O Movimento, 50 anos do jornalismo combativo
Marco da imprensa independente brasileira, liderado por Raimundo Pereira, o semanário desafiou a ditadura e propôs projetos de Brasil. Engajado, organizou frentes de oposição, propagando-se nas “brechas” do regime. Na Era digital, tem lições para inspirar as novas gerações
Publicado 15/07/2025 às 15:57 - Atualizado 15/07/2025 às 21:18

Por Sérgio Braga, em A Terra é Redonda
No último 7 de julho de 2025, completaram-se 50 anos da publicação da primeira edição do jornal Movimento, marco de um jornalismo engajado e comprometido com a democracia no Brasil.
Ainda hoje o semanário, cuja coleção está digitalizada na íntegra e disponibilizada no site da Biblioteca Nacional, pode ser lido com proveito e é um modelo de imprensa militante que combina compromisso com a apuração dos fatos, prática de pluralismo de ideias e luta contra os arbítrios e autoritarismos de todo tipo, destacando-se a crítica e denúncia ferrenhas da ditadura militar brasileira.
A história do jornal também demonstra a importância da organização de uma imprensa alternativa de massas para as forças progressistas e de esquerda no Brasil, que ainda hoje tem muito a aprender lendo as páginas do semanário, a meu ver um dos melhores jornais publicados no Brasil, e do qual ainda hoje podemos extrair lições políticas.
Fundado em plena ditadura militar, o jornal Movimento foi uma das principais expressões da chamada imprensa alternativa no Brasil, cujo marco inicial, após a promulgação do AI-5, foi a publicação de jornal Opinião a partir de 1972, liderado pelo empresário progressista e nacionalista, Fernando Gasparian.
Publicado entre 1975 e 1981, Movimento surgiu num contexto de “abertura lenta, gradual e segura”, marcada por idas e vindas políticas, forte censura à imprensa, especialmente até o ano de 1978, quando foi flexibilizada, e pela reorganização da oposição democrática, após a aniquilação da luta armada pela repressão no início dos anos 1970.
Com redações em diversas capitais e uma circulação nacional, Movimento não se restringiu a noticiar e divulgar os fatos que marcaram a crise da ditadura militar e a redemocratização do país. Foi também parte ativa na construção da resistência política, funcionando como um espaço de expressão e articulação das esquerdas, das forças progressistas e das lutas sociais que não cessaram, mesmo num contexto repressivo.
Nesse contexto, concretizou de forma bem-sucedida a estratégia de aproveitamento das “brechas” abertas pela ditadura militar e da organização de uma frente ampla democrática contra o regime, elaborada ao longo dos anos 1970 por várias forças progressistas, como alternativa àqueles atores que propugnavam a luta armada para derrotar o regime.
Não por acaso, Movimento foi fundado em julho de 1975, logo após a vitória do MDB nas eleições de 1974, dando uma nova injeção de ânimo e agregando os elementos difusos descontentes com o regime vigente, e desarticulados até então. O lema que embalava os resistentes era o conhecido poema musicado por Caetano Veloso: “Navegar (ou seja, resistir) é preciso; viver não é preciso”.
Liderado pelo dinâmico e talentoso jornalista Raimundo Pereira e outros “dissidentes” do antigo jornal Opinião, desde o seu início Movimento chamou a atenção pelo jornalismo de alta qualidade, matérias e reportagens jornalísticas de alto nível, que ainda hoje podem ser lidas com proveito e ensinadas em faculdades de comunicação, como arquétipos de textos bem escritos e de apurado nível técnico.
A linha editorial do jornal e uma das principais atrações do semanário era dada pela coluna Ensaios Populares, escritas por principalmente por Duarte Pereira, então militante clandestino e anteriormente vinculado à organizações católicas que promoviam a resistência armada ao regime ditatorial.
Já existe uma certa literatura acadêmica sobre o jornal Movimento, destacando-se o importante trabalho de Carlos Azevedo intitulado Jornal Movimento; uma reportagem (Manifesto Editora, 2011). Dada a impossibilidade de reconstituir em detalhes toda a rica história do jornal neste breve artigo, a consulta a esta bibliografia nos permite reconstituir em linhas gerais as diferentes fases e as vicissitudes pelas quais passou o periódico.
Grosso modo, podemos dividir a história do semanário em três grandes fases, cada qual refletindo os dilemas e lutas que se colocavam às forças progressistas na luta contra a ditadura:
(i) A consolidação inicial, entre 1975 e 1977, quando o jornal ainda contava com uma frente editorial ampla, que ia dos “autênticos do MDB”, passando por segmentos empresariais progressistas, militantes socialistas e comunistas até atores minoritários, antes engajados na luta armada e que colocavam como meta imediata a instauração de um regime “socialista” no país.
(ii) Da cisão de 1977, marcada por disputas internas, que resultaram na criação do jornal Em Tempo, de matiz trotskista, até a suspensão da censura em 1978, com a anistia e as greves do ABC ocorrendo logo depois, em 1979, que marcaram o fim da fase mais repressiva da ditadura e aproveitamento das oportunidades de liberalização do regime (“brechas”, para usar a expressão do antigo militante comunista Gregório Bezerra) pelas forças democráticas.
(iii) Por fim, a fase final, entre 1979 e 1981, após a anistia e retorno dos exilados, onde aprofundou-se a campanha pela convocação da Constituinte e ocorreu um intenso debate de ideias sobre as perspectivas da esquerda e das forças progressistas na luta contra a ditadura, com forte participação de intelectuais de esquerda de origem universitária que colaboravam com regularidade nas páginas do jornal, com artigos brilhantes.
Todas estas fases foram acompanhadas por intensos embates com a censura, dificuldades financeiras e transformações nas estratégias da oposição política.
O cinquentenário do Movimento oferece ainda uma oportunidade de avaliar os legados da imprensa alternativa.
No contexto atual, de concentração midiática e desinformação digital, as lições do jornal Movimento seguem atuais: a valorização da pluralidade no campo da esquerda, o compromisso ético com a verdade e apuração dos fatos não reduzindo o jornalismo somente à produção de “narrativas” militantes, a abertura ao debate popular, o uso de linguagem acessível ao público ledor, a valorização da reportagem e a independência editorial em relação aos grandes interesses e corporações capitalistas, são valores que permanecem fundamentais para um jornalismo militante e engajado, mesmo na Era digital.
Nesse sentido, seria bastante oportuno, a meu ver, a organização, no segundo semestre de 2025, de um seminário para não apenas celebrar e comemorar o legado desde grande jornal da mídia alternativa brasileira, mas também para debater os dilemas da mídia alternativa e progressista do Brasil, num novo contexto midiático caracterizado pela dominação das big techs imperialistas sobre os fluxos de informação globais em grande parte do planeta.
Sérgio Braga é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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