O Brasil visto pelo fundamentalismo evangélico
Retrato do imaginário político-teológico das igrejas pentecostais. A explosão do gospel nos anos 90 como movimento cultural religioso. As Marchas de Jesus como “guerra de conquista”. E o papel do missionarismo que noticiam a salvação do país através da redenção
Publicado 20/02/2025 às 19:13
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Por André Castro, no blog da Boitempo
São 5 da tarde. Faz sol e muito calor em Santo Antônio de Jesus, Bahia. Na avenida que corta a cidade, um grupo de quatro pessoas faz um culto. Um violão, um microfone e uma caixa de som são os utensílios que possibilitam o evento. Fazem o culto na pequena praça, não porque não possuem um lugar próprio para cultuar, mas porque acreditam que aquilo é uma ação missionária. As músicas que cantam, as pregações que fazem, as abordagens aos transeuntes têm o intuito de anunciar uma mensagem. Essa mensagem, dita como notícia, anuncia que a vida no mundo é morte, e a conversão ao evangelho e sua consequente participação na comunidade dos santos, a igreja, é a salvação.
Esses evangelistas da avenida chamam o lugar em que anunciam sua mensagem de “campo missionário”, ou seja, trata-se do lugar onde deve ser feita a evangelização, o anúncio da mensagem da fé. A mensagem precisa ser anunciada porque as pessoas precisam se converter. Agora, sendo parte da igreja, os crentes deixam de ser do mundo – campo missionário – e para fazer parte da comunidade dos que creem. Redimidos, ou seja, limpos das desgraças desta vida (pecado), já começam a viver a própria eternidade nas suas vidas. Converter-se é sair do lugar de alvo da ação missionária para ser agente da ação missionária. Em termos teológicos, sair do mundo é estar sendo redimido pelo sangue de Jesus. O papel de quem foi redimido é participar da ação missionária e fazer com que mais pessoas tenham acesso à verdade redentora.
Assim, eles participam da ação de Deus no mundo. E quanto mais anunciam a verdade do evangelho, mais se aproxima o retorno de Jesus, a redenção do universo – em termos teológicos, o fim dos tempos. Mesmo que se creia que o fim dos tempos esteja próximo, em geral não se acredita que ele já chegou. Há um debate intestino sobre a “forma correta” de entender o fim dos tempos. O papel da igreja não seria abandonar o mundo em sua desgraça, mas avançar na ação missionária para que a ação de Deus no mundo, se for possível, culmine com um avivamento. A ação missionária no campo evangélico se organiza pela ideia de que, se entregarem suas vidas para o Reino, é possível que passem por um avivamento.
O termo não é lá muito complicado: avivar, tornar mais vivo, mais forte e intenso. Acima de tudo, o avivamento é uma notícia. O avivamento só pode acontecer quando estamos totalmente despojados de nós mesmos e entregues aos desejos de Deus, a seus propósitos, que são o anúncio do evangelho para além das fronteiras. Um anúncio para o outro. A mente evangélica pressupõe a existência de um espaço, geográfico ou social, onde seja possível viver o tempo de Deus – o kairós –, de modo que a sua vontade e soberania seja adorada. Se o avivamento pressupõe a entrega interior, ele resulta em uma transformação da realidade social. O lugar em que se realiza a ação missionária – enquanto a vontade de Deus – é o lado de fora, o além das fronteiras.
Se os evangélicos chegaram com suas missões em terras brasileiras ainda no final do século XIX, até os anos 1990 não existia um campo evangélico no Brasil. Havia igrejas pentecostais das mais diferentes correntes, que foram surgindo organicamente, e igrejas históricas, como as Batistas, metodistas e Presbiterianas, para ser sucinto. Dois lados conflagrados e dispostos a uma briga maior contra o catolicismo. Quase todo evangélico do interior já ouviu alguma história de irmãos que foram expulsos de uma pequena cidade por padres que não aceitavam evangélicos no local. Verdade ou mentira, pouco importa, os evangélicos sempre se sentiram fora de casa no Brasil.
Peregrinos em terra estranha, sem espaço social. O desembarque da religião americana levou muito tempo para produzir suas próprias novidades. Afinal, toda a sorte de símbolos e ideias que estruturam a mentalidade evangélica estava intimamente ligada com a história dos Estados Unidos; era parte dela e, fora do seu espaço social de origem, essas ideias já não significavam as mesmas coisas por aqui. Enquanto as ideias americanas começavam a ganhar seus próprios significados no Brasil, a ideia de um avivamento se formava. Esta é a chave para compreender a experiência de fé no contexto brasileiro, patente na produção cultural:
“O que ocorreu nos anos 90 no Brasil foi uma explosão do gospel como um movimento cultural religioso, de um modo de ser evangélico, com efeitos na prática religiosa e no comportamento cotidiano. Passou-se a experimentar vivências religiosas combinadas em contextos socioculturais os mais variados, o que torna possível uma unanimidade evangélica não planejada sem precedentes na história do protestantismo no Brasil. Essas vivências são expressas por meio da música, do consumo e do entretenimento.”1
E essa mudança não foi pouca coisa. Se, nos anos 1930-40, os evangélicos condenavam o nacionalismo e a defesa da pátria enquanto idolatria, agora já passavam a ver saídas para essa mesma pátria, saídas que passam por um avivamento.2 Em 1994 começaram as marchas para Jesus, postulando publicamente a presença dessa comunidade imaginada, enquanto fiéis marchavam sob o comando do seu general. Para Raquel Sant’Ana, a Marcha para Jesus é um evento que se assemelha a uma guerra, especificamente a uma “guerra de conquista”. O “exército de Deus” se forma a partir da alteridade radical e da batalha espiritual. A batalha espiritual é essencial para construir a união do povo de Deus, ela se dá entre o mundo e a igreja. Os que são da igreja, que se converteram do caminho do mundo, precisam estar atentos e vigilantes para não serem destruídos pelas armas do diabo no mundo. Assim, unidos, lutam sua batalha. Essa união se expressa através de ações estratégicas em diversos espaços, como o evento de culto ao ar livre que contamos no início deste texto. É nesse momento de união que os evangélicos atuam em favor de Jesus.3 Aquela fronteira que organizava a ação missionária se refaz e não se refere mais à fronteira nacional, mas ao pertencimento ou não à comunidade evangélica, entre pentecostais e históricos.
Curioso mesmo é que isso tenha acontecido exatamente quando nossas mentes mais críticas começavam a perceber que a própria ideia de um Brasil do futuro era coisa do passado,4 e que as promessas de integração social que davam sentido a essa esperança-projeção estavam rodando em falso – afinal, como esses mesmos críticos já constataram, esse Brasil sempre foi uma projeção. Uma projeção que, no entanto, fez sentido por muito tempo e dava ao processo de modernização seu significado. Seja como for, o Brasil a ser colocado diante de Cristo não é outra coisa senão mais uma imagem de Brasil. Mas, agora, a experiência prática que essa imagem organiza não dá sentido à formação nacional, e sim ao seu ocaso. Lá do outro lado da ponte, na fronteira de tensão, é onde está a maior parte dos evangélicos: mulheres negras e trabalhadoras que sobrevivem em família com renda de até três salários mínimos, e frequentam pequenas igrejas de até 200 membros.5 São essas pessoas que sonham acordadas com o Brasil avivado.
Não é nenhum exagero notar que é exatamente essa esperança de um Brasil sob os domínios de Jesus – e, por isso, avivado – que estava na boca da ex-primeira-dama durante a campanha derrotada de 2022: somos um país com promessas que vão se cumprir e vamos fazer o que for necessário para que a vontade de Deus aconteça aqui.6 Mas não foi ela quem criou – e isso é o que importa – esse sentimento evangélico de um Brasil avivado. Esse avivamento do Brasil, que fundamenta a fala da ex-primeira-dama, tornou-se notícia na mesma década de 1990, quando os evangélicos começaram a perceber seu crescimento em massa e, assim, passaram a interpretar que algo estava acontecendo: Deus estava atuando, um avivamento. Ele está lá, dentro da experiência de fé daqueles que se chamam de irmãos e fazem com que a verdade em que acreditam se torne realidade, e a realidade se pareça muito com a verdade em que acreditam.
Essa realidade é a de um mundo falido e destruído, prestes ao colapso. Eles veem uma saída na destruição completa, é claro, mas, ao menos, veem algo. Enquanto nossos olhos continuam voltados para o próximo governo ou orçamento estatal (engessado pelo teto de gastos), lá, no fundão das grandes cidades e nos rincões do interior, proclama-se a redenção nacional, o seu avivamento. Ele começa no coração de cada um: “Quando nos despojarmos e colocarmos tudo o que temos em Deus, aí sim, pegaremos fogo”. É tudo isso e um pouco mais que faz pesar o sentimento evangélico de um Brasil avivado, que organiza um sentido de esperança para esses brasileiros que colocam tudo o que têm e são nessa certeza de que algo há de acontecer. O fogo há de queimar, como queima em seus corações, no mundo.
Sejam bem-vindos ao Brasil avivado.
Notas
- CUNHA, Magali do Nascimento. Vinho novo em odres velhos. Um olhar comunicacional sobre a explosão gospel no cenário religioso evangélico no Brasil. Tese (Doutorado em Comunicação). São Paulo: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, p. 144.
- Estamos nos referindo às publicações do Mensageiro da Paz, jornal oficial da Assembleia de Deus, que começou a ser publicado na década de 1930 e permanece ativo até os dias de hoje. É possível acessar os textos mais antigos por meio de uma biblioteca disponibilizada pela Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Para uma análise do Mensageiro da Paz no contexto de sua transição do ascetismo para a ética política, conferir: XAVIER, Liniker Henrique; CORREA, Marina Aparecida Oliveira dos Santos. Ditadura, democracia e fé no país da moral e bons costumes: as ADs e o Mensageiro da Paz. São Paulo: Recriar, 2021.
- SANT’ANA, Raquel. A nação cujo Deus é o senhor: guerra, política e religião a partir das marchas para Jesus. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2024.
- Tomemos como exemplo a prosa de Paulo Arantes: em Zero à esquerda (2004) e em Extinção (Boitempo, 2007), está posto o fim de um programa, de uma expectativa, que vai virar interpretação sócio-histórica em O novo tempo do mundo (Boitempo, 2014).
- BALLHOUSSIER, Anna Virginia. Mulheres negras são maioria nas igrejas evangélicas paulistanas, aponta pesquisa Datafolha. Folha de S.Paulo, 20 jul. 2024. Edição Impressa. Acesso em: 13 jan. 2025.
- CASTRO, André. A luta que há nos deuses: da Teologia da Libertação à extrema direita evangélica. Rio de Janeiro: Editora Machado, 2024. Em especial, o ensaio “É o rei que governa essa nação”, no qual faço uma interpretação dos discursos da Michelle Bolsonaro.