O feitiço de Elis, que hoje chegaria aos 80
Cantora brasileira, intérprete de grandes compositores do século XX, partiu muito cedo, em 1982. João Bosco, cujas canções ela projetou, fala de sua inquietude musical, de seu fascínio pela experimentação e de sua capacidade de encontrar a si mesma em meio à arte que fazia
Publicado 17/03/2025 às 16:11

João Bosco em entrevista a Carolina Azevedo, na Cult
“O grande intérprete sempre procede assim: ele procura a si mesmo dentro da canção. Quando encontra, registra a si mesmo”, diz o cantor e compositor João Bosco em referência a Elis Regina. A cantora eternizou suas canções e fez as interpretações definitivas de músicas como “O bêbado e a equilibrista”, de Bosco e Aldir Blanc.
Elis, que completaria 80 anos nesta segunda (17), foi quem colocou no mapa da música popular brasileira a dupla de jovens compositores, além de outros artistas consagrados como Belchior, Milton Nascimento, Fagner e Edu Lobo. Em entrevista à Cult, João Bosco conta que conheceu Elis em 1972, através dos colegas do Pasquim, revista que lançou a primeira música da dupla Bosco e Blanc em um compacto simples que trazia, de um lado, “Águas de março”, de Antônio Carlos Jobim, e, do outro, “Agnus sei”, que chamou a atenção de Elis por sua estranheza desconcertante.
“Ela tinha um conhecimento musical muito amplo e era uma pessoa inquieta musicalmente”, diz Bosco sobre Elis, que buscava por letras e melodias inovadoras para cantar. Sua procura era por uma canção brasileira que possibilitasse a experimentação, como fez nos shows do álbum Falso brilhante, de 1975. Essa inquietação fez de João Bosco um dos compositores mais gravados por Elis, que lhe pedia que nunca parasse de experimentar esse tipo de canção.
Em conversa, João Bosco conta como conheceu Elis Regina, lembra a composição de “O bêbado e a equilibrista” – o hino da anistia de 1979 – e avalia como a cantora foi e continua sendo uma bússola para a música brasileira.
Quem foi Elis Regina para você?
A Elis foi tudo. O nosso trabalho – meu e de meu parceiro Aldir Blanc – começa no princípio da década de 1970, quando eu estudava engenharia em Ouro Preto e ele, medicina, no Rio de Janeiro. Durante esse período, nós trabalhamos muito via correio, eu musicando textos dele e ele letrando músicas que eu mandava em fita cassete.
Em 1972 – em função da minha amizade com Vinicius de Moraes, com o pessoal do Pasquim, Sérgio Cabral, Ziraldo –, a Elis passou a ouvir falar de mim. Eu vim ao Rio de Janeiro nas férias de janeiro de 1972 e fui convidado pra gravar aquele disco de bolso do Pasquim com Antônio Carlos Jobim. Gravei o “Agnus Sei”, no lado B e no lado A o Tom gravou “Águas de Março”, até então inédita. A Elis também ficou sabendo disso.
A gente se conheceu nas férias de julho de 1972, no Teatro da Praia, quando ela se preparava para lançar um novo espetáculo. Eu sempre vinha ao Rio nas minhas férias escolares, de final e de meio de ano. Nesse primeiro encontro, ela ouviu uma série de músicas minhas com o Aldir e naquele mesmo show introduziu “Bala com Bala”.
Durante os dez anos seguintes, ela gravou cerca de 20 músicas nossas, tornando-se porta-voz do nosso repertório. Mais do que isso: uma parceira. Ela compartilhava com a gente suas ideias musicais e poéticas da literatura musical. Essa maneira de pensar nos aproximou muito. Foram anos de convívio muito intenso e exclusivo. Sempre que Elis recebia uma música nossa, Aldir e eu ficávamos na expectativa, imaginando como ela a interpretaria, diante daquela capacidade musical que o Brasil todo reconhece nela. Elis nos colocou no mapa da música popular brasileira. Ela nos tornou conhecidos não só no Brasil, mas internacionalmente.
Depois disso, entre 1973 e 1974, ela gravou mais algumas composições suas e de Aldir Blanc, “Cabaré”, “Agnus Sei”, “Caçador de esmeralda”, “O mestre sala dos mares”, “Dois pra lá, dois pra cá” e “Caça à raposa”. São músicas diferentes das que a voz de Elis tinha encontrado até ali. Como foram feitas essas colaborações?
Ela tinha um conhecimento musical muito amplo e era uma pessoa inquieta musicalmente. Digo isso em função das pessoas que ela lançou no mercado fonográfico: Milton Nascimento, com “Canção do Sal” (1966), Edu Lobo, com “Arrastão” (1966), Belchior e Fagner, com “Mucuripe” (1972). No Falso brilhante lançou, de fato, Belchior, com “Como Nossos Pais” e “Velha roupa colorida”, que foram grande sucesso. Ela era uma intérprete sempre procurando novidades. Quando eu mostrava para ela coisas estranhas, como “Caçador de esmeralda” e “Agnus sei”, ela gostava muito. Me dizia que eu não deveria nunca parar de experimentar esse tipo de canção brasileira em que a estranheza era desconcertante. Me lembro de uma entrevista em que João Cabral de Melo Neto diz que prefere que a poesia dele seja lida como se alguém estivesse andando de jipe em uma estrada muito pedregosa, de difícil acesso, pois é nesse desconforto que se percebe a poesia dele. É isso que a Elis estava querendo dizer para mim.
Naquela época, Milton Nascimento já experimentava esse tipo de desconforto, ela percebia essas coisas e nós conversávamos sobre isso. Eu frequentava muito a casa dela, principalmente em São Paulo, onde ela tinha um estúdio na garagem. Ela colocava na vitrola coisas inesperadas, gravações que eu não conhecia, me mostrava coisas que brasileiros estavam fazendo fora do Brasil. Nunca vou esquecer de quando ela me mostrou a “April Child” do Moacir Santos. Ela vivia dessa inquietação.
Também é preciso lembrar do que ela enfrentou no início de sua carreira por ser mulher, por ter vindo do Rio Grande do Sul. Ela teve uma vida difícil enquanto mulher em um país onde o homem ainda exerce um machismo incontrolável. Ela frequentava clubes, programas de calouros. Uma jovem menina, adolescente. Vindo para o Rio de Janeiro, morou em situações complicadas, como no Barata Ribeiro 200, um prédio com milhares de habitantes, uma espécie de cortiço de concreto em Copacabana.
Elis teve muita dificuldade para se impor como a artista que foi. Mas tudo isso veio para somar na sua música. Essa é a vida do grande artista. Quando Elis comemorou dez anos de carreira na Philips/Polygram, enquanto artistas da época pediam automóveis, dinheiro, em forma de presente, ela pediu um disco com Antônio Carlos Jobim. Há uma diferença enorme quando o artista quer estar cada vez mais perto daquilo que justifica a sua vida, que é a música. Esse disco, Elis e Tom, não foi de fácil realização, como mostra o filme [de 2023]. Mas o que fica dessa estrada pedregosa, de difícil acesso, quando a pessoa caminha por ela e chega a algum lugar, é o trabalho. O que resulta do trabalho da Elis são essas canções, que se transformaram em interpretações definitivas.Tudo o que diz respeito a Elis se transforma numa interpretação. O que ela passou, disse, fez. Tudo vai para a música. Não há como separar uma coisa da outra. Ela sempre lutou pela música. No Falso brilhante, conseguiu trazer para o show business brasileiro uma maneira diferente de ser no palco. Ela se preparou, teve aulas de postura, de psicologia de palco, de dança, em busca de algo revolucionário. Depois dela, artistas puderam fazer shows daquela maneira, com cenário, interpretações, textos, luzes. Toda essa luta foi para o palco. Eu diria que a carreira da Elis é feita de degraus: subiu vários e partiu no patamar mais alto. Ela sempre foi uma bússola e continua sendo.
Em 1979, Elis grava “O bêbado e a equilibrista”. Você costuma dizer que ela tomou essa música para si mesma com muita paixão. Pode falar sobre essa melodia, essa letra do Aldir Blanc e a leitura que Elis fez dela?
Essa música tem uma história de começo, meio e fim. Ela foi feita no Natal de 1977, no dia da morte de Charlie Chaplin. Eu comecei a pensar nele, que fazia filmes para crianças, adolescentes, adultos e idosos. Todos são público do Chaplin, porque a obra dele é dirigida a todos, dado que retrata a vida cotidiana. Naquele dia, eu senti gratidão profunda por tudo que ele fez e comecei a tocar uma música dele, em Minas Gerais, na casa dos meus pais. Dessa música, “Smile”, nasceu a melodia de “O bêbado e a equilibrista”. Eu voltei para o Rio de Janeiro e encontrei com Aldir Blanc, falei isso tudo e ele escreveu essa letra magnífica, projetando a realidade brasileira no mundo chapliniano.
Em janeiro de 1979, eu ia gravar um especial em São Paulo com a Elis. No camarim, mostrei essa música para ela – uma versão inicial. Quando ouviu a música, ainda “no copião”, se identificou. Queria gravar imediatamente. Então a interpretou no disco Essa mulher, e a cantou como se fosse dela, como se ela tivesse feito aquela canção. O grande intérprete sempre procede assim: procura a si mesmo dentro da canção. Quando encontra, registra a si mesmo.
Quando ela se tornou o “hino da anistia”, como você se sentiu?
Eu não sei o que eu senti. A música já tinha sido feita, a Elis já tinha gravado e nós estávamos satisfeitos com o resultado. Essas conquistas são imprevisíveis, nascem de uma atitude popular, verdadeira. Não é uma coisa comprada, plantada, produzida, financiada. É natural – e não foi da noite para o dia, foi um processo, algo que ganhou corpo e presença com o tempo. E ela segue assim até hoje. Mas isso é uma conquista da música e das pessoas de uma maneira geral. É uma coisa popular.
Ferreira Goulart dizia que há arte porque a vida só não basta. A arte e a vida estão intimamente ligados. O que é a vida? A política, tudo isso. Não há como não ser. “O bêbado e a equilibrista” conta uma história. Acho muito parecido com Ainda estou aqui, do Walter Salles, que conta um momento da história do Brasil. Será que eles imaginavam que esse filme fosse chegar onde chegou? É como se ele fosse eleito popularmente, como em uma eleição direta, para chegar até aqui. Isso é algo que a obra constrói – tem a ver com o momento, com a história e com as pessoas de uma maneira geral. A coisa, de repente, passa a ter um domínio público. Isso é muito bonito, porque o domínio público é isso: não é de ninguém, não é comprável. É uma coisa que brota na natureza e você não entende como foi nascer naquele lugar inóspito.
Nos shows que você faz hoje em dia, além dos sucessos, você costuma reservar algum tempo para as suas composições mais experimentais, como te pediu Elis Regina. Qual a importância de continuar experimentando com a música hoje?
Isso é inerente à minha condição de viver. É como um desejo natural de exercitar esse tipo de coisa que é o que eu sei, gosto e procuro fazer. É o que me satisfaz, me justifica. Eu faço as coisas mas não tenho muita certeza sobre elas – vou fazendo, procuro dar o melhor de mim, me esforçar ao máximo. Ouço a música dos outros, que vão me alimentar; exercito o meu instrumento, para poder corresponder às ideias que surgem, ser eficiente nesse sentido; e desviar de caminhos já percorridos, para não repetir algo que eu já tenha feito. Eu sigo em frente dentro de uma dinâmica que eu conheço. Sobre o resultado dessas coisas, eu não faço ideia. É algo que eu preciso fazer. É inevitável seguir em frente. Não sei até onde, não sei até quando, mas eu vou em frente.