Desmatamento indígena: como o governo colabora

Proibição de destruir maquinário utilizado nas derrubadas ilegais. Suspensão de diversas operações contra o desflorestamento. Defesa da aberta à invasões. Reveja o contexto que levou, em 2019, ao maior ataque às terras ancestrais, em 11 anos

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Por Oswaldo Braga de Souza, Antonio Oviedo e Tiago Moreira, no ISA

A barreira contra o desmatamento representada pelas áreas protegidas – Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs) – segue mais importante do que nunca, mas está sob o maior ataque em 11 anos.

A destruição da floresta nas TIs amazônicas chegou a 51 milhões de árvores ou 42,6 mil hectares destruídos, entre agosto de 2018 e julho de 2019 (um hectare corresponde, mais ou menos, a um campo de futebol). Em extensão desflorestada, é o maior número desde, pelo menos, 2007-2008, último período com dado anual disponível – para anos anteriores, só é possível acessar o total acumulado.

Também corresponde a uma alta de 174% em relação à média entre 2008 e 2018: 15,5 mil hectares. Na comparação com 2017-2018, o aumento (+80%) equivale a 2,7 vezes ao da taxa preliminar do desmatamento de toda a Amazônia (+29,5%) divulgada pelo governo, em novembro. A situação parece ainda mais grave quando lembramos que, no ano passado, a alta da destruição de florestas nas TIs já tinha sido de mais de 100%.

A grilagem de terras, o garimpo ilegal e o roubo de madeira seguem como os principais vetores do problema. Outro são as grandes obras de infraestrutura, por aquecer a imigração e a economia local, os quais estimulam o mercado ilegal de terras e madeira.

Apesar de tudo, em 2018-2019 o desmatamento nas TIs representou só 4,2% do desmatamento total da Amazônia. Apenas dez áreas concentram quase 90% de todos os desmates realizados nesses territórios. Os dados confirmam o ataque consolidado a algumas regiões críticas e, por outro lado, a importância das TIs para conter o avanço da fronteira agropecuária. O mesmo pode ser dito sobre as UCs, como revelado pela primeira reportagem da série sobre o “efeito Bolsonaro” (veja gráficos abaixo).

Os números foram produzidos pelo Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA com base nos dados oficiais do Programa Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Discurso anti-ambiental potencializa desmatamento

Desde pelo menos 2013, ficou mais claro para os pesquisadores que não apenas medidas do governo e o crescimento da economia, mas também o discurso e as propostas de políticos e autoridades influenciam diretamente os índices de desmatamento. Naquele ano, depois de o Congresso aprovar, em 2012, o novo Código Florestal, anistiando em massa desmates ilegais, o ritmo da destruição da floresta voltou a crescer, após oito anos de queda (veja gráfico).

De lá para cá, a retórica contra a fiscalização ambiental, em defesa da redução, recategorização e extinção das áreas protegidas recrudesceu. Essas sinalizações tendem a aumentar as invasões de terras públicas sob a expectativa de sua regularização. E há décadas o corte raso da mata é uma das maneiras de tentar comprovar posse efetiva e legal.

Jair Bolsonaro agravou o problema. Durante a campanha e depois de eleito, continuou atacando os órgãos ambientais, UCs e, em especial, as TIs. Repetiu várias vezes que paralisaria as demarcações e que abriria essas áreas ao agronegócio, à mineração e ao garimpo.

Em abril, desautorizou uma operação do Ibama que havia queimado caminhões e tratores de desmatadores ilegais, em Rondônia. Em julho, seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reuniu-se com madeireiros e defendeu sua atividade, também em Rondônia. No início de dezembro, Salles suspendeu a fiscalização na Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes após reunir-se com alguns de seus invasores.

“As pessoas no campo tem uma leitura muito simples: ‘se o próprio presidente eleito está dizendo que vai reduzir área protegida e a fiscalização, então vamos fazer [invasões] porque tem o respaldo do governo’”, comenta Paulo Barreto, pesquisador associado do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Ele conta ainda que grileiros e invasores trabalham com as noções de “janela de oportunidade” e “situação de fato”. “O governo abre uma janela, mas pode ser que o próximo governo não siga legalizando a ilegalidade. [Dizem:] ‘então, vamos logo praticar a ilegalidade que, depois, a ocupação será tão grande que o governo terá de fazer [a legalização]’.” Isso explicaria a explosão dos desmates em momentos como o atual.

“O avanço da exploração ilegal nas TIs, além de agravar o desmatamento, aumenta a violência no interior delas, onde o Estado brasileiro está totalmente ausente e inerte nas suas ações de controle, por uma opção do próprio Estado brasileiro” critica Kléber Karipuna, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Falta de articulação entre órgãos

Outra razão que pode ajudar a entender a explosão do desmatamento em geral e nas TIs em particular é a ausência de monitoramento, planejamento e articulação entre diferentes órgãos oficiais no combate aos crimes ambientais.

No início do ano, a atual gestão extinguiu os departamentos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) que realizavam essas tarefas. O Ibama teve de assumir a missão sozinho e o Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia (PPCDAM) foi engavetado. Lançado em 2004 e responsável pela queda dos índices de desflorestamento até 2012, o plano coordenava ações entre diferentes ministérios, os governos federal e estaduais. Além disso, a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi esvaziada e enfrenta problemas de gestão.

Na terça, o Planalto dobrou a aposta ao publicar uma Medida Provisória (MP) que deve legalizar a grilagem de terras em massa, principal motor da destruição da floresta. De quebra, prepara uma proposta a ser enviada ao Congresso para regulamentar a mineração nas TIs.

A reportagem questionou a Funai sobre os dados do desmatamento nessas áreas e o que o órgão está fazendo para conter o problema. “[A instituição] tem buscado ampliar as parcerias junto aos órgãos estaduais e unidades regionalizadas de órgãos de Segurança Pública e de Polícia Ambiental. Para tal, está sendo realizado um conjunto de reuniões junto ao Ibama, à Polícia Federal, às Secretarias Estaduais de Segurança Pública, entre outros. Tais esforços já foram realizados nos Estados de Rondônia, Roraima, Pará e Mato Grosso”, respondeu a assessoria em nota.

Dificuldades na fiscalização

A retórica anti-ambiental e anti-indígena agrava as dificuldades da fiscalização, que também influenciam os índices de desmatamento. Números sobre operações de proteção às TIs fornecidos pela Funai não diferem muito dos de anos anteriores, o que parece confirmar que o aparato de fiscalização disponível não está sendo suficiente para responder ao aumento da pressão sobre os territórios, como ocorre agora (veja tabela abaixo).

Esses dados, porém, representam apenas uma fração do conjunto de ações realizadas nessas áreas porque o Ibama é o principal responsável por executar as grandes operações enquanto a Funai coleta e fornece informações e faz a articulação com outros órgãos. A reportagem solicitou ao MMA os números atualizados, para este ano, das operações realizadas na Amazônia em TIs pelo órgão ambiental, mas não obteve resposta.

De acordo com o jornal O Globo, até setembro, das 837 principais operações de fiscalização de todos os tipos – não apenas em áreas protegidas e contra o desmatamento – planejadas para este ano em todo país, o Ibama havia deixado de realizar 22%. Até o mesmo mês, o número de autuações por desmatamentos, queimadas e garimpo ilegais havia caído 22% na comparação com 2018. É o menor patamar desde 2000, segundo o site Poder 360.

Para a ex-presidente do órgão Sueli Araújo, ainda é cedo para ter uma avaliação do ano, mas está claro que os agentes estão tendo mais dificuldades em campo por causa da retórica anti-ambientalista do governo, que mobiliza a população local contra eles e respalda quem comete crimes.

“Desde a campanha eleitoral, sentimos uma dificuldade bastante grande de fazer fiscalização de campo”, analisa Araújo, que comandou o Ibama de 2016 até o fim de 2018. “O discurso tem afetado especialmente as Terras Indígenas”, completa.

De fato, outro sistema do Inpe, de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), mostrou que, entre agosto e outubro de 2018, na corrida eleitoral, os alertas de supressão da vegetação na Amazônia aumentaram 49% em relação ao mesmo período de 2017.

Araújo conta que há 750 fiscais no Ibama em todo o país, em comparação com 1,3 mil, há alguns anos. Lembra ainda que o Grupo Especializado de Fiscalização (GEF), a elite dos agentes da instituição, deveria fazer pelo menos uma operação por mês e a primeira do ano só foi feita em agosto. O GEF também atua para proteger as TIs.

Sudoeste do Pará

As seis TIs mais desmatadas estão no Sudoeste do Pará, segundo os dados do Prodes-Inpe. Sozinhas, elas foram responsáveis por 80% de todo o desmatamento cometido em todas as TIs na Amazônia, entre agosto de 2018 e julho de 2019 (veja tabela).

A região concentra as terras mais invadidas há anos. Os principais vetores são bem conhecidos: grilagem, garimpo, roubo de madeira, os impactos da hidrelétrica de Belo Monte e da BR-163 (Cuiabá-Santarém).

O caso mais grave é o da TI Ituna-Itatá, que vem sofrendo um ataque massivo de grileiros e foi a mais desmatada do ano, com cerca de 12 mil hectares desmatados, um aumento de 656% em relação ao período anterior. Até há pouco tempo, o território era bem conservado, mas hoje tem mais de 10% de sua extensão destruída. Ele tem registros de povos indígenas isolados, muito vulneráveis a conflitos e doenças. A Funai informou à reportagem que realizou três expedições, neste ano, para tentar localizá-los e que “novas atividades” estão planejadas para 2020.

Leia a reportagem especial sobre desmatamento nas TIs na Bacia do Rio Xingu baseada nos dados do Sirad X, o sistema de monitoramento da Rede Xingu +.
Rondônia e noroeste do Mato Grosso

A TI Karipuna (RO) ocupa a 7ª posição entre as dez áreas mais desmatadas na Amazônia. Apesar de ser a única do ranking com queda no índice, continua sofrendo principalmente com a grilagem, destinada à criação ilegal de gado. A extensão de pastagens cresceu de 832 hectares para 3.558 hectares, um aumento de 327%, entre 2014 e 2018, conforme relatório da Anistia Internacional.

“[A situação piorou] muito. Devido o discurso do governo federal, do presidente”, denuncia o cacique André Luís Karipuna. “Antes dele ganhar, já havia muita invasão. O discurso dele, de que a terra é grande, e que ela seria dividida, iria passar para o agronegócio, fortaleceu as invasões e as ameaças”, completa.

A Funai manteve na área, até outubro, uma equipe de fiscalização, mas agora não haveria mais recursos para continuar as atividades, informa Ivoneide Bandeira Cardozo, coordenadora geral da Kanindé Associação de Defesa Etnoambiental.

A TI Uru-Eu-Wau-Wau (RO) é a próxima da lista. Abriga povos indígenas isolados e também sofre, em especial, com a grilagem e a pecuária ilegal. Em novembro de 2018, havia mais de 1,3 mil cabeças de gado na terra. Desde janeiro, o problema teria se agravado. Em abril, a mídia local noticiou que mais de mil pessoas participaram de uma invasão, “supondo que o governo ia dividir o território e lhes dar títulos de propriedade”. Em setembro, uma operação com vários órgãos federais prendeu invasores. A pressão diminuiu, mas o problema não foi resolvido diante da necessidade de presença permanente da fiscalização. As informações também são da Anistia Internacional.

“Falta a presença da Funai e de outros órgão. Eles estão sucateados, fragilizados e seus servidores estão sendo ameaçados de morte e se sentindo desamparados pelo próprio governo. Também faltam recursos financeiros”, alerta Cardozo.

No noroeste do Mato Grosso, na TI Manoki, nona mais desmatada, a partir de janeiro as invasões também foram intensificadas, inclusive com posses ilegais abandonadas sendo reocupadas, ainda de acordo com a Anistia Internacional.

Yanomami

A TI Yanomami (RR/AM) é a 10ª do ranking e teve uma área desmatada relativamente pequena (419 hectares) para os padrões amazônicos, em 2018-2019. O que chama a atenção é o aumento na comparação com o período anterior: 1.600%. O problema resulta de mais uma onda garimpeira, com cerca de 20 mil invasores, segundo estimativa da Hutukara Associação Yanomami.

Um pesquisador que prefere não se identificar explica que, nos últimos anos, o garimpo concentrou-se em poucas áreas. Isso teria ocorrido em função da mecanização, que aumenta a dependência de combustível e meios de transporte para equipamentos maiores.

“Em comparação com o ano passado, não houve abertura de um novo foco, mas são as mesmas áreas que já tinham alguma estrutura e gente trabalhando e que cresceram muito. Provavelmente, isso está associado à expectativa de uma baixa na fiscalização ou de regularização, também associado a um período de crise que aumenta as investidas nessas áreas”, analisa.

Na semana passada, a PF realizou uma grande operação para prender uma quadrilha que pode ter contrabandeado 1,2 tonelada de ouro em Roraima, no valor de R$ 230 milhões, nos últimos três anos. A suspeita é que grande parte do minério tenha vindo da TI Yanomami.

Já há vários anos, em geral a partir de denúncias dos índios, sucessivas operações foram realizadas para expulsar os garimpeiros. Com a presença irregular da fiscalização, no entanto, eles acabam voltando.

Por causa das denúncias, o líder indígena Davi Kopenawa segue ameaçado. Também na semana passada, ele recebeu, na Suécia, o Prêmio Right Livelihood, conhecido como o “Nobel alternativo”, por sua trajetória em defesa do meio ambiente e dos povos indígenas. Dias antes, lideranças yanomami e yekuana divulgaram um manifesto contra o garimpo.

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