O sorriso de Clara Charf

Contadora de histórias, via na oralidade uma forma afetiva (e muito efetiva) de transmitir conhecimentos. Pensava o comunismo como a sociedade onde todos terão comida, casa, estudo e nada de dinheiro. Apaixonou-se por Marighella no escritório dos deputados do partido. Fica a força de sua feição

Clara Charf (Acervo Pessoal)
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Nas celebrações coletivas da velha militante, seja no velório no Cemitério São Paulo e na pequena cerimônia na Vila Alpina no dia 3 ou na tradicional homenagem do dia 4 de novembro no local em que tombou seu companheiro Carlos Marighella em 1969, sempre que me concentrava em Clara vinha imediatamente seu belo sorriso.

Conheci Clara em 1999 na Secretaria de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores, onde ela atuava na construção dos laços internacionalistas, sobretudo latino-americanos. A partir daí, tive a sorte de ouvi-la por intermináveis e mágicas horas: sempre vibrante, uma formidável contadora de histórias. Talvez seja um aspecto (injustamente) não tão valorizado no pensamento revolucionário – pois, não seria “teoria”. Mas é. Para além disso, uma transmissão afetiva e efetiva de conhecimento. A força da oralidade, tão presente nos povos da terra. O martinicano Patrick Chamoiseau, inclusive, situa o fundamento da luta contra a escravidão na capacidade rebelde criativa de dançarinos, tocadores de tambor e contadores.

Judia nascida na Ucrânia, prima de Clarice Lispector, Charf criança passa pelo Uruguai e depois Maceió, Recife, Rio, São Paulo, Cuba e São Paulo novamente. Relembro Clara contando do seu primeiro contato, jovenzinha, com o comunismo tal como definido por Jacó Wolfenson: uma sociedade onde todo mundo vai ter comida, casa, estudo e nada de dinheiro, mas com trocas e felicidade. Essa perspectiva conquista sua imediata adesão. Clara contava da sua prisão em 1953 em Campinas, com material de propaganda revolucionária (tinha ido lá para montar um curso). Seu trabalho, antes, como aeromoça (levando correspondência para o PCB – já era filiada) e depois em Cuba como intérprete. A volta ao Brasil após quase uma década de exílio, o PT, a candidatura à deputada em 82, o engajamento feminista, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, o Tortura Nunca Mais.

Clara e Carlos se conhecem durante o período da deslumbrante bancada parlamentar comunista, composta por, entre outros, Prestes, Gregório Bezerra e Jorge Amado. Eleita em 1946 será cassada logo em 1948 e o partido posto na ilegalidade. Se apaixonam ali no escritório da Fração parlamentar na Avenida Rio Branco, na capital federal. Clara narrava a atuação performática do deputado federal Marighella na tribuna (denunciando o acordo entre Brasil e Inglaterra, espalhando pãezinhos de má qualidade com trigo inglês), além de, em outro momento, fundar no Rio um bloco de carnaval do PCB. Em 64, o casal escapa descendo pela escada do prédio no Flamengo enquanto a repressão subia de elevador.

Clara gostava de mencionar a divisão do trabalho doméstico, ele lavando a roupa e ela passando (e durante essa tarefa ele lia para ela). Recordo ouvir dela três episódios especialmente marcantes do parceiro. Num, Marighella reivindica (e conquista) o direito de cultivar verduras na prisão de Fernando de Noronha durante a segunda guerra mundial, pois os encarcerados estavam com escorbuto por conta da alimentação totalmente inadequada. Num outro, ele chora por uma semana após a divulgação dos crimes de Stalin em 1956. E ainda, quando conversava com um responsável pela ação de frente de massas no campo que reclamava que os camponeses só queriam saber de procissão, Marighella pergunta se ele as frequenta e se desespera ao ouvir uma resposta negativa.

Após o martírio do companheiro, Clara seguiu um sacerdócio (uma palavra que – surpreendentemente? – Zé Celso usava para descrever sua relação com o teatro) da memória da sua espetacular figura. Podemos pensar numa fabulosa trinca de um outro Brasil – Zumbi-Conselheiro-Marighella. Figuras míticas somente possíveis graças a uma infraestrutura coletiva de base, esforço e apoio cotidianos (e femininos) que sustentaram a federação de quilombos, a comuna de Canudos ou a militância comunista. Clara foi peça e articuladora fundamental e incansável nesse alicerce da memoração e presença viva de Marighella no imaginário e como inspiração de tantas e tantas pessoas de luta. Nas entrevistas (como no documentário da Câmara dos Deputados em 2003 e no Provocações de Antônio Abujamra em 2011) e no papel de incentivadora do belo documentário Marighella, feito por sua sobrinha Isa Grinspum (antecedido por um de Silvio Tendler, Retrato Falado, de 2001) e na biografia de Mario Magalhães (2012).

No documentário de 2011, Grinspum toma como fio condutor a prova de física que o jovem aluno baiano responde em versos, indicando sua genial liberdade. Esse documentário marca também um decisivo elo com Mano Brown. Clara evocava a participação de um Brown novinho e tímido, levado pela mãe a um ato de apoio à candidatura de Lula em 89. A cineasta encomenda uma música e Os Racionais compõem Mil faces de um homem leal. A fascinação de Mano por Marighella aparece novamente em recente episódio do podcast Mano a Mano, com Wilson Barbosa e Jones Manoel, no qual ele cita repetida vezes o revolucionário, destemido e carinhoso, intransigente e divertido

O sorriso de Clara é o sorriso orgulhoso de quem nunca se rendeu, de quem travou por décadas e décadas o bom combate pela comum dignidade, encarnando vida épica e plenitude existencial.

P.S.: Agradeço a leitura e comentários de Maria Marighella e Jorge Grinspum.

Jean Tible é professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo com doutorado em Sociologia (Unicamp) e mestrado em Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio). É co-organizador dos livros “Junho: potência das ruas e das redes” (2014), “Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil” (2015) e “Negri no Trópico” (2017). É autor de Marx Selvagem (Autonomia Literária, 2018).

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