadas da cidade não colaborou para validar a hipótese dos vereadores paulistanos. Ao invés de uma correlação entre o número de queimadas e as condições climáticas, o que se pôde notar no transcorrer desse período foi um incrível paralelismo entre a crise dos setores imobiliário e da construção civil, principalmente após a Lava Jato, com o desaparecimento das notícias sobre esses incêndios nos principais meios de comunicação do País.

Apesar da diminuição no número de casos ser notória, principalmente por causa da cobertura midiática, dados obtidos através do Corpo de Bombeiros dificultam a análise da situação, uma vez que, a partir de 2016, passou-se a adotar uma nova metodologia de contagem para esse tipo de ocorrência. Os incêndios em favelas ou comunidades está circunscrito nas Edificações não sujeitas ao Regulamento de Segurança Contra Incêndios (RSCI), que também inclui tendas, barracas e palcos montados para shows, que são construídas para eventos de curta duração, galpões, estábulos e silos em áreas rurais, que podem ter características construtivas diferentes das edificações urbanas, edificações tombadas pelo poder público e pequenos comércios, como lojinhas de roupas e escritórios.

Ou seja, as informações sobre incêndios que não estão sujeitos ao RSCI, apesar de serem os dados oficiais indicados quando perguntamos ao serviço de informação do Corpo de Bombeiros sobre incêndios em favelas, não conseguem dar um panorama real do problema. Ainda assim, os incêndios em edificações não sujeitas ao RSCI mantêm uma média de mais de 4 mil casos por ano, sem qualquer relação de causa e efeito com as condições climáticas, demonstrando que a conclusão do relatório final da CPI dos incêndios não se sustentou no tempo. As grandes ocorrências com fogo em comunidades carentes, aquelas que apareciam recorrentemente nos jornais, diminuíram prodigiosamente, ao passo que a umidade relativa do ar e os índices pluviométricos da cidade não indicam nenhuma correlação de causa e efeito nos anos seguintes à CPI.

Nesse contexto, é importante notar que a diminuição dos incêndios em favelas, principalmente nas regiões mais valorizadas da cidade, não se deveu a nenhum programa específico de combate e prevenção às queimadas. Anunciado como projeto modelo pela gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab, o Programa de Prevenção Contra Incêndios em Assentamentos Precários (Previn) foi descontinuado em 2017 e, segundo a Administração Municipal, nenhum programa foi colocado para substituí-lo. Sem o combustível da especulação imobiliária enfraquecida pela crise econômica, social e política que assolou o Brasil nos últimos anos, coincidentemente, passamos a não ver mais a massa de despejos e desapropriações emergenciais de comunidades inteiras afetadas pelo fogo sob o argumento do risco aos moradores.

Essa íntima relação entre incêndios em regiões valorizadas de São Paulo e os dados econômicos sempre despertou indagações inquietantes. Em 2011, após um incêndio na Favela Real Parque, área de abrangência da Operação Urbana Águas Espraiadas – que também envolve a Faria Lima – a prefeitura emitiu Certificados de Potencial Adicional de Crescimento (Cepacs) – títulos públicos que permitem a construção de empreendimentos acima do permitido pelas leis de zoneamento da cidade –  no valor de 1.100 reais o metro quadrado.

Devido à alta demanda e à valorização da área após o incêndio, esses mesmos papéis foram revendidos rapidamente no mercado secundário por valores que chegavam a 11.000 reais. Conforme a crise econômica avançou nos anos seguintes, os interesses por esses títulos diminuíram e, em 2017, a qdministração João Dória vendeu apenas 22% dos Cepacs ofertados na mesma região da Faria Lima. Curiosamente, no ano anterior, o Previn havia registrado apenas três grandes incêndios em favelas na Capital.

Dez anos depois do incêndio no Real Parque, em 2021, foi promulgada a Lei Municipal 17.561/2021, que estabeleceu um valor mínimo de 900 reais para os Cepacs Residenciais e 1.100 reais para os Cepacs Não Residenciais. Ou seja, os papéis atrelados a áreas de construção sofreram forte desvalorização, ao passo que o valor dos imóveis cresceu cerca de 200% no mesmo período, segundo dados do índice FIPE-ZAP. Porém, conforme disse o urbanista Nabil Bonduk, isso não significa dizer que o Mercado Imobiliário ateava fogo na cidade em busca de lucro.

Mas chama a atenção no Brasil a estreita e antiga relação das catástrofes que forçam a expulsão dos mais pobres de determinadas áreas com os interesses econômicos, pois os mecanismos de gentrificação de nossas cidades são variados e envolvem não apenas o fogo nas favelas, como também as águas das enchentes, a terra dos desmoronamentos e as canetas das decisões judiciais, todos muito seletivos e oportunos.

As terras nos grandes centros urbanos são sempre muito caras e o preço proibitivo costuma jogar os mais pobres para as regiões periféricas, o que recorrentemente costuma favorecer o Mercado Imobiliário, que tende a lucrar com esses eventos, uma afinidade entre catástrofes e processo de expulsão que deixa esses episódios sob constante desconfiança.

Com os sinais de crescimento econômico do País após a pandemia e também devido à retomada do Minha Casa Minha Vida, o setor imobiliário pode voltar a ter um novo gás nos próximos anos. Caso novos processos de expulsão em massa dos mais pobres das zonas mais valorizadas – não apenas de São Paulo, mas do Brasil – aconteçam novamente, sejam movidos por grandes incêndios ou qualquer outro tipo de “pseudo-catástrofe-natural”, este artigo estará aqui para nos lembrar que essas correlações podem não ser por mera força do acaso.

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