O que Bad Bunny tem a ver com Porto Rico anticolonial

Historiador que colaborou com o músico de reggaeton desfaz, em livro, o mito de resignação colonial da ilha. Sua obra resgata as vozes rebeldes da história nacional, em busca do sonho de Pátria Grande. E o sucesso do artista ajuda a resgatar os ritmos e resistências locais

O músico Bad Bunny, que lançou o aclamado álbum Debí Tirar Más Fotos. Foto: Gladys Vega/Getty Images
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Por Cruz Martínez, na Jacobin Brasil | Tradução: Caue Seigner Ameni

Os últimos meses foram históricos para os porto-riquenhos, tanto dentro de Porto Rico quanto na diáspora. No final de outubro, a colônia americana frequentemente esquecida surgiu no noticiário nas eleições dos EUA quando o comediante Tony Hinchcliffe se referiu a Porto Rico como uma “ilha flutuante de lixo”.

Esta foi sua tentativa de piada durante um comício de Donald Trump na cidade de Nova York, onde os porto-riquenhos constituem uma grande parte da população. O comentário minou os esforços de Trump para ampliar sua coalizão e ganhar o apoio de porto-riquenhos famosos como os reggaetoneros Anuel AA e Nicky Jam, ao mesmo tempo em que permitiu que a campanha de Kamala Harris fizesse promessas vazias sobre uma questão com a qual ela realmente não se importava antes do escândalo.

Uma semana depois, o Partido da Independência de Porto Rico (PIP) rompeu os limites do sistema bipartidário da ilha, entrincheirado por meio século, quando seu carismático candidato a governador, Juan Dalmau, ficou em segundo lugar com mais de 30% dos votos. Então, no Dia dos Reis deste ano, o músico porto-riquenho Bad Bunny lançou seu álbum politicamente carregado Debí Tirar Más Fotos, que rapidamente subiu nas paradas como a música mais ouvida da Argentina à Áustria.

Cada um desses acontecimentos está ligado com o relacionamento colonial como os Estados Unidos moldou o passado e o presente da nação porto-riquenha. Esse relacionamento é um fio condutor no livro Puerto Rico: A National History, de Jorell Meléndez-Badillo.

Uma história revolucionária

Meléndez-Badillo recebeu recentemente elogios por colaborar com Bad Bunny no contexto histórico de seu álbum mais recente, fornecendo representações visuais de importantes acontecimentos ao longo da história porto-riquenha para cada música. Seu próprio trabalho provou ser tão revolucionário para a história latino-americana quanto o álbum mais recente de Bad Bunny foi para o reggaeton.

No que parece ser um feito quase impossível, a obra Puerto Rico: A National History fornece uma visão geral da história porto-riquenha da civilização Taíno até o presente em uma linguagem fácil de entender. É um livro que pode atingir o leitor casual enquanto ainda fornece um trabalho de pesquisa histórica que atende aos mais rigorosos padrões acadêmicos.

O livro conta a história do país de uma forma que enfatiza as vozes dos setores mais marginalizados da sociedade. No entanto, o que realmente separa a história de Meléndez-Badillo das narrativas hegemônicas é seu uso criativo de histórias individuais para demonstrar ao leitor as tendências mais amplas no período histórico que está sendo esquecido. As histórias pessoais permitem a formação de personagens, e o leitor às vezes sente como se estivesse lendo um romance, não uma obra de “literatura acadêmica”.

Um dos personagens que Meléndez-Badillo usa para ilustrar os dilemas do império colonial espanhol do século XIX, um período da história que muitas vezes parece muito distante do presente, é Miguel Enríquez. Enriquez era um corsário espanhol nascido em Porto Rico que foi preso pela primeira vez por contrabando, mas depois, por meio do desenvolvimento de uma vasta rede política, ganhou a bênção das autoridades coloniais. Ele construiu um império empresarial que o tornaria o homem mais rico de Porto Rico e um dos mais ricos do império colonial espanhol.

“Desde o início, o exército revolucionário de Simón Bolívar imaginou Porto Rico como parte de uma nação latino-americana independente.”

No entanto, como um homem negro e filho de uma mãe anteriormente escravizada, Enriquez ainda era sujeito ao racismo, mesmo no auge de seu poder. Por isso, quando ele caiu em desgraça com as autoridades espanholas, Enriquez perdeu toda sua riqueza e morreu na pobreza.

Meléndez-Badillo também conta a história de Porto Rico na época da Guerra Fria por meio de uma personagem igualmente única: Providencia “Pupa” Trabal. Como muitos porto-riquenhos das décadas de 1940 e 1950, Pupa era uma fervorosa apoiadora do governador Luis Muñoz Marín e seu Partido Popular Democrático (social-democrata) até que sua desilusão com Munõz Marin a levou a se alinhar ao Partido da Independência de Porto Rico (PIP) e ao Partido Socialista de Porto Rico (PSP) – ambos de esquerda. Enquanto se organizava na esquerda porto-riquenha, ela escreveu para o jornal Claridad, tornou-se alvo da repressão estatal e até conheceu pessoas como Fidel Castro e Salvador Allende.

Entretanto, apesar de suas credenciais revolucionárias, seus colegas homens frequentemente a desprezavam e a desencorajavam a aceitar um convite para a posse de Allende. Embora as narrativas históricas hegemônicas frequentemente os ignorem, personagens como Miguel Enríquez e Pupa são essenciais para a narrativa de Meléndez-Badillo e para a complexa história de Porto Rico, permitindo que o leitor se relacione com a história por meio de fatos e personagens de sua própria vida.

Porto Rico e América Latina

Outra parte fundamental da narrativa de Meléndez-Badillo é que ele mostra como Porto Rico, apesar de seu status colonial, sempre foi parte integrante da América Latina. Desde o início, o exército revolucionário de Simón Bolívar imaginou Porto Rico como parte de uma nação latino-americana independente. Havia planos para libertar a ilha do domínio colonial espanhol como parte da grande onda revolucionária que tomou conta do continente no século XIX.

Como Meléndez-Badillo relata, os porto-riquenhos mais tarde pegariam em armas ao lado dos revolucionários cubanos que planejavam derrubar o governo espanhol meio século depois. Em solidariedade aos que lutavam em Cuba, um grupo de porto-riquenhos exilados criou uma bandeira para a ilha, unindo para sempre as lutas dos dois povos contra o colonialismo.

Na década de 1920, o líder da independência porto-riquenha Pedro Albizu Campos embarcou em uma odisseia pela América Latina, construindo redes de solidariedade que ele esperava que um dia servissem para elevar Porto Rico à companhia de outras nações independentes. Mais tarde, os porto-riquenhos viajaram para Cuba após a revolução de 1959 e conheceram companheiros revolucionários de todos os cantos do mundo, alimentando ambições de criar uma revolução bem-sucedida quando voltassem para sua própria ilha.

O livro também dissipa o mito da aceitação colonial porto-riquenha, mostrando a história da resistência na ilha desde o dia em que o navio de Cristóvão Colombo atracou pela primeira vez em 1493. Embora há com frequência desacordos sobre o status político de Porto Rico, sempre houve porto-riquenhos que resistiram às autoridades coloniais de sua época, fossem eles da Espanha ou dos Estados Unidos.

Meléndez-Badillo destaca as formas de resistência que se perderam na narrativa tradicional da história porto-riquenha, desde as primeiras rebeliões de povos indígenas e escravizados até a esquecida resistência contra a ocupação dos EUA e as organizações de guerrilha urbana das décadas de 1960 e 1970, como os Comandos Armados de Liberación e as Fuerzas Armadas de Liberación Nacional. Por meio de sua narrativa poderosa, Meléndez-Badillo nos lembra que a história porto-riquenha é uma história de resistência.

Puerto Rico: A National History é uma leitura obrigatória para qualquer um que queira aprender mais sobre o arquipélago e será um texto-chave no campo da história latino-americana nos próximos anos. O livro também deve ser útil para a esquerda porque fornece um vislumbre histórico de uma das cinco possessões coloniais de Washington. Ele pode nos dar uma visão sobre como traduzir as histórias e as lutas da classe trabalhadora plurinacional em ações concretas contra a opressão hoje.

Mais importante, o livro fornece à diáspora porto-riquenha uma história acessível de Porto Rico, disponível aos leitores em inglês e espanhol. Ele dá a muitos daqueles que cresceram na diáspora, como eu, a oportunidade de se envolver com nossa história, organizar-se em nossas comunidades e construir nosso futuro como parte da nação porto-riquenha, mesmo que, nas palavras do poeta e revolucionário porto-riquenho Juan Antonio Corretjer, “tenhamos nascido na lua”.


Cruz Martínez é um escritor independente e foi bolsista Fulbright na Colômbia de 2021 a 2022. Seus escritos sobre política, direitos humanos e cultura na América Latina e na diáspora latino-americana apareceram em várias publicações nos EUA e internacionais.

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