Clóvis Moura e a América Latina
No ano de seu centenário, cresce o interesse pela obra do intelectual polígrafo. Em correspondências, poemas e homenagens, o intercâmbio intelectual e cultural pouco conhecido do sociólogo. De José Martí a Neruda, bebia de um manancial de referências de lutas emancipatórias
Publicado 11/07/2025 às 16:05 - Atualizado 11/07/2025 às 16:11

Por Gabriel dos Santos Rocha, no blog da Boitempo
Clóvis Moura foi um intelectual polígrafo: jornalista, poeta, crítico literário, historiador e sociólogo. Sua produção nas ciências humanas é sobretudo ensaística, teórica e metodologicamente orientada pelo marxismo. Seus principais trabalhos estão nos campos da história e da sociologia. No entanto, o autor também dialogou bastante com a antropologia e a economia política. Embora tenha escrito sobre assuntos variados, Moura é conhecido por seus estudos sobre o negro na história do Brasil. Esse certamente foi o tema ao qual mais se dedicou. Ao longo de quase cinco décadas, produziu uma obra voltada amplamente para os períodos escravista e pós-abolição, conferindo centralidade às insurreições negras contra a escravidão no passado, à luta antirracista no presente, sem perder de vista a relação entre escravidão, capitalismo e racismo. Moura foi também um militante comunista e antirracista que tomou partido na busca por uma transformação radical da realidade brasileira. Sua obra aventava a revolução socialista.
Destacam-se na produção de Clóvis Moura os estudos sobre os quilombos, guerrilhas e insurreições negras no escravismo, tema central no conjunto de sua obra desde Rebeliões da Senzala, seu livro de estreia e com maior número de edições — atualmente seis, sendo quatro publicadas durante a vida do autor. Trata-se de um ensaio histórico que aborda as insurreições negras como um elemento sistêmico e dinâmico do escravismo colonial. Para Moura, tais lutas expressavam a contradição entre senhores (escravocratas) e escravizados, as “classes” fundamentais do Brasil escravista (Colônia e Império). Amparado em fontes primárias e na até então escassa bibliografia sobre o tema, Rebeliões da Senzala interpreta a luta de classes no Brasil a partir da dialética do senhor e do escravizado, perspectiva pouco explorada até os anos 1960, mesmo entre marxistas.
Apesar do relativo silêncio sobre sua obra por parte da academia, há um crescente interesse por Clóvis Moura nas duas últimas décadas, a exemplo de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos acadêmicos, reedições de livros do autor — com destaque para o trabalho da editora Dandara – que vêm enfatizando outras de suas contribuições, a saber: o papel do racismo na estratificação social brasileira e a luta antirracista encabeçada pelo associativismo negro nas diferentes fases do Brasil República, além da crítica ao quietismo de setores da academia diante de problemas fundamentais da sociedade etc. Tais temas aparecem marcadamente na produção de Moura a partir dos anos 1970, período no qual passou a colaborar ativamente com o movimento negro, aprofundou conexões com intelectuais e instituições de outros países e teve alguma aproximação com a academia.
Um tema ainda pouco estudado, com raríssimas e louváveis exceções, é a relação do autor com a América Latina. Dentre as exceções, destacamos o livro Racismo e luta de classes na América Latina, de Cristiane Sabino de Souza, que, embora não seja um trabalho sobre Clóvis Moura, utiliza amplamente a produção do autor para analisar a relação entre o racismo e a superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente, posição na qual se localizam o Brasil e os demais países latino-americanos no capitalismo mundial. Destaca-se também um artigo de Patrick Oliveira, de 2023, que revisita os escritos de Moura sobre a América Latina localizando as contribuições do autor para o pensamento marxista sobre a escravidão, além de refletir, também, sobre as lutas políticas dos trabalhadores em países de capitalismo dependente Embora tenhamos essas importantes contribuições, ainda há muito a ser estudado sobre o tema.
A América Latina é pouco presente nas publicações de Clóvis Moura. Mas isso não significa que o continente tenha sido ignorado ou desconsiderado por ele. Ao contrário, apesar de o próprio Moura ter escrito pouco sobre o assunto — no que tange ao conjunto de sua obra —, a América Latina foi um tema de seu interesse, estando presente também em suas referências políticas e literárias. Além disso, a correspondência com outros autores e instituições latino-americanas nos revela sua rede internacional de sociabilidade intelectual e política. É o que buscaremos demonstrar neste artigo.
Literatura e revolução
A relação de Moura com a América Latina se evidencia mais a partir dos anos 1970, quando a agenda intelectual do autor se tornou mais dinâmica com os convites de instituições acadêmicas e centros de pesquisa para ministrar cursos, palestras e participar de eventos, em âmbito nacional e internacional. A repercussão da segunda edição de Rebeliões da Senzala (1972) pode ter contribuído na dinamização dessa agenda, uma vez que, diferentemente da primeira, teve maior circulação e passou a ser citada por outros autores. Além de Nelson Werneck Sodré, José Honório Rodrigues, Luiz Luna e outros no Brasil, o livro foi referenciado pelo historiador estadunidense Eugene Genovese como uma valiosa contribuição em From Rebellion to Revolution [Da rebelião à revolução]. Dentre os eventos internacionais que Moura participou na década de 1970, estão o Colóquio sobre a Negritude e América Latina (Senegal, 1974), o Encontro Anual da Latin American Studies Association (Estados Unidos, 1977), e os I e II Congresso de Cultura Negra das Américas que ocorreram, respectivamente, na Colômbia (1977) e no Panamá (1980).
No entanto, ainda que a América Latina tenha se tornado mais evidente na trajetória de Moura naquela década, o autor começou a se relacionar muito antes com produções intelectuais latino-americanas que fizeram parte de sua formação. Moura foi um intelectual formado na militância comunista, e atuou na política cultural do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A literatura, uma de suas áreas de atuação, foi um elo importante com a América Latina. Nesse campo, destaca- -se como referência o poeta e comunista chileno Pablo Neruda. Em 1949, em atividade no PCB na Bahia, por recomendação de seu amigo Darwin Brandão, Moura tentou publicar um “Poema de solidariedade a Pablo Neruda” na revista Correio das Artes, editada por Edson Regis. Porém, naquele contexto de ilegalidade do partido e de perseguições aos comunistas, a publicação do poema foi negada.
A homenagem ao poeta chileno continha um teor político que incomodaria as autoridades. Assim como no Brasil de Dutra, o comunismo era perseguido no Chile de González Videla (1946-1952). Em 1948, um mandado de prisão chegou a ser emitido contra Neruda que, após passar meses escondido, teve que fugir para a Argentina. No referido poema, Moura escreveu:
[…] o teu perfil chileno entre índios sem terra
entre mães assassinadas,
himens partidos
massacre de grevistas
assombra a tirania
e afugenta a noite.
O poeta chileno voltaria a ser homenageado anos após sua morte em “Soneto Funeral a Neruda”, publicado em Manequins Corcundas, um dos livros de poesia de Moura.
Ainda atuando na política cultural pecebista, nos anos 1950 Moura se mudou para São Paulo e passou a colaborar com a Fundamentos: Revista de Cultura Moderna, editada entre 1948 e 1955. O periódico teve entre seus editores e colaboradores Afonso Schmidt, Artur Neves, Vilanova Artigas, Caio Prado Jr., Astrojildo Pereira, entre outros. Moura participou do Conselho de Redação da Fundamentos, além de publicar poemas e artigos. Dentre eles está um texto em homenagem ao centenário de José Martí, poeta, ensaísta e líder da independência cubana que se tornou símbolo de luta para os revolucionários latino-americanos. Em tal texto, Moura fez uma apreciação da obra poética de Martí, além de recuperar aspectos dos ensaios políticos do líder cubano, destacando elementos caros aos comunistas, como a luta anti-imperialista e anticolonial, a soberania e a autodeterminação dos povos, como vemos no excerto a seguir:
“O pensamento político de Martí, da forma como foi enunciado na época pelo seu autor, ainda é para todos nós, povos americanos, um grande manancial de experiências, não só pela sua profundeza teórica que muitas vezes chega a surpreender, como pela sua atualidade. Uma das facetas mais atuais do seu pensamento é, sem nenhuma sombra de dúvida aquela que se refere às ameaças frontais do imperialismo ianque à independência e segurança dos povos semicoloniais e dependentes. Sua posição, nesse particular, foi sempre incontestavelmente clara e os escritos que deixou sobre o assunto poderiam formar uma antologia atualíssima em muitos aspectos.”
No entanto, o texto não menciona o levante do Quartel Moncada ocorrido em 26 de julho de 1953 e liderado por Fidel Castro. Não era possível prever que em poucos anos aquele fato desencadearia uma revolução triunfante em 1959 e levaria Cuba ao socialismo. Contudo, anos depois Moura dedicaria algumas páginas a Cuba no seu livro de 1977 O negro: de bom escravo a mau cidadão? Em um capítulo intitulado “Dos palenques à independência”, o autor abordou o peso da escravidão na ilha e destacou a importância dos palenques (equivalentes aos quilombos no Brasil) e cimarrones (como eram chamados os escravizados rebeldes) no processo emancipatório de Cuba no fim do século XIX.
Moura considerou que, após a abolição da escravidão e a independência, o negro cubano foi lançado à marginalização e à miserabilidade em um “sistema de compressão social que objetivava satisfazer as expectativas de lucro máximo das grandes haciendas controladas pelos monopólios internacionais”. O autor também demonstrou esperança com a Revolução Cubana, afirmando que somente em 1959 abriram-se “perspectivas para a reintegração do negro na sociedade, em termos e nível de igualdade com as demais classes, camadas e segmentos sociais”. Moura via em Cuba o primeiro grande laboratório onde o modelo de uma “democracia racial” na América Latina estava sendo criado.
Intercâmbio intelectual
O interesse de Moura pela América Latina também pode ser notado no intercâmbio intelectual com autores e instituições de diferentes países latino-americanos a partir dos anos 1960, como nos revela sua correspondência. O escritor argentino Mario Marcilese escreveu uma carta a Moura no dia 1o de setembro de 1964 solicitando-lhe informações biográficas. Embora estivesse escrevendo a um brasileiro, o argentino afirmava que vinha se dedicando ao trabalho de conhecer e divulgar a vida e a obra de escritores hispano-americanos frente ao problema de “a América desconhecer sua literatura e seus autores”. Marcilese não mencionou como tinha obtido o contato de Moura, mas afirmou conhecer “tudo o que se dizia sobre sua pessoa e sua obra”, e disse que gostaria de saber o que o próprio Moura teria a dizer de si mesmo além de pedir-lhe para enviar livros de sua autoria.
Em linhas gerais, essa carta de Marcilese se refere à literatura, o que nos leva a inferir que ele tinha informações sobre as atividades literárias de Moura. Em nenhum momento o remetente tocou em temas como história, sociologia e política. Em outras duas cartas que enviou a ele em 1965, uma de 24 de março e outra de 30 de agosto, Marcilese sinalizou que o autor pretendia publicar uma antologia literária latino-americana, e mostram que Moura lhe enviou as informações e os livros solicitados. Em 26 de agosto de 1970, contudo, o escritor argentino comunicou que a referida antologia estava em preparação, mas que a literatura brasileira ficaria de fora por ele próprio não dominar o idioma.
Além da literatura, temas relacionados à história, à sociologia e à política da América Latina também aparecem na correspondência de Moura. Em 1964, o autor solicitou à Unesco fontes e bibliografia de pesquisas sociológicas acerca da vida rural, urbanização, migrações e outros temas relacionados ao continente. A resposta da instituição veio em uma carta de 9 de setembro daquele mesmo ano, assinada por W. Thomas Shepard, do Departamento de Ciências Sociais, que indicava: 1) o envio de um folheto informando as publicações da Unesco acerca dos temas solicitados e as instruções para obtê-las; 2) um informe das principais atividades da Unesco no campo das ciências sociais sobre problemas contemporâneos da América Latina, com estatísticas e outras informações. Shepard também sugeriu que Moura procurasse o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, na Avenida Presidente Vargas, n. 62, 5º andar, no Rio de Janeiro, onde conseguiria mais informações sobre as atividades da Unesco.
Em 1o de setembro de 1964, Manuel Diégues Júnior, diretor do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, respondeu a uma carta de Moura do dia 27 de agosto daquele ano:
“Quanto aos diversos pontos abordados em sua carta, podemos informar:
a) o preço de assinatura da revista América Latina é de C$ 2.000,00 (dois mil cruzeiros) pagáveis mediante ordem de pagamento em nome do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, Av. Pasteur, 431; Rio de Janeiro – ZC-82, ou através [de] cheque nominativo pagável nesta Cidade;
b) a revista América Latina que era anteriormente intitulada Boletim do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais começou a ser editada em 1958. A partir de 1962 passou a chamar-se América Latina, com nova apresentação gráfica. De 1958 a 1961, todos os números se acham esgotados. De 1962 até a presente data possuímos disponibilidades, e o preço para números atrasados é o mesmo do corrente ano, C$ 2.000,00 por ano (4 números por ano) […].”
Em outra carta de 14 de dezembro de 1964, Manuel Diégues Júnior confirmou o recebimento de C$ 3.900,00 (três mil e novecentos cruzeiros) e o envio, pelos correios, das publicações solicitadas por Moura. O remetente ainda lamentou o atraso no atendimento ao pedido de Moura em 4 de setembro daquele mesmo ano.
Outra carta em papel timbrado da Unesco assinada por A. Marin, datada em 16 de novembro de 1964, faz referência a livros solicitados por Moura. Eles seriam enviados para a Fundação Getulio Vargas, que seria o agente depositário daquela compra, e com quem Moura deveria liquidar a fatura do material adquirido. Os títulos das obras estão em espanhol, resumidos, e a carta não menciona os autores. Os exemplares enviados foram: Aspectos Sociales […] Vol. II; Aportaciones positivas de los inmigrantes; Migración Internacional y desarrollo económico; La Ciencia económica y la acción. Além desses, o remetente também menciona títulos solicitados por Moura que estavam esgotados, como Aspectos Sociales […] Vol. I; El Movimiento Ecuménico y la Cuestión Racial; Les Elites de Couleurs dans une ville Bresilienne e La Iglesia Católica y la Cuestión Racial. Por fim, o remetente indica o endereço de duas editoras para Moura adquir outros dois títulos solicitados: El Racismo ante la Ciencia Moderna (Ediciones Liber) e Sociedad y Educación en América Latina (Editorial Universitaria de Buenos Aires).
No dia 31 de julho de 1970, Graziella Corvalán, representante da Revista Paraguaya de Sociología do Centro Paraguayo de Estudios Sociologicos, respondeu a uma carta de Moura agradecendo o interesse do autor naquele periódico e informando o preço da assinatura anual a US$ 3.50. Corvalán também agradeceu o envio do livro Rebeliões da Senzala, porém, acusou não tê-lo recebido. Aliás, o não recebimento — ou o atraso no recebimento — de livros e periódicos enviados pelo correio aparece na correspondência de Moura com outros interlocutores — às vezes ele próprio recebia com atraso, às vezes não recebia materiais que lhe eram enviados.
Em 5 de agosto de 1970, Alfredo Poviña, do Departamento de Sociologia da Universidad Nacional de Cordoba, agradeceu os comentários de Moura a seu livro Historia de la Sociología Latinoamericana em uma carta na qual também lhe indicou a leitura de uma outra obra, Nueva História de la Sociología Latinoamericana, e afirmou que enviaria outros trabalhos de sua autoria na área de sociologia.
No dia 17 de setembro de 1970, José Trueba Davalos, do Instituto Mexicano de Estudios Sociales, agradeceu o envio de um livro de Moura (não mencionou o título), e afirmou estar enviando um folheto com informações sobre o instituto e uma lista de publicações.
O intercâmbio intelectual latino-americano também ocorria por meio de convites para Moura colaborar com publicações e participar de eventos. Em 8 de abril de 1970, um interlocutor do México que assina como Pablo se referiu a Moura como “estimado amigo”, além de mencionar Nicomedes, amigo em comum entre ambos que, naquele momento, tinha poemas traduzidos no Senegal. Pablo participava do conselho editorial de uma revista de sociologia da Universidade Central do Equador e propôs que Moura se tornasse um correspondente do periódico no Brasil, enviando informações sobre as ciências sociais no país, resenhas de livros, congressos, seminários, bem como estabelecendo intercâmbio com revistas brasileiras similares. O remetente também convidou Moura para colaborar em uma publicação coletiva que seria organizada no México com o tema “Autoritarismo e Estado na América Latina”. Não sabemos se esse trabalho chegou a se concretizar, mas sabemos que anos depois, em 1976, Moura teve um livro publicado pela editora mexicana Ediciones Siglo XXI, o Sociología de la Práxis, depois publicado no Brasil pela editora Ciências Humanas com o título A sociologia posta em questão (1978).
Produção sobre a América Latina
Como vimos, a correspondência com intelectuais, editores e instituições nos mostra o interesse de Moura em estudar a América Latina, além de revelar uma rede internacional de sociabilidade do autor. Cabe ressaltar que, em tal contexto, Moura produziu seu principal texto sobre o processo histórico-social latino-americano, “O negro na emancipação da América Latina”, originalmente concebido como uma comunicação no Colóquio sobre Negritude e América Latina ocorrido em Dakar entre os dias 7 e 12 de janeiro de 1974. O convite para esse evento veio do próprio presidente do Senegal, Leopold Sédar Senghor, e do reitor da Universidade de Dakar, Seydou Madani Sy, possivelmente intermediado por René Durand, professor daquela instituição com quem Moura vinha se correspondendo. No colóquio também estiveram outros intelectuais latino-americanos, como Nicomedes Santa Cruz (Peru) e Manuel Zapata Olivella (Colômbia), com os quais Moura manteria amizade e se corresponderia durante anos.
No evento, Moura versou sobre o protagonismo negro nas lutas contra a escravidão na América Latina e a participação negra nos processos emancipatórios de diferentes nações do continente onde houve escravização de africanos, a exemplo do Peru, Colômbia, Venezuela, Haiti, Cuba e outros. Embora o foco principal do texto seja o papel das lutas contra a escravidão nos processos de independência, Moura também considerou problemas contemporâneos comuns aos países latino-americanos:
“Procuraremos abordar uma série de fatos e processos que demonstraram como, ontem como hoje, de diversas formas e em níveis mais ou menos profundos, o negro atuou e continua atuando como força social dinâmica e muitas vezes radical na América Latina. Ontem visando modificar o sistema colonial escravista e atualmente procurando destruir os entraves, obstáculos e limitações da situação de dependência em que se encontram os seus respectivos países. Procura abrir o leque das alternativas no rumo da emancipação continental, única forma que vê para solucionar o seu problema que é cumulativo: como negro, que tem de lutar contra o preconceito de cor, e como pobre, que tem de lutar contra proletarização, a miséria e a marginalização.”
A partir das discussões no Colóquio em Dakar, Moura escreveu posteriormente o texto “Os dilemas da negritude”, no qual polemiza, junto do antropólogo brasileiro Renê Ribeiro e o espanhol German de Granda, participantes do evento que “estavam à direita da negritude”, confundindo o termo com um “possível estereótipo de que deveria ser elucidado e desmascarado”. Polemizou também o conceito de negritude que orientava o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento nos anos 1950 e, segundo Moura, restringia-se a “uma intelectualidade negra pequeno burguesa”. Contudo, Moura não refutava aprioristicamente o conceito de negritude. Defendia-o como “generalização das contradições criadas em uma sociedade opressiva, e unidade entre teoria e prática no sentido de desalienar não apenas as populações negras, mas todos aqueles estratos populacionais que se sentem oprimidos ou marginalizados pelo sistema dominante em qualquer parte”.
Após o colóquio em Dakar, Moura manteve por longos anos extensa correspondência com o escritor afro-colombiano Manuel Zapata Olivella, que organizaria os I e II Congresso de Cultura Negra das Américas. O I Congresso ocorreu em Cali, Colômbia, em 1977. Moura, na ocasião à frente do Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas, ficou encarregado de coordenar a delegação brasileira para o evento. Assim, convidou alguns intelectuais para participar no evento, dentre os quais a historiadora Beatriz Nascimento, o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, a historiadora Marina Sena, a jornalista Mirna Grzich, entre outros. Entre os convidados também estava o fundador e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP), Fernando A. Albuquerque Mourão.
Fernando Mourão era docente da USP e participou do monitoramento de atividades que a ditadura considerava “subversivas”, incluindo eventos organizados pelo movimento negro ou por intelectuais vinculados à luta antirracista. Suas atividades como informante da ditadura ocorreram principalmente no meio acadêmico. Mourão repassou as informações (inclusive a carta de Clóvis Moura) sobre o I Congresso de Cultura Negra das Américas à Assessoria de Segurança e Informação da USP – órgão que monitorava estudantes, docentes e funcionários da USP. A delação resultou no impedimento de Moura e quase toda a delegação brasileira de participar do evento.
Nesse período, havia no Brasil a cobrança de um depósito compulsório para viagens ao exterior. Poucos dias antes do evento, o MEC vetou a isenção do depósito. Além do próprio Clóvis Moura, quase toda a delegação brasileira perdeu o congresso. Só viajaram para Cali: a jornalista Mirna Grzich, financiada pela revista Visão, a historiadora Marina Sena, financiada pelo governo de Minas Gerais e Eduardo de Oliveira, que valeu-se de um empréstimo bancário pessoal e de uma bolsa da Fundação Ford.
O II Congresso de Cultura Negra das Américas ocorreu no Panamá, em 1980. No entanto, dessa vez, Moura conseguiu participar. Sua comunicação para o evento, “Escravismo, Colonialismo, Imperialismo e Racismo”, foi posteriormente publicada no livro Brasil: as raízes do protesto negroxxxiv. No mesmo livro, publicou também seu texto de comunicação no Encontro da Latin American Studies Association, ocorrido em Huston, nos Estados Unidos, em 1977, o qual se intitulava “Contribuição do negro às artes no Brasil”.
Conclusões
O ano de 2025 marca o centenário de nascimento de Clóvis Moura (1925-2003). O crescente interesse por sua obra neste primeiro quarto do século XXI mostra a atualidade de seu pensamento. Isso se deve não apenas à genialidade do autor, mas também aos principais problemas por ele pautados, os quais continuam na ordem do dia, a exemplo da exploração da classe trabalhadora pelo capital e do racismo como ideologia de dominação no capitalismo. O Brasil foi o principal objeto de estudos de Moura, bem como seu espaço de atuação política. Contudo, recuperar o intercâmbio do autor com a América Latina nos possibilita ver a dimensão internacionalista de sua formação e de sua trajetória intelectual e política. A relação entre racismo e capitalismo dependente — problema crucial nas análises do autor sobre o Brasil contemporâneo — também ocorre nos países latino-americanos marcados pelo passado colonialista e escravista do antigo regime, assim como nos países africanos e asiáticos subjugados pelo neocolonialismo nos séculos XIX e XX.
Como tentamos demonstrar neste artigo, a América Latina foi um tema de interesse de Moura, ainda que não tenha sido o foco principal de sua obra. O autor não apenas buscou referências e fontes de estudo, como também estabeleceu uma rede internacional de sociabilidade intelectual e militante no continente. Talvez possamos dizer o mesmo em relação à África, considerando que o autor não apenas participou do Colóquio sobre Negritude e América Latina no Senegal, como também se correspondeu com intelectuais e lideranças africanas.
Portanto, Moura estudou a realidade brasileira sem perder de vista a dimensão internacional do capitalismo, buscando compreender também a situação de outros países da periferia do sistema nos quais se situam majoritariamente povos racializados, e no qual também ocorre historicamente a relação entre racismo, dominação política e exploração da força de trabalho. O referido ensaio do autor, “O negro na emancipação da América Latina”, versa sobre a realidade de países nos quais a dependência econômica externa, a segregação social interna e a autocracia como técnica política das classes dominantes são elementos de longa duração, assim como também são as variadas formas de rebeldia dos subalternos, desde os quilombos e palenques do passado aos movimentos de trabalhadores do campo e das cidades no presente. Cabe ressaltar que tal ensaio foi apresentado por Moura em Dakar, em 1974, em um contexto de lutas sociais candentes no Terceiro Mundo: a independência das colônias portuguesas em África, o triunfo do Vietnã contra os Estados Unidos, as lutas contra as ditaduras em vários países da América Latina etc. A emancipação dos subalternos foi um interesse constante que perpassou toda a obra e o engajamento político de Clóvis Moura.
* Este artigo foi originalmente publicado na edição de número 44 da revista Margem Esquerda, publicação semestral da Boitempo.
Gabriel dos Santos Rocha é doutorando em História Econômica, mestre em História Social e graduado em História pela Universidade de São Paulo.
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