Mulheres palestinas e as políticas da invisibilidade

A barbárie colonial pelas vozes de suas maiores vítimas. Demolição de casas e escolas são constantes, além de ataques a seus corpos, saúde mental e pátria. São refugiadas na terra que habitam. Como a militância feminista pode descortinar e dar alento a traumas silenciados?

Foto: AFP via Getty Images
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Por Nadera Shalhoub-Kevorkian, no A Terra é Redonda | Tradução: Flávia Eduarda Gomes Hebling e Luísa Bortolato Elias

Introdução

“O problema é que, primeiro, minha casa foi demolida e todos nós tivemos que nos mudar para viver na escola. Depois, a escola foi demolida e eu não sei para onde devemos nos mudar e quando. Por que minha casa não pode ser minha casa, minha escola ser minha escola, e eu viver uma vida normal com uma casa não demolida e uma escola não demolida?” (Hidaya, 15 anos).

“Quando demoliram minha escola, eu senti que perdi minha própria casa. Talvez o mundo não entenda, mas para meninas palestinas como eu, a escola é tudo o que temos. Meninas no mundo podem ir a lugares, visitar umas às outras, encontrar livros que querem ler, organizar passeios com suas escolas e professores, mas as crianças palestinas não têm nada. Nós, meninas palestinas, sentimos que nossas escolas são o único lugar onde podemos encontrar amigos, compartilhar livros, nos encontrar, conversar, brincar, cantar, escrever, amar…. e agora demoliram minha escola” (Nora, 15 anos).

“Quando minha casa foi demolida, os vizinhos temeram até sair para nos ajudar. Eles tinham medo de lutar ao nosso lado, porque sabiam que seriam os próximos, que acabariam perdendo suas casas. A demolição da minha casa, a perda dos meus pertences, da minha capacidade de reunir minha família sob um mesmo teto e me sentir segura, desapareceu em segundos e ninguém quis nos olhar. Eles olhavam para o prédio. Quero dizer, o prédio físico, como se fosse apenas sobre as paredes, as janelas e as portas. Talvez as pessoas sentissem pena quando ouviram o barulho durante a demolição, mas você acha que alguém é capaz de ouvir a demolição dos nossos corações? Dos nossos sonhos? Dos nossos planos futuros? Acho que essas vozes nunca são ouvidas. Você acha que eles sequer notaram o meu medo, minha agonia, meu horror? De jeito nenhum. Eles (medo, agonia e horror) não têm voz, não fazem barulho, e a ocupação militar não tem olhos, não tem moral, não tem consciência, não tem Deus” (Salwa, 28 anos).

As vozes citadas acima são apenas uma pequena amostra das vozes das mulheres palestinas que estão vivendo com os efeitos da militarização e das políticas de demolição de Israel em suas vidas domésticas e na educação. Como resultado dessas políticas, meninas e mulheres palestinas foram transformadas em pessoas deslocadas internamente, tornadas sem-teto e, como Nora colocou, “deslocadas em casa”. Mulheres como Nora experimentaram o trauma não apenas de perderem suas casas, mas também de perderem seu senso de segurança, proteção e pertencimento, como resultado do constante conflito político entre israelenses e palestinos, juntamente com a negação de seu sofrimento e o silenciamento de suas vozes.

Este artigo aborda a “política da invisibilidade” e levanta questões sobre como pesquisar e analisar vozes não ouvidas e silenciadas, entender o significado da perda do lar e da perda de acesso à educação e ao direito à educação, e qual metodologia deve ser empregada para examinar o sofrimento constante. As vozes de Hidaya, Nora e Salwa revelam que a força bruta do poder militar não percebe ou reconhece seu sofrimento. No entanto, e quanto às ativistas feministas e pesquisadoras feministas? Elas são capazes de desenvolver metodologias que possam envolver-se com esse sofrimento, respondê-lo e investigar sua “invisibilidade”? Se sim, que tipos de metodologias são necessárias?

O artigo discute a necessidade de desenvolver práticas em metodologias de pesquisa que permitam o envolvimento com o conhecimento, as experiências e os “modos de saber” das mulheres indígenas em zonas de conflito. Ele reflete sobre como tornar visível a força e a resistência das mulheres em meio às provações diárias e no contexto do funcionamento global do poder, da violência interminável e das “tecnologias” associadas ao colonialismo e à militarização.

Assim, a principal questão epistemológica levantada neste artigo é se, como e quando podemos envolver-nos com o “invisível” e os invisibilizados, e conhece-los. Ao abordar essa questão, o artigo se baseia em dois dos meus estudos na Palestina: um que estuda a militarização, o gênero e a educação, e outro que examina a perda do lar e as demolições das casas a partir de uma perspectiva feminista. Ambos os estudos desafiam as percepções das mulheres palestinas como vítimas, transgressoras ou criminosas, ao colocar suas ações cotidianas no contexto da ocupação militar e da opressão.

Examinei várias questões e dilemas interligados relacionados à pesquisa sobre a invisibilidade e ao desenvolvimento de uma metodologia feminista apropriada. Para começar, como podemos pesquisar a invisibilidade e onde devemos procurá-la? Mais importante ainda, a quem devemos prestar contas ao conduzir essa pesquisa e qual é o preço de divulgar as experiências das mulheres palestinas que, de outra forma, teriam permanecido invisíveis? Em outras palavras, somos sensíveis às nossas responsabilidades em relação às mulheres que pesquisamos e a como nos engajamos com suas vozes? Uma questão relacionada surge: qual é o preço de não nos envolvermos com as provações e as vidas diárias das mulheres em uma zona de conflito tão violenta?

Minha própria posição, como pesquisadora feminista palestina vivendo na área de minha pesquisa, emprestando significados das vozes ausentes e das provações das invisíveis e silenciadas, me obriga a abordar seriamente a metodologia necessária para capturar tal invisibilidade. Como pesquisadora feminista palestina, mãe de três filhas, esposa e membro da nação palestina, pesquisar o invisível e os invisibilizados é uma obrigação humana/política, acadêmica e moral.

Pesquisar o invisível, e focar na invisibilidade como a principal categoria de análise, exige que se permaneça atenta a cada mulher no contexto de sua experiência coletiva e objetiva de militarização e patriarcado, que se desenrolam no cenário do colonialismo, de uma economia política violenta e das desigualdades da globalização e do racismo. Para isso, os pesquisadores devem se envolver com o passado (principalmente a história da injustiça, incluindo os efeitos contínuos da Nakba sobre os palestinos) e como isso impacta a vida das mulheres.

Devem observar atentamente as maneiras pelas quais as mulheres se localizam nos significados que atribuem às suas experiências, na memória da consciência coletiva de suas famílias, comunidade e nação. Construir uma metodologia feminista para pesquisar a invisibilidade em zonas de conflito exige que se esteja atenta e capaz de documentar as resistências e lutas das mulheres contra as relações de poder, em seus atos diários, a caminho da escola, em seu trabalho, no cuidado com os outros e em suas estratégias de sobrevivência.

O artigo concluirá abordando um dilema. Devem as pesquisadoras feministas investigar todas as instâncias de invisibilidade em zonas de conflito, especialmente considerando que, em alguns casos, esta e o silêncio das mulheres se tornam um modo de sobrevivência e uma forma de autoproteção? Ao colocar em primeiro plano as narrativas e as vozes das mulheres, o artigo revela que a informação é uma das primeiras vítimas em áreas de conflito e que o “outro” é ainda mais invisibilizado, tanto pela incapacidade dos oprimidos de se manifestarem e explicarem suas posições e sofrimentos, quanto pela capacidade dos que estão no poder de manobrar e silenciar atores influentes na mídia, na economia, no direito e até mesmo defensores dos direitos humanos.

Também devemos ter atenção à possibilidade de que informações sobre a vida das mulheres, educação, saúde e mobilidade sob condições de vulnerabilidade possam ser usadas como ferramentas de opressão. O desafio para as acadêmicas-ativistas feministas é, consequentemente, entender a política da invisibilidade, especialmente vista através do prisma do trauma da violência e da perda constante.

O artigo sugere que a epistemologia do conflito e a política do conhecimento em zonas de conflito nos levam de volta ao muito pessoal, como político, ao mesmo tempo em que enfatiza que a produção de conhecimento nunca ocorre fora do âmbito da política, da história e da justiça.

Transgressões em espiral, militarização e a disrupção da vida cotidiana

A criação do Estado de Israel em 1948, o regime militar e a ocupação de terras palestinas adicionais na Cisjordânia e na Faixa de Gaza em 1967 resultaram na criação do problema dos refugiados palestinos, desafiando a questão do direito de retorno. Isso também questionou a legitimidade das alegações sionistas que retratam Israel como um Estado exclusivo do povo judeu e justificam os ataques constante do estado judeu aos corpos, vidas, lares e pátria dos palestinos. O fracasso do processo de paz e a falha na tentativa de pôr fim ao conflito estão enraizados – na minha opinião – na profunda insegurança histórica que Israel tem sobre sua existência na região.

A questão da legitimidade e da segurança de Israel está enraizada em reivindicações “históricas” que justificam a necessidade de Israel controlar totalmente os palestinos para se sentir segura. Os sofrimentos das vítimas palestinas são agravados pelas injustiças inerentes ao grande projeto colonial de assentamento, através de ataques violentos, deslocamento, apropriação de terras, demolições de casas e desestabilização das vidas palestinas. Isso está sendo feito para avançar o objetivo específico de estabelecer um estado judeu na Palestina.

Nosso foco está nos ataques militares a casas e escolas e na forma como o projeto colonial de assentamento judeu não apenas desestabiliza o cotidiano dos palestinos, mas também trabalha para “invisibilizar” sua causa justa. O ataque à casa palestina e ao direito palestino à educação segura não apenas deixou muitas famílias desabrigadas, mas também perturbou os direitos dos indivíduos à segurança e violou seu acesso à educação, saúde, redes sociais, etc.

Denominei esses atos de violência como transgressões “em espiral” para refletir suas consequências de longo alcance na vida daqueles que são afetados. Embora possam parecer no papel como eventos físicos isolados, o trauma causado por uma demolição de casa ou uma violação de direitos básicos permeia todos os aspectos da vida, alterando irrevogavelmente a realidade diária daqueles que são alvo dessa violência. Esse trauma se espalha e impacta o corpo, a mente, as redes sociais, a condição econômica, etc., de todos os envolvidos.

Por exemplo, quando a casa de uma criança é demolida, ela perde sua cama, livros, brinquedos, roupas, vizinhos e amigos. As crianças precisam aceitar e se adaptar a viver com parentes, mudar para um novo ambiente, lugar e espaço, mudar de escola, testemunhar a perda de sua família e reviver seu trauma por meio de seus atos diários. Quando a casa de uma mulher é demolida, sua perda afeta sua segurança corporal, privacidade, mobilidade, estilo de vida, bem-estar físico, saúde psicológica e sistema de apoio social. Portanto, os ataques ao corpo, à casa e à pátria funcionam de uma maneira espiral, invadindo todos os aspectos da vida e distorcendo o significado de uma vida individual sob ocupação militar.

A militarização do espaço palestino é uma tática amplamente utilizada pelo exército israelense, refletida nas centenas de postos de controle militares, nos ataques a instituições educacionais palestinas e nas demolições de casas. Por exemplo, desde 1999, o exército israelense destruiu mais de 5200 casas palestinas, deixando 25.719 mulheres, homens e crianças palestinas desabrigados e desabrigadas. Tem sido um método poderoso para impor a dominação espacial israelense e criar um caos constante que alimenta a forma espiralada em que a violência militarizada opera no cotidiano dos palestinos.

A desestruturação do cotidiano e seu poder transgressivo em espiral são refletidos na voz e na problemática de Mariam, de 11 anos. Cinco anos atrás, enquanto conduzia pesquisas de campo, envolvendo-me com e entrevistando vítimas de demolições de casas, percebi que uma das casas demolidas pertencia a Ayman, um ex-aluno meu. Uma semana após minha entrevista com a família, Ayman veio me visitar com sua esposa e sua filha Mariam. Ele queria minha ajuda para encontrar uma maneira de aliviar o efeito do trauma severo que sua filha estava sofrendo após a perda da casa da família e o deslocamento deles.

Conversar com a família, e principalmente com a pequena menina, revelou-me a inseparabilidade das negações históricas (globais e locais) do direito dos palestinos a um lar e o trauma pessoal contínuo de Mariam, Ayman o resto de sua família. Mariam compartilhou comigo a história da demolição de sua casa com muito desespero, dor, lágrimas e raiva. Ela me contou como centenas de policiais e oficiais militares atacaram sua casa em Silwan enquanto ela dormia. Ela descreveu os grandes cães prontos para atacar sua mãe, que estava resistindo à demolição de sua casa enquanto carregava seu irmão mais novo, o barulho alto das escavadeiras, o horror extremo que atingiu sua família, e sua confusão, perda da capacidade de falar e raiva diante da injustiça.

Então, ela disse: “As demolições de casas se tornaram normais. As escavadeiras se tornaram algo normal para os judeus. Eles já demoliram tantas casas em Silwan… que a demolição da minha casa é normal, o que me deixa muito chateada com o mundo. Doente, muito doente… Eu me sinto exausta”.

Ouvir tais reflexões e emoções de uma menina de 11 anos foi chocante. Mas a pesquisa sobre demolições de casas revelou que a voz de Mariam era uma das muitas vozes normalmente não ouvidas que contestam a normalização da violência em zonas de conflito. Isso nos chama a desvendar a violência infligida contra ela e a questionar a injustiça refletida na política da invisibilidade de sua perda. Chama nossa atenção para a falta de reconhecimento de sua vitimização, sua “normalização” e sua legalização.

O trauma de Mariam, embora não ouvido ou reconhecido, aponta para o fato de que não há produção de conhecimento fora da política e da história de perda, deslocamento e injustiça. Sua rejeição da normalização de seu trauma, refletida na política de demolição de casas, destaca o fato de que, para a pesquisa feminista, o reconhecimento de tal sofrimento oculto não é apenas uma necessidade científica, mas também uma obrigação política.

Essa obrigação nos afasta da abordagem positivista, que geralmente levanta questões sobre a legitimidade do estudo em relação ao “tamanho” da amostra, sua representatividade, etc. Em vez disso, nos leva a uma abordagem diferente, que posiciona pessoas como Mariam como fonte de conhecimento. Isso levanta um novo conjunto de questões que giram em torno da busca por justiça e do alívio da dor daqueles que vivem a “cotidianidade” da militarização e da violência. A situação de Mariam exige que feministas estejam atentas à pesquisa sobre a invisibilidade e os invisibilizados.

Mariam foi persistente ao discutir o impacto que o barulho, as escavadeiras aterrorizantes e o poder militar violento tiveram em seu pequeno corpo e em sua jovem vida. Ela insistiu em me perguntar se eu conhecia alguém que a deixaria compartilhar com o mundo o seu medo da cor amarela, que a lembrava das escavadeiras e de sua sensação de perda.

No entanto, seu pedido persistente de compartilhar e falar “a verdade ao poder” foi interrompido pelas intervenções ansiosas de sua mãe. Sua mãe explicou que, se Mariam falasse para uma estação de televisão, o estado judeu a privaria do tratamento médico que precisava. Mas Mariam continuou firme em pedir a mim e a seu pai que encontrássemos uma maneira de ela contar sua história. Seu pai começou a fazer sugestões, mas sua mãe – que estava quase chorando – afirmou que não conseguiria lidar com mais perdas que poderiam resultar desse relato. Ela explicou que o que importava agora era a saúde de Mariam (que desenvolveu diabetes infantil após a demolição da casa), e não se o mundo sabia ou não sobre os efeitos das demolições de casas. Ela me perguntou: “Você acha que o mundo se importa conosco? Você acha que somos considerados seres humanos nas fórmulas de poder do mundo?” Apesar das palavras de sua mãe, Mariam insistiu: “Quero contar ao mundo inteiro o que eles fizeram conosco. Quero mostrar a eles o que fizeram comigo.”

A voz de Mariam e a longa história de perda e injustiça de sua família nos permitem refletir sobre o efeito da negação global, regional e local do sofrimento dos invisíveis e invisibilizados. Refiro-me aqui especificamente ao caso palestino. Isso exige que olhemos de perto para a forma como essa negação e as dinâmicas de poder influenciam os corpos e moldam as vidas de indivíduos e famílias que vivem em zonas de conflito e guerra.

Ilumina os níveis sem precedentes de poder militar hegemônico envolvido na ocupação de terras e questiona se, e como, metodologias feministas podem ser desenvolvidas quando transgressões violentas, tanto locais quanto globais, operam de maneira espiral e acumulativa, afetando atos e movimentos cotidianos de indivíduos. Isso exige que entendamos como e se podemos estudar a “invisibilidade” através das vozes das pessoas quando os contextos localizados e as políticas de poder global mudam rápida e imprevisivelmente, deixando as vítimas/sobreviventes em um estado constante de turbulência e confusão, e quando nossa pesquisa carrega implicações políticas.

A natureza espiralada da transgressão, evidente no sofrimento prolongado da família de Mariam, afetou todos os aspectos de suas vidas. A família perdeu sua casa em Haifa em 1948 (durante a Nakba palestina), viveu a partir de então em um estado constante de deslocamento, perdeu o contato com membros de sua família nuclear e ampliada, foi privada de redes sociais, acesso adequado à educação e ficou incapaz de encontrar emprego remunerado ou garantir o bem-estar da família. A perda da casa de Mariam e a incapacidade de sua família de protegê-la de traumas adicionais – no contexto da falha mundial em pôr fim à violação contínua dos direitos dos palestinos – trabalharem de maneira espiralada para impactar Mariam e sua família econômica, social e psicologicamente.

As perdas de Mariam e suas ramificações refletem-se, por exemplo, em sua situação de saúde e na pesada medicação que ela está tomando. Isso influencia seus hábitos alimentares, sua imagem corporal e todo o seu futuro como mulher. Para Mariam, ser uma mulher em uma sociedade patriarcal como a Palestina, e sofrer de diabetes infantil, afeta não apenas sua saúde física, mas também o grau de sua vulnerabilidade como jovem mulher. Isso (como explicaram seus pais) influenciará ainda mais sua capacidade de obter segurança social e econômica, acessar instituições educacionais, impactar sua sexualidade e afetar suas perspectivas de casamento.

Achados semelhantes foram evidentes ao revelar o efeito da perda da casa, devido à sua demolição, na segurança corporal das mulheres, na política da sexualidade, no senso de privacidade e nas decisões pessoais futuras. Jovens mulheres, por exemplo, explicaram que precisavam se abster de se inscrever em universidades e aceitar propostas de casamento precoce devido ao pesado fardo econômico sobre suas famílias. Outras explicaram que precisavam viver com um grande número de familiares extensos, perdendo sua segurança corporal, privacidade e senso de proteção familiar após a demolição de suas casas.

Assim, a maneira espiralada como a violência funciona e afeta a vida das pessoas que vivem sob sua sombra acrescentou aos níveis já excessivos de força (que têm sido justificados pelo que chamo de teologia de segurança de Israel) e legitimou ataques desproporcionais contra os palestinos, interrompendo sua vida cotidiana e seu futuro. A interrupção da vida cotidiana dos palestinos, seja ao afetar sua capacidade de ir à escola, de manter a casa como um espaço seguro, de dar à luz em segurança ou de enterrar seus entes queridos com dignidade, foi justificada pela alegada necessidade de garantir “segurança para Israel”.

“Segurar Israel” dos palestinos, a qualquer custo, e mesmo que viole códigos internacionais de moralidade e leis, tornou-se uma nova religião, uma nova teologia que está acima dos questionamentos e desafios. A segurança do Estado israelense, conforma definida pela liderança militar israelense e pela elite política, cria uma espiral de inseguranças e ataques que afetam cada momento da vida dos civis palestinos. Alguns desses ataques, como expõe o sofrimento de Mariam, são invisíveis, não contados e negados em seu reconhecimento.

A precisão, o poder e a eficiência dos efeitos espirais das práticas violentas militarizadas resultaram em ameaças crescentes à família de Mariam, incluindo a ameaça de deslocamento interno constante, exílio, perda de lar e família, perda de sustento econômico e a privação dos direitos à saúde e à educação. E, no entanto, o modo, a estrutura e o poder epistêmico dessa teologia de segurança, que torna invisível o sofrimento humano de Mariam e sua família, permanecem indistintos e ocultos.

Estudar o efeito espiral da violência legalizada (deslocamento interno, privação de segurança, etc.) e o uso dos corpos e vidas das mulheres para fortalecer a burocracia e as políticas coloniais ajudará no desenvolvimento de uma metodologia feminista clara e politizada que coloca o sofrimento das mulheres no e como o centro. Meu argumento é que, ao dar destaque às vozes de segurança israelense, e refletidas no ataque ao corpo, lar, pátria e vida, seria possível construir um espaço analítico crítico a partir do qual se possa teorizar uma metodologia feminista contra a violência colonial.

Para fortalecer meu argumento, eu me baseio nas vozes de mulheres que enfrentam demolições de casas, seguidas de vozes de mulheres que enfrentam a violação de seu direito à educação, e concluo com algumas reflexões sobre metodologias feministas e os perigos tanto da invisibilidade quanto da visibilidade.

Metodologias feministas e lares de invisibilidade em zonas de conflito

As atividades diárias dos deslocados palestinos são impactadas pelas polícias militares, manifestadas pelas, entre outras formas, em demolição de casas e no Muro de separação israelense. Como resultado dessas medidas, e conforme afirmado pelas mulheres que entrevistei, as mulheres palestinas perderam seu senso de segurança, autonomia e independência econômica. Elas relataram que sofrem com o medo constante de perder suas casas, familiares e a capacidade de prover aos seus filhos.

O estrangulamento econômico que impede os palestinos de frequentar escolas, encontrar empregos decentes e circular livremente dentro e entre suas próprias áreas teve um impacto profundo na segurança física e na vida dessas mulheres. Elas expressam medo pela sua segurança física; muitas dormem totalmente vestidas, temendo abusos e a chegada de tratores que podem demolir suas casas. As vozes de Manar, Hoda e outras mulheres citadas a seguir revelam como as políticas militaristas de Israel permeiam todas as áreas da vida palestina.

Manar relata: “Nos últimos três anos, depois de me lavar à noite, tenho ido para a cama com todas as minhas roupas… Tenho medo até de usar pijama para dormir, porque nunca se sabe o que pode acontecer… pergunte o que aconteceu com Hoda quando demoliram a casa dela, e você entenderá por que dormimos completamente vestidas”.

Hoda descreve a demolição de sua casa da seguinte forma: “Quando demoliram a casa, eu ainda estava de roupa de treino… Só percebi isso quando vi as fotos no jornal… Eu estava sem véu e só de roupa de treino! Nunca vou perdoá-los por violarem minha privacidade e meu direito à segurança em minha própria casa. Por causa disso, até hoje, me recuso a tirar o véu e dishdasheh [vestido longo] quando estou em minha casa alugada. Desde a demolição do ano passado, não sei o que significa dormir. Sinto que eles me privaram até do direito de dormir e dormir em segurança”.

Nawal e Salma contam histórias semelhantes de perda e medo. Nas palavras de Nawal: “Perdemos tudo – todo senso de segurança. Não conseguimos água sem travar uma batalha, não conseguimos encontrar nossos pais sem travar uma batalha, não conseguimos dormir, não conseguimos gritar ou chorar. E mesmo que o façamos, ninguém escuta. Embora tanto meu marido quanto eu sejamos jerusalemitas, nossos filhos não são, e eles não têm carteira de identidade… Todos eles estão sob ameaça constante. Perdemos todo o senso de segurança. Às vezes, sinto que ser um cachorro ou um gato é mais seguro do que ser palestino”.

De acordo com Salma: “A segurança é o nosso principal problema. Nossos filhos enfrentam assédio sexual a caminho da escola a cada dia, todos os dias. Três meses atrás, alguém tentou sequestrar minha filha de seis anos, e eu não tinha a quem recorrer para pedir ajuda. Eles se recusam a proteger as ruas e não há transporte público. Assim, acabamos andando em áreas inseguras e nossos filhos acabam caminhando para a escola em estradas inseguras”.

Para Hoda, conversar comigo sobre suas próprias dificuldades foi uma oportunidade de compartilhar suas experiências e desabafar em sua própria língua, ao invés de “como uma especialista jurídica”. Ela repetidamente afirmava que seu problema não era a legalidade ou ilegalidade da demolição da sua casa, mas sim “a ilegalidade da minha existência… então, vocês têm uma lei que verifica se eu deveria existir, se minha família deveria viver ou não? Poderiam escrever minhas perguntas em sua pesquisa?”

Hoda, junto com suas vizinhas, levantou questões e solicitou que suas preocupações fossem levadas perante o mundo todo. O uso constante de frases como “Ninguém nos vê ou nos ouve” e “não somos considerados seres humanos” me levou à percepção da importância de desenvolver uma metodologia feminista que se engaje com a invisibilidade como um espaço central para entender as não vistas e as não ouvidas.

Hoda, assim como outras mulheres palestinas que entrevistei, ressaltou que o ataque ao lar palestino é uma estratégia deliberada de guerra. Isso altera os papéis de gênero, causa deslocamentos físicos, destrói redes sociais e rompe o tecido social. Leva a mudanças nos papéis de gênero, a confrontos intergeracionais e abala os valores sociais[i]. Nessas condições, raízes culturais, crenças religiosas e espirituais atuam como amortecedores psicológicos que ajudam as mulheres sobreviventes a moldar e remodelar sua subjetividade para reduzir riscos. O fato de que o lar (tanto física quanto emocionalmente) é um local de resistência, sobrevivência e uma fonte de voz para as mulheres, reconstrói novos significados.

Como Samar declarou: “Minha casa era o lar da família; era o lugar onde reuníamos toda a família às sextas-feiras, o lugar para onde a maioria dos nossos parentes vinha pedir ajuda quando estavam em apuros… era um lugar onde nos reuníamos em momentos felizes e tristes… durante casamentos, durante nascimentos, quando perdíamos alguém, quando alguém era libertado da prisão… era o lugar em que me sentia feliz… no controle, amada, apreciada, respeitada… um lugar para conversar, chorar, compartilhar, encontrar, relaxar, brigar. Eu era tão orgulhosa da minha casa, tão forte e enérgica… Agora… parece um cemitério… eles enterraram todas as nossas energias e solidariedade… agora… estamos divididos e muito perdidos.” Samar, 58 anos.

Dentro do regime militarista fortemente opressivo de Israel, a casa é um dos poucos lugares onde as mulheres palestinas podem encontrar consolo. Como o único lugar de refúgio, a casa é um lugar para crescimento pessoal e construção de comunidade. Como tal, é um local de oposição dentro de um patriarcado militar-estatal e um lugar onde as mulheres palestinas podem se proteger das “esferas duplas do racismo e do sexismo”.[ii]

Eu argumento que as metodologias feministas em zonas de conflito devem estar atentas ao significado que certos espaços carregam, como o significado do espaço da casa. As vozes das mulheres palestinas revelaram que o lar representa um lugar de acolhimento que facilita o desenvolvimento delas. O lar foi encontrado como o único lugar de refúgio. É um espaço para formação de identidade e construção de comunidade. O lar, como aprendemos com as mulheres palestinas, serve como um espaço seguro que elas criaram diante de uma história e de uma vida em diáspora forçada. Para elas, a casa se tornou não apenas um local de cultivo pessoal, mas também um espaço de resistência política e agenciamento.

Perder o lar equivale a perder o espaço onde elas podem, com segurança, se transformar em indivíduos mais independentes e fortes em meio à constante incerteza e violência. Implica perder o espaço que afirmava seu poder de amar e cuidar, independentemente do estrangulamento da economia palestina, das perdas e privações que não cessam, e da negação global dessas realidades.

Significa perder o único espaço onde podem restaurar sua dignidade, negada pelas estruturas de poder e sua teologia industrializada de segurança. Enquanto o lar para algumas mulheres palestinas pode ser o que teorias feministas convencionais concebem como um local de opressão e subordinação, também é o único espaço que afirma sua humanidade em um contexto global e local desumano e brutal. Como local de “resistência pessoal/política”, o espaço privado do lar ganha maior importância para as mulheres vítimas de violência militar e deslocamento constante.

De maneira similar, meu estudo sobre os efeitos do Muro de separação israelense em meninas palestinas em idade escolar revelou como os tormentos e a luta diária delas para atravessar postos de controle militares e passar pelo Muro se tornaram uma preocupação séria e fonte de angústia para elas. Seus medos de serem abusadas sexualmente e assediadas, suas preocupações de serem deixadas esperando por horas no frio ou sob o sol, a negação do direito de acessar suas escolas, o que causou a perda de provas e a interrupção da frequência escolar, foram encontrados como fatores que militarizaram seus espaços e violaram seu direito à educação.

No entanto, examinar as lutas diárias das meninas e as ramificações da violação de seu direito à educação são temas que foram perdidos nas discussões legais, globais e midiáticas sobre a legalidade ou ilegalidade da construção do Muro. As dificuldades das meninas e suas vozes foram invisibilizadas, não apenas pela ocupação israelense e seus apoiadores, mas, em alguns casos, até por ativistas de direitos humanos que usaram o discurso legal e de direitos humanos para enfatizar a ilegalidade da construção do Muro e as injustas demolições de casas, enquanto fechavam os olhos para o trauma da construção do Muro.[iii]

Mas, ao estudar e me envolver com as experiências diárias de mulheres e meninas, aprendi como os conflitos violentos afetaram seu cotidiano, a maneira como agem, se vestem, planejam seu futuro, tomam decisões, se casam, etc. Aprendi que, em alguns casos, os pais decidiram impedir que as meninas continuassem sua educação, temendo o efeito dos postos de controle militares sobre sua segurança. Em outros casos, meninas não conseguiram lidar com as humilhações e sofrimentos diários e decidiram abandonar a escola; em outros ainda, meninas aceitaram um casamento precoce para escapar da opressão diária.

Desenvolver metodologias que são capazes de ler, ouvir e ver o não-visto requer aquele olhar naqueles que foram invisibilizados – no nosso caso, as mulheres palestinas – como fontes de conhecimento invisível sobre o papel e o valor de um lar seguro em meio à constante instabilidade. A contínua invisibilidade dos sofrimentos das mulheres contribui para a falha em entender os efeitos da militarização e, assim, agrava o efeito da instabilidade e do caos durante tempos de perigo e trauma em zonas de conflito, onde prevalecem incertezas e interrupções da vida.

Pesquisar essa invisibilidade me permitiu desafiar a violência epistêmica da produção hegemônica de conhecimento, que alegava que o Muro foi construído para “salvaguardar” e “proteger” vidas. Isso trouxe à tona uma ‘necropolítica’ contínua, uma economia de vida e morte que dita cujas vidas devem ser salvaguardadas e protegidas, e quem são os ‘outros’ não contados. Ouvir as vozes de meninas jovens me permitiu desvendar as implicações do colonialismo, da militarização, das ideologias hegemônicas e da guerra sobre nossas metodologias. Abriu novas janelas de empoderamento e de pesquisa sobre a invisibilidade. Trouxe à frente da pesquisa, assim como à frente do conflito, a importância de investigar a falta de acesso a hospitais e escolas como uma maneira deliberada de intensificar a fragmentação da sociedade palestina.

O poder sempre mutável das transgressões em espiral

Em meu estudo sobre a natureza de gênero na educação,[iv] mostrei como o cotidiano do militarismo e da violência afeta a forma como meninas jovens têm acesso às suas escolas. O estudo cita Reem, uma menina de 13 anos que compartilhou o seguinte relato: “Eu realmente quero continuar indo à escola, mas os soldados e o Mishmar Hagvul [patrulha de fronteira] continuam assediando a mim e à minha família. Como você pode ver, moramos muito perto — a um minuto — do muro de separação racista, e os soldados não me incomodam no caminho para a escola, mas não permitem que eu volte para casa. Agora estou me esgueirando e chegando em casa da escola através dos canos de esgoto que ainda estão abertos. Toda vez que eles se recusam a me deixar voltar para casa, eles sabem que eu chegarei em casa ou andando mais de cinco quilômetros, ou me esgueirando pelos canos de esgoto”.

A voz de Reem revela como seu tempo, espaço e rota para a escola foram violados diariamente. Seu testemunho fala de seus desafios cotidianos, bem como de seus atos de resistência e agência. No entanto, o sofrimento de Reem raramente é visto ou conhecido, e seus encontros diários, como os de muitas mulheres e homens que vivem nos Territórios palestinos ocupados (TPO), são quase invisíveis. O encontro entre a violência estatal israelense e as mulheres civis palestinas é colonial por natureza, uma construção de dominação por meio de práticas de violência dirigidas ao corpo, lar e pátria colonizados. Encontros coloniais, incluindo despejos violentos, reivindicações de que a terra está vazia e a suposta necessidade de salvar os colonizados de sua própria cultura “atrasada” e falta de civilidade, afetam os atos cotidianos dos colonizados.

Os detentores do poder colonial confinaram os palestinos a espaços específicos nos Territórios palestinos ocupados, e criaram uma nova administração colonial. Os movimentos e vidas das pessoas estão sob o controle do regime de colonialismo. A gestão das fronteiras dentro dos espaços palestinos também está sob sua administração. Espaços guetizados são criados para o “outro” palestino, controlados por postos de controle militar, novas leis de zoneamento e planejamento, e a criação de espaços e estradas para os colonos, tanto conceitualmente quanto materialmente. Consequentemente, o corpo palestino, o lar, a escola, o tempo e o espaço, e seus atos cotidianos, são racializados e generificados.

Um caso de um contra-espaço,[v] criado em oposição ao lar demolido, foi encontrado no relato de Iqbal. Ela fala sobre a noite em que sua casa foi demolida com apenas trinta minutos de aviso: “Eles vieram, com seus grandes tratores, carros, forças policiais… muitos soldados com suas armas apontadas para meus filhos… e o barulho… suas vozes, sua língua hebraica que ninguém entendia, me fizeram sentir como se eu estivesse em um redemoinho [dawameh]. Eu estava correndo como louca, entre acalmar as crianças, com medo de que fossem baleadas, recolhendo nossos papéis, documentos, certidões de nascimento… recolhendo o ouro que as crianças ganharam de presente de seus avós… Eu estava tentando reunir tudo com tanta pressa… e quando eles disseram que estavam prestes a demolir a casa, Salim, meu filho de quatro anos [na época ele tinha menos de dois anos] não estava por perto. Eu pensei que ele estava dentro da casa e comecei a gritar… gritar sem conseguir parar. Mas ele estava bem ao meu lado, segurando minha deshdasheh [um vestido largo de casa] … Quando começaram a demolir a casa, eu o abracei com suas irmãs… envolvi todos na minha deshdasheh e todos choramos. Até hoje, as meninas ainda se lembram de como toda a família ficou envolta na minha deshdasheh suja, chorando como nunca choramos antes, choramos e choramos enquanto nossos corações estavam em chamas.”[vi]

Examinar a invisibilidade no ato de Iqbal nos permite expandir nossa compreensão da política mundial para incluir o sofrimento pessoal das “outras” pessoas, como parte constitutiva de esferas anteriormente invisíveis, e conceber os atos de resistência e agência das mulheres como atos contra-hegemônicos que funcionam sob uma severa e espiral transgressão. Estudar a invisibilidade no contexto de transgressões espirais em áreas de conflito levanta questões feministas/políticas e éticas cruciais que não podem ser ignoradas. O desenvolvimento de uma metodologia feminista que reconheça e visibilize os sofrimentos das mulheres em zonas de conflito é tanto uma ação epistemológica quanto política, um meio de transformar a metodologia em um ato político de resistência ao subjugo.

O estudo do lar e do espaço educacional como locais de invisibilidade, mas também como fontes de conhecimento, revela a conexão espiral e intrincada entre fatores internos (pessoais, familiares, comunitários) e fatores estruturais/político-econômicos. Como os estudos de caso palestinos indicaram (e como pode ser visto em muitas zonas de conflito), a institucionalização localizada da violência e da paz facilitou nossa compreensão do efeito do militarismo global localizado no cotidiano das vidas das mulheres. O envolvimento com as vozes das mulheres revelou como o deslocamento, as demolições de casas, a privação da educação e a perda são uma estratégia evidente e deliberada de guerra.

O silenciamento e a invisibilização dos palestinos deslocados desde a Nakba de 1948 (a catástrofe palestina), e o efeito espiral da desarticulação física e emocional, incluindo a destruição de comunidades inteiras, levaram a mudanças drásticas no comportamento de mulheres e meninas, à perda de certos valores e à aquisição de novos. Por exemplo, visibilizar como as mulheres moldam e remodelam sua subjetividade para reduzir o risco sob extrema violência pode ser revelador para os pesquisadores de zonas de conflito. Revelar o efeito global silenciado e invisibilizado da privação de educação, segurança, e da certeza e previsibilidade, e o cotidiano da violência, por meio de uma metodologia feminista crítica, é um ato feminista e político. Uma metodologia desse tipo nos permite compreender como o pessoal e o familiar mantêm a vida unida e ajudam as mulheres a preservar a humanidade de seus entes queridos.

No sentido de desenvolver uma metodologia feminista da política da invisibilidade, tentei desvendar as experiências diárias da mulher palestina e o efeito que a transgressão espiral tem sobre ela (assim como sobre outras pessoas palestinas), e seus direitos à moradia e educação, bem como ao livre acesso à ver suas famílias, frequentar a escola, ter saúde, água, comida, etc. Esse processo de desvendar nos ajuda a descobrir as hierarquias das violências oculta e aparente. Conhecer e tornar visíveis as transgressões espirais “invisíveis” das mulheres palestinas exige que olhemos para as raízes da injustiça histórica causada aos palestinos e a justapor isso ao efeito contínuo da violência militarista e colonialista.

É um processo que nos obriga a questionar a relação entre sua política de identidade, como refugiada palestina, a política de “invisibilização” de seus direitos, causa, necessidades e cotidiano de sofrimento e a geopolítica do projeto colonial, conforme refletido na política espacial de apropriação de terras, deslocamento e demolições de moradias. Analisar a relação entre política de identidade, geopolítica e a política da invisibilidade exige que analisemos seu efeito nos encontros diários das mulheres palestinas que vivem em um contexto de negação global de seus direitos básicos à vida e subsistência. As análises do cotidiano requerem que se leia a “invisibilidade” da mulher colonizada por meio das organizações políticas em sua vida cotidiana. Isso significa que devemos olhar para o que está sendo imposto e projetado sobre corpos e vidas específicas.

Desenvolver uma metodologia feminista que revele a invisibilidade dos atos cotidianos de resistência das mulheres exige que primeiro desvendessemos as tecnologias de dominação, como o controle sobre a segurança corporal, sobre a água, comida, eletricidade e movimento. Exige desvendar o controle sobre espaços, lugares, tempo, economias e desenvolvimento; todos empregados pelo regime colonialista de invasão. Tal metodologia pede que leiamos as contra-linguagens, contra-ações e contra-espaços criados pelos colonizados e ocupados ao resistirem à opressão. Também requer uma leitura do poder espiral, constante e sempre mutável das tecnologias de dominação do colonizador.

Metodologia feminista e os perigos da invisibilidade e visibilidade

Este artigo argumenta que a falha do feminismo em desenvolver metodologias que tornem visível o invisível não é apenas uma questão acadêmica, mas também política, que exige uma análise cuidadosa da história e da justiça. Defendo que existe um grave perigo tanto em invisibilizar quanto em visibilizar os sofrimentos das mulheres e o efeito espiral da violência cotidiana contra as mulheres em zonas de conflito.

Tal argumento nos leva a refletir sobre questões como: Qual é o preço de não nos conectarmos com os sofrimentos das mulheres e com o seu clamor por justiça histórica? Qual é o preço de não agirmos diante da cotidianidade de suas experiências, negando às mulheres um espaço para suas teorias? Qual é o preço de divulgar mulheres em zonas de conflito sem permitir que elas falem ‘a verdade ao poder’ através da pesquisa? Qual é o preço em falhar na visibilidade do invisível? Qual é o efeito do trauma do silenciamento? Todas essas são questões relevantes que precisam de mais investigação.

Análises sociológicas da visibilidade[vii] apontam para a importância de estudar as assimetrias e distorções da visibilidade, quando estas são a norma, e sugerem que essas questões deveriam ser incorporadas na metodologia feminista crítica. Além disso, proponho que tais assimetrias transformam a questão da visibilidade-invisibilidade em um campo de estratégia e política, exigindo, assim, uma contrapartida política, metodológica e linguística.

Uma metodologia que propõe rastrear a arqueologia da resistência “invisível” das mulheres em zonas de conflito nos ajuda a desvendar a produção de conhecimento ocidental engendrada, seja na traumatologia, que tende a patologizar atos de resistência[viii], nos direitos humanos, que precisa utilizar discursos regulatórios legais e, assim, legaliza e despolitiza atos desumanos[ix], ou na criminologia e vitimologia, que são profundamente influenciadas por aqueles que controlam a produção de conhecimento e seu domínio acadêmico.

As vozes ocultas/silenciadas das mulheres palestinas nos ensinam que o desenvolvimento de uma metodologia feminista que investigue a invisibilidade requer que também questionemos como, por que e quando a visibilidade se entrelaça com percepções de perigos e ‘segurança’. Isso nos exige olhar e engajar com a forma como a marginalidade da mulher se entrecruza com sua ‘periculosidade’ como palestina, e como o estado israelense constrói uma teologia da segurança que opera em todos os níveis da vida cotidiana para silenciar e invisibilizar as vozes das mulheres.

Conectar os pontos entre a política de transformação do visível em invisível e compreender o funcionamento do poder na normalização ou negação dessa invisibilidade, como evidenciam as vozes das mulheres palestinas vivendo em zonas de conflito, nos leva de volta ao ponto de partida. Isso nos leva de volta à análise do efeito da política local e global de negação na compreensão da política de pesquisar “invisibilidade” e os invisibilizados em zonas de conflito e de guerra. Convida-nos a pesquisar mais de perto a política de ver e ouvir, enquanto mapeamos o aterrorizante cenário em que ordem, regularidade, previsibilidade, rotina e a própria cotidianidade são organizadas em zonas militarizadas. Isso nos ajuda a desenvolver uma metodologia feminista crítica que documenta e se engaja nos atos diários de resistência/sobrevivência das mulheres “invisíveis” que vivem em zonas de conflito.

Além disso, a formação e gestão da visibilidade e invisibilidade levantam questões como: quem são as mulheres em zonas de conflito que devem ou não ser vistas e por quê. Também exige que desvendemos o regime de invisibilidade. A visibilidade é uma operação de poder, controlada e operada pela política e produção de conhecimento, quando o invisível não é estático ou absoluto, mas sim um detentor de poder oculto que deve ser temido[x].

Pesquisar o trauma invisível dos palestinos, quando perdem suas casas e sua pátria e quando sobrevivem ao perigo constante e incertezas, requer o olhar para as conexões interligadas entre as transgressões espirais do trauma e a invisibilidade no contexto histórico do racismo e política de poder invisibilizante e globalizada. Para entender as vozes silenciadas das meninas que são privadas de seu direito à educação, ou compreender o significado da perda do lar para as mulheres palestinas, deve-se estudar a invisibilidade de suas histórias, da negação global de seus direitos, bem como a invisibilidade de seus traumas psicológicos como meninas e mulheres enfrentando injustiças contínuas.

As vozes das mulheres compartilhadas neste artigo também apresentam um desafio ao papel da política internacional em negar justiça aos palestinos, ao destacar como as vidas privadas diárias das mulheres estão intimamente ligadas à política global de ver um lado, enquanto torna o outro “invisível”. Portanto, estudar a invisibilidade requer tanto uma análise macro quanto micro da economia política global, para ligar as vidas privadas das mulheres ao jogo de poder global. Estudar a invisibilidade pode nos ajudar a detectar alegações de ‘segurança’ que podem silenciar ainda mais o que não é visto.

Estudar mulheres e suas famílias em momentos de militarização e deslocamento, quando o corpo, o futuro, a casa e a família estão ameaçados, pode às vezes perturbar a produção do conhecimento hegemônico. A questão que permanece é se tal perturbação poderia ser considerada uma forma de ação política feminista. Ler e escrever sobre a invisibilidade contribui, em muitos casos, para evitar que mulheres percam suas conquistas na luta diária pela sobrevivência. Se tal metodologia seria empoderadora ou transformadora para mulheres em situações extremas de violência é uma questão que permanece sem resposta.

Duas perguntas finais permanecem sem resposta: Qual é o preço de divulgar as experiências invisíveis das mulheres palestinas? Quem pagaria o preço dessa visibilidade? E será que a visibilidade acrescentaria insulto à injúria e infligiria trauma e perda adicionais? Com base em meu ativismo clínico e na pesquisa compartilhada neste artigo sobre demolições de casas e a militarização da educação, gostaria de argumentar que, em alguns casos, as próprias mulheres exercem o direito de permanecer em silêncio e optam por viver na escuridão, em um esforço para negociar suas estratégias de sobrevivência.

Essas recusas de manifestação não devem apenas ser levada em consideração, mas também respeitadas e protegidas, pois – como afirmei em outro lugar em minha pesquisa sobre mulheres enfrentando abuso sexual na Palestina[xi] – as mulheres não são veículos para ativismo político, pesquisa ou mudança. Nosso primeiro e mais importante compromisso ético e político como feministas deve ser nos guiar pelos julgamentos, silêncios, discursos e escolhas das mulheres. Para mim, ser feminista significa não apenas trazer ou não trazer à tona o poder e os significados inerentes ao silêncio e ao discurso; também significa ser responsiva e responsável pelas maneiras de se envolver, escrever, ler e não escrever ou visibilizar as vozes ocultas daqueles que estão sobrevivendo no escuro e lidando com a injustiça diariamente.

Noções de ‘verdades’ acadêmicas e nosso compromisso com aqueles que estudamos no contexto da política de invisibilidade e responsabilidade carregam significados e ideologias éticas e políticas complicadas. As histórias de mulheres e meninas, como a de Mariam, me fizeram questionar o papel de desenvolver uma metodologia que seja capaz de tornar o invisível visível e escrever sobre as injustiças feitas aos “invisibilizados” em meio a um conflito volátil e violento.

As mulheres podem precisar permanecer invisíveis, e sua decisão de negar voz ao seu conhecimento, e impedir que suas narrativas vejam a luz do dia, deve guiar nossas construções. Mas não devemos esquecer que é no nível íntimo da vida “invisível” de sofrimento de Mariam, e com atenção aos detalhes cotidianos, que se pode desenvolver uma metodologia feminista que pesquise a invisibilidade e compreenda em profundidade o efeito do poder das transgressões espirais nas vidas das mulheres.

Pois, como Mbembe afirma: “o poder, em sua própria busca violenta por grandeza e prestígio, faz da vulgaridade e do erro seu modo principal de existência”[xii]. Consequentemente, é essa intimidade da experiência e a obscenidade do poder – como Mbembe a define – que devemos tentar desvendar ao pesquisar a “invisibilidade”.[xiii]

*Nadera Shalhoub-Kevorkian é professora na Universidade Hebraica de Jerusalém. Autora, entre outros livros, de Militarization and violence against women in conflict zones in the Middle East: The palestinian case-study (Cambridge University Press).


Notas

[i] Nadera Shalhoub-Kevorkian (2005), op.cit.

[ii] Nadera Shalhoub-Kevorkian (2008), op.cit.

[iii] Nadera Shalhoub-Kevorkian, & S. Khsheiboun, “Forbidden voices: Palestinian women facing the Israeli policy of house demolition,” Women’s Studies International Forum (2009).

[iv] Nadera Shalhoub-Kevorkian (2008), op.cit.

[v] Definição desse conceito por Ruy-Moreira.

[vi] Nadera Shalhoub-Kevorkian (2005), op.cit., 133.

[vii] A. Brighenti, “Visibility: A Category for Social Science,” Current Sociology, 55(3) (2007): 323- 342.

[viii] I. Martín-Baró,Writings for a Liberation Psychology. Ed.Ignacio Martín-Baró Ed and trans. A.Aron & S.Corne (Cambridge/London: Harvard University Press: 1996).

[ix] Nadera Shalhoub-Kevorkian & S. Khsheiboun, (2009), op. cit.

[x] Nadera Shalhoub-Kevorkian, “Education and the Israeli Industry of Fear,” in Education in the Arab Region: Global Dynamics, Local Resonances, World Yearbook of Education, Routledge, 2009.

[xi] Nadera Shalhoub-Kevorkian, “Blocking her exclusion: A contextually sensitive model of intervention for handling female abuse,” Social Service Review 74 (4), (2004): 620-634 and Nadera Shalhoub-Kevorkian, “Imposition of Virginity Testing: a Life-Saver or a License to Kill. Social Science and Medicine,” V 60 (2004): 1187-1196. 2.453; 6, 4/28.

[xii] A. Mbembe, “The Banality of Power and the Aesthetics of Vulgarity in the Postcolony, Public Culture 4(2) (1992): 1-30.

[xiii] Gostaria de agradecer a Sarah Layton pela assistência com este artigo.

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