O Exército e seu descontrole sobre as armas

Especialistas apontam: furto de armamentos de guerra expõe perigosas ligações entre o crime organizado e quarteis. Há várias vulnerabilidades em protocolos de segurança. Flexibilização do controle de armas sob Bolsonaro agravou o problema

Foto: Polícia Civil/RJ
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Por Guilherme Henrique, na DW Brasil

O recente caso de furto de armas das Forças Armadas teve um novo episódio nesta terça-feira (24/10). O Comando do Exército decidiu interromper o aquartelamento de 40 militares no Arsenal de Guerra de São Paulo, em Barueri. Os oficiais, que voltarão a cumprir normalmente expediente, estavam impedidos de sair do local desde o dia 10, quando o sumiço foi detectado.

As investigações para identificar os autores do furto que levou 13 metralhadoras de calibre .50 e oito fuzis de calibre 7,62 do armamento militar correm sob sigilo, após determinação da 2ª Auditoria da 2ª CJM (Circunscrição Judiciária Militar). Uma eventual denúncia deverá ser apresentada pelo Ministério Público Militar e o julgamento será feito pela Justiça Militar.

O inquérito de apuração tem prazo de 40 dias e pode ser prorrogado por mais 20. Sete militares suspeitos são investigados por furto, receptação, peculato e extravio. Há outros 20 oficiais, que podem ser punidos com advertências, repreensão e prisão por até 30 dias após serem enquadrados por negligência e omissão.

Até o momento, 17 das 21 armas roubadas foram encontradas pelas polícias de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas quatro metralhadoras com poder para derrubar aviões e veículos blindados ainda não foram localizadas.

Protocolos estão sendo seguidos?

Há um protocolo para circulação de armas dentro do Exército, lembra o professor de ciência política e especialista em segurança Eduardo Svartman, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Existe o paiol, onde se guarda a munição, e a reserva de armamento, onde estão as armas. Mas esse armamento não fica à disposição do oficial a qualquer momento. O militar assina declarações quando recebe e devolve uma arma. Existem protocolos bem estabelecidos”, explica.

“Isso na teoria. Na prática, a grande questão é: esses protocolos estão sendo seguidos? São feitas revistas periódicas nos carros que entram e saem dos quarteis? Os militares de fato indicam a movimentação de armamento? São questões que estão sendo colocadas, e o Exército precisa esclarecer a sociedade e a própria corporação”, complementa.

Logo após o roubo, o Exército divulgou uma nota afirmando que o arsenal levado não estaria funcionando. “Esse arsenal de guerra, de onde as armas foram levadas, tem a responsabilidade de ser um último escalão no reparo de peças importantes. São grandes reparos, que podem consertar ou de fato definir como inservível”, explica o professor Eduardo Heleno, do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.

“O Comando das Forças Armadas declarou que as armas não servem mais. Mas até que ponto? Porque, se apenas uma metralhadora estiver funcionando, o estrago já é enorme. Tem uma questão importante: o fuzil 762 é leve e possibilita mobilidade. Já as metralhadoras de calibre .50 pesam quase 60kg. Servem para ações específicas dado o seu poder de fogo, como atingir aeronaves ou perfurar carros blindados.”

Decretos que “flexibilizam” rastreamento

“As pessoas que estavam encomendando esse tipo de armamento sabiam o que estavam pedindo e onde encontrá-lo”, opina a professora e especialista em defesa Adriana Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ela argumenta que o furto das armas escancara um problema maior dentro das Forças Armadas. “O controle do armamento é uma atribuição das Forças Armadas, que deixou de fazer isso sistematicamente no governo Bolsonaro. Não dá para esquecer que o Exército fiscalizou as urnas eletrônicas, numa decisão infeliz do Judiciário e do Executivo e que resultou naquele relatório estapafúrdio.”

“Além disso, o último governo tinha como discurso um descontrole do rastreamento desse armamento. Essa mentalidade invadiu os quartéis”, ressalta Marques. Foram ao menos 40 decretos entre 2019 e 2022 flexibilizando o rastreamento e identificação dos itens.

Em julho do ano passado, o Exército admitiu que não sabia quantas armas estavam nas mãos dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), grupo alvo de decretos que beneficiaram o acesso facilitado à munição e armamento. Dois meses depois, o jornal Folha de S. Paulo mostrou que as tentativas de integrar os sistemas do Exército e das Secretarias de Segurança Pública, a fim de melhorar a localização de armas e munição, não haviam avançado.

Segundo o Instituto Sou da Paz, 54 armas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica sumiram entre 2015 e 2020. O número inclui desde furtos em depósitos, como o ocorrido em Barueri, a militares que foram vítimas de roubos. “Isso já aconteceu outras vezes. O que não pode ocorrer é deixar de investigar”, comenta Svartman.

Tropa cooptada pelo crime organizado?

De acordo com o Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, as armas foram roubadas para ter como destino o crime organizado. No Rio, onde oito metralhadoras foram recuperadas, quatro delas estavam sendo oferecidas a integrantes da facção criminosa Comando Vermelho.

“As Forças Armadas, como qualquer outra organização que envolve seres humanos, é passível de sofrer assédio do crime organizado. Não se pode abrir mão do controle de armas e munição diante desse cenário”, pondera o professor de ciência política Lucas Rezende, da Universidade Federal de Minas Gerais.

A correlação entre o crime organizado e os quarteis tem sido abordada com frequência entre os estudiosos do tema. “Quanto mais próxima as Forças Armadas estão das questões de segurança pública, mais expostas elas ficam, assim como as polícias estaduais são assediadas por mecanismos de pressão, cooptação e suborno. Não há como escapar”, pondera Svartman.

Marques é autora do livro Missão Haiti: a visão dos Force commanders, publicado pela Editora FGV em 2019 e escrito em parceria com Celso Castro, diretor da escola de Ciências Sociais e de Relações Internacionais da FGV. A professora da UFRJ conversou com militares que estiveram no Haiti e participaram das ações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) no Rio de Janeiro ao longo da década passada para coibir o avanço de facções criminosas nas favelas do estado fluminense.

“O que almirantes e generais nos relataram é que havia um protocolo rígido para sempre haver uma circulação das tropas nessas operações e evitar que grupos ficassem muito tempo em um mesmo local. De dois em dois meses havia uma troca. Era uma alternativa para evitar uma contaminação por parte dos soldados com os traficantes”, pondera.

“Essa é uma questão que assombra os militares há bastante tempo. Então, furtos como esse de Barueri podem mostrar um assédio fortalecido aos militares por parte dos criminosos”, complementa.

Serviço militar como vulnerabilidade

Além do assédio aos militares, Eduardo Heleno, da UFF, ressalta outro ponto: o serviço militar obrigatório. “Os grupos armados cooptam jovens que estão sendo convocados ao serviço militar. Isso não significa que eles não possam mudar de ideia e optar pela carreira militar ou que esse assédio não possa chegar às altas patentes. Mas o histórico mostra que há esse tipo de infiltração.”

Em agosto de 2017, um soldado do Exército de 19 anos foi preso após vazar informações de uma operação das Forças de Segurança na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio.

“É importante saber quem está sendo convocado e vai cuidar do armamento, ter informações dos quarteis, a movimentação dos oficiais. Esse é um papel que deveria ser feito pelo setor de inteligência das Forças Armadas”, pontua Heleno.

Marques corrobora. “É um tema que precisa ser discutido. Se nós tivéssemos tropas profissionais talvez esse tipo de situação ocorresse menos. Essa circulação de pessoas que ficam alguns anos no Exército e depois podem servir ao crime organizado é uma realidade. Por maior que seja o controle do armamento, o próprio serviço militar obrigatório acaba gerando uma vulnerabilidade que o atinge.

Falha grave de segurança

Os especialistas consultados pela DW Brasil foram unânimes ao dizer que o furto de armas em Barueri é mais um golpe duro na imagem das Forças Armadas. Ao longo dos últimos meses, os militares se viram envolvidos nas investigações sobre os atos golpistas do 8 de janeiro e no contrabando de joias vindas da Arábia Saudita durante o governo Bolsonaro.

“Nada vai mudar enquanto nós tivermos as Forças Armadas atuando de maneira nebulosa, muitas vezes à margem do Estado democrático de Direito. Quantas vezes mais vamos ver esses episódios se repetindo?”, diz Rezende.

“Esse episódio é uma falha grave de segurança de uma organização que deve garantir justamente a segurança da sociedade. O Exército não consegue resguardar aquilo que lhe garante seus meios de força. É uma mancha significativa”, afirma Svartman.

Ele também diz que será importante não só identificar os culpados, mas aperfeiçoar e criar novos mecanismos de segurança. “Acharam o responsável e seus cúmplices. Ótimo, mas isso é só uma parte da questão. O que a instituição vai aprender com esse problema? Quais serão os novos protocolos dentro dos arsenais de guerra?”, questiona.

Heleno acredita que o caso de Barueri é emblemático para a corporação. “Furto de metralhadora, a possível ligação com o crime organizado de São Paulo e Rio de Janeiro: são vários pontos de alerta. É importante que as Forças Armadas mostrem claramente quais são os seus valores, e o Comando do Exército precisa ressaltar que atitudes como essas não serão toleradas”, finaliza.

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