MG: Comunidades Terapêuticas e trabalho forçado
Em 2023, cinco internos foram resgatados. Entidade explorava dependentes químicos com “laborterapia” – prática sem respaldo científico. Privados de liberdade, eles erguiam a sede da organização e recebiam comida estragada. Relatório expõe violações em pelo menos 205 “clínicas”
Publicado 21/07/2025 às 16:54

Por Jeniffer Mendonça, na Repórter Brasil
“Durante o dia, eu trabalhava de pedreiro. Durante à noite, cheguei a tomar conta de 28 pessoas, como monitor.” Foi assim que Sérgio* descreveu aos auditores fiscais do trabalho parte da sua rotina diária de 12 horas de trabalho, sem folgas, na CT (Comunidade Terapêutica) Tenda do Encontro, em Juiz de Fora (MG).
Ele cumpria essa jornada mesmo sendo considerado incapaz para trabalhar: Sergio tem transtornos mentais decorrentes do uso abusivo de drogas, como alucinações, segundo um laudo da Previdência Social acessado pela Repórter Brasil.
Em outubro de 2023, ele e outros cinco homens com dependência química foram resgatados do local em condições de trabalho análogas à escravidão, segundo o entendimento dos fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego).
Um ano depois, em outubro de 2024, a CT Tenda do Encontro foi incluída na chamada Lista Suja do Trabalho Escravo, cadastro do governo federal com nomes de pessoas e empresas responsabilizadas administrativamente por submeter trabalhadores ao trabalho escravo.
Em maio deste ano, o juiz Luiz Olympio Brandão Vidal, da 4ª Vara do Trabalho de Juiz de Fora, condenou a entidade e o pastor Vander Campos a pagarem os encargos trabalhistas de cada resgatado, além de indenizações morais individuais no valor de R$ 10 mil cada e indenização por danos morais coletivos, revertidos ao Fundo de Direitos Difusos, no valor de R$ 50 mil. Cabe recurso à decisão.
A Repórter Brasil procurou o escritório de advocacia Flávio Nunes, que consta como representante da CT e do pastor Campos, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.
Embora chame a atenção, o caso da Tenda do Encontro não é isolado. Entidades privadas reconhecidas pelo Estado brasileiro como espaços de acolhimento e de convivência entre pares, as comunidades terapêuticas são apontadas como locais de violações sistemáticas aos direitos humanos, revelou um levantamento realizado pelo MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) e pelo grupo Psicologia e Ladinidades da UnB (Universidade de Brasília), divulgado em março deste ano. A exploração do trabalho dos acolhidos é uma das irregularidades recorrentes (leia mais abaixo).
Apesar da inclusão na Lista Suja em 2024, no último 25 de junho a Tenda do Encontro foi credenciada pelo MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome) para receber recursos federais “para prestar serviços de acolhimento voluntário a pessoas que fazem uso abusivo de drogas”, de acordo com o Diário Oficial da União.
Em 7 de julho, a pasta decidiu descredenciar a entidade após ter sido questionada pelo MNPCT. À Repórter Brasil, o MDS disse que a CT tinha sido habilitada ainda em 2023, antes da publicação da Lista Suja, e que tomou a atitude depois que teve conhecimento da situação (leia a nota na íntegra aqui).
Internos trabalhavam sem EPIs e comiam alimentos vencidos
As irregularidades trabalhistas na entidade já haviam sido identificadas pelo Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde de Juiz de Fora, que visitou o local em julho de 2023.
No momento da inspeção do MTE, três meses depois, foram lavrados 20 autos de infração, que iam das precárias condições físicas do local à falta de registro dos trabalhadores e ausência de medidas de segurança.
As vítimas realizavam obras de construção de parte da sede da CT sem equipamentos de proteção individual e usando chinelos. Os quartos onde dormiam tinham beliches encardidos e ficavam no andar superior, com acesso sob risco de queda.

Os alimentos fornecidos, como feijão e maionese, estavam vencidos, e o preparo era feito em um fogão à lenha, em uma panela de pressão avariada, sob risco de explodir. Sergio contou aos auditores que, muitas vezes, ele ou outros internos usavam seus auxílios recebidos pelo governo para comprar comida.
Não havia saneamento básico no local, e a água usada para beber, cozinhar e fazer a higiene pessoal vinha de uma mina e era armazenada em uma cisterna sem tampa e sem comprovação de potabilidade. A fiscalização constatou também que não havia prontuários nem equipe multidisciplinar para atender e supervisionar os internos.
Laborterapia ou trabalho escravo?
As comunidades terapêuticas fundamentam a exploração do trabalho dos acolhidos na laborterapia, ou seja, a utilização do trabalho como terapia. Especialistas explicam que essa prática, originada no século 18, adota a perspectiva de que o interno recuperaria a racionalidade por meio do trabalho.
Para os críticos, ela serve como forma de disciplinar a loucura em espaços de exclusão, como hospitais psiquiátricos e manicômios. “A lógica da laborterapia é o controle dos corpos: cansar o corpo, ocupar a mente do paciente, ocupar todo o tempo do paciente para que ele fique controlado”, explica Ana Flávia Dias Tanaka, doutora e mestra em psicologia e supervisora do Departamento da Fiscalização do Crefito (Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo).
“Se a gente for analisar criticamente o que acontecia nos hospícios e o que acontece na comunidade terapêutica, é uma substituição de mão de obra. Isso não é terapêutico”, critica ela, que também costuma participar de inspeções em CTs. A pesquisadora sustenta que essa perspectiva é muito diferente da terapia ocupacional, que acaba sendo confundida com a laborterapia. No primeiro caso, as atividades são pensadas de acordo com as necessidades e vontades de cada paciente, para que ele tenha autonomia para retomar sua vida e o convívio social.
Além disso, é uma escolha do paciente optar por fazer ou não a terapia ocupacional. “Se a pessoa tem uma história de trabalho na agricultura, ela pode, sim, participar de uma atividade na horta, de plantio, até de agricultura, mas não com esse viés de cumprimento de horário, de responsabilidade”, exemplifica Tanaka.
“Se é terapêutica ou não vai depender do quanto aquela atividade é significativa para aquela pessoa. E fundamentalmente quem diz isso é ela própria. Agora, a pessoa simplesmente ficar fazendo atividades o dia todo como uma obrigação, como acontece na comunidade terapêutica, não é terapia”, diz.

No caso da CT Tenda do Encontro, a justificativa de laborterapia sequer existia. O pastor Vander Ribeiro Campos, dono da entidade, havia elaborado termos de adesão de trabalho voluntário, que foram assinados por quatro dos seis dependentes químicos resgatados do trabalho análogo à escravidão.
Nos documentos a que a Repórter Brasil teve acesso, não há indicação da função e do período, apenas de que se tratavam de “atividades operativas e lúdicas”, expressão que as próprias vítimas não sabiam responder o que significava. O termo também vinculava o trabalho voluntário à estadia no local.
O advogado e professor de direito Rodrigo Goulart Aguiar explica que o trabalho voluntário não pode ser realizado de qualquer maneira. Segundo ele, é necessário que o local garanta condições de trabalho, saúde e higiene mínimas para a realização de qualquer atividade. Além disso, diz, a voluntariedade de fato de pessoas com dependência química em situação de vulnerabilidade é questionável.
“A legislação não permite que eu troque a minha força de trabalho tão somente por ter um teto e comida”, aponta Aguiar. “O que isso significa, na verdade? Que eu mantenho aquela pessoa viva simplesmente para que ela trabalhe para mim. Isso não gera uma condição de dignidade, muito pelo contrário, revela uma exploração.”
Comunidades terapêuticas têm histórico de violações de direitos humanos
Em 2025, o orçamento do MDS previsto para ser destinado às comunidades terapêuticas no âmbito do Programa Cuidado e Acolhimento de Usuários Dependentes de Álcool e Outras Drogas é de R$ 169,4 milhões.
O programa foi instituído em 2011 e fazia parte da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas, vinculado ao Ministério da Justiça, quando o governo de Dilma Rousseff incorporou essas entidades nesse tipo de atendimento. A partir da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019, as CTs começaram a ser priorizadas nos repasses de verbas federais por meio do Ministério da Cidadania (hoje, de Desenvolvimento Social), política que foi mantida no atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Especialistas entrevistados pela reportagem acreditam que os recursos deveriam ser redirecionados aos equipamentos do poder público voltados para esse tipo de atendimento, como a Raps (Rede de Atenção Psicossocial), do SUS, da qual os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) fazem parte.
“O Ministério [MDS] está privilegiando uma política privada com entidades que, segundo o próprio Estado, apresentam irregularidades não ocasionais ou isoladas, mas sistemáticas”, critica Carolina Barros Lemos, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão federal autônomo cuja atribuição é realizar inspeções em instituições de privação de liberdade.

De acordo com o estudo do MNPCT e da UnB divulgado em março deste ano, foram constatadas violações de direitos humanos nas 205 comunidades terapêuticas incluídas no escopo da pesquisa e que passaram por inspeções do órgão. Condições precárias dos espaços, submissão a trabalho forçado, privação de liberdade e agressões são alguns dos graves problemas encontrados.
Apesar de a Resolução 29/2011, da Anvisa, permitir espaços para oficinas de trabalho e atividades laborais dentro das comunidades terapêuticas, o texto não explica como essas funções devem ser realizadas. “A realidade que a gente encontra nas inspeções, em geral, é de comunidades terapêuticas que não têm funcionários, não têm trabalhadores formalizados, porque toda a operação ali é mantida com o próprio trabalho dos acolhidos”, explica Lemos.
“O que na prática acontece é que essas pessoas são submetidas a virar uma mão de obra barata, sem qualquer garantia de direito”, complementa o psicólogo Lucio Costa, diretor-executivo do Desinstitute, organização de defesa dos direitos humanos e do cuidado em liberdade no campo da saúde mental. Ele também já foi perito do MNPCT e fez inspeções que identificaram irregularidades em 28 comunidades terapêuticas em 2017.
* O nome do resgatado foi alterado para preservar sua identidade
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