Mélenchon: Por que Lula tem razão

Fundador da França Insubmissa vê, na resposta do Brasil a Trump, um sinal de autonomia – enquanto a UE se submeteu. Ele provoca: em novo cenário político, recursos hoje destinados à guerra financiariam o fim da economia fóssil. E propõe criolizar seu país, dissociando-o do eurocentrismo

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Jean-Luc Mélenchon em entrevista a Carla Ferreira e Sílvia Capanema, no ICL

Fundador do movimento França Insubmissa (LFI), Jean-Luc Mélenchon, 73 anos, é o líder de uma esquerda democrática radical com vocação de poder para enfrentar a extrema direita na Europa. Principal artífice da estratégia da Nova Frente Popular (NFP), que conteve a extrema direita em seu plano de conquistar a maioria no Parlamento no intento de impor um programa fascistizante ao país, ele afirma haver chegado a hora de o povo realizar uma revolução cidadã contra os privilégios e a concentração de renda das oligarquias.

Filósofo temperado nos acontecimentos do maio francês de 1968, ele tem mais de 23 livros publicados. Em 2016, fundou o movimento França Insubmissa (LFI). Em seu programa de governo (O Futuro em Comum), propôs redução da jornada de trabalho das atuais 35 para 32 horas semanais, aposentadoria aos 60 anos, aumento do salário-mínimo, reforço da seguridade social e dos serviços públicos e implementação de impostos progressivos, bem como a bifurcação (transição ecológica) como elemento central da ação política e de uma outra economia.

Muitas ideias do líder francês o aproximam das lutas em curso no Brasil com a campanha do ICL Somos 99% e o Plebiscito Popular. Em 2022, Mélenchon foi candidato à Presidência da França e conquistou 22% dos votos, chegando às portas do segundo turno. Crítico de Donald Trump, ele propõe uma diplomacia não-alinhada na busca do bem comum, pela paz e contra o aquecimento global.

Defensor da causa palestina, é um observador atento das práticas de luta dos povos latino-americanos. No papel de educador popular ativo, seus pronunciamentos sopram ventos novos e horizontes expandidos para a esquerda. Com uma perspectiva materialista e antipatriarcalista, ao mesmo tempo classista, feminista, ecologista e antirracista, Mélenchon é uma das figuras mais emblemáticas da esquerda de transformação social na atualidade.

No contexto internacional atual, como o senhor vê as taxas exorbitantes imposta pelo governo Trump aos produtos de exportação brasileiros, que mais se parecem com sanções, na medida em que elas são aplicadas com uma ingerência na Justiça brasileira, com o pedido de anistia aos golpistas e a Jair Bolsonaro?

Jean-Luc Mélenchon — A maneira escolhida por Lula para responder ao golpe de força de Trump contra o Brasil me parece particularmente bem-adaptada às circunstâncias. Primeiro porque ele envia um sinal muito claro de resistência ao povo brasileiro. Este ponto é importante. Vimos o inverso na Europa, onde os líderes políticos aceitaram todas as decisões de Trump com resignação, tanto em relação às tarifas quanto no que se refere à compra forçada de material militar nos EUA. A partir daí, a resistência popular tem dificuldade de se organizar. Na sequência dos eventos que serão consequência desta primeira capitulação será impossível separar a decisão dos líderes europeus daquela de Trump! E isso enfraquece a possibilidade de uma réplica.

Ao contrário, a reação espetacular de Lula constitui um apelo à resistência e permite isolar internamente aqueles que se alinham à ofensiva dos EUA como traidores da pátria. O projeto trumpista é a vontade de retomada do Império político dominante. Isso significa, portanto, que os demais países aliados se tornam oficialmente colônias. A reação de Lula é um alerta muito poderoso ao povo brasileiro, preparando-o para se opor às consequências da decisão tomada pelos EUA.

A gravidade da situação é acentuada diante do questionamento das decisões judiciais. Nesse sentido, a independência do sistema judiciário, que muitas vezes pode ser uma ilusão, passa a ser considerada por todos como um assunto de soberania nacional absoluta, e como um fundamento do Estado de Direito.

Ao se recusar a banalizar a decisão de Trump, Lula impõe uma primeira resposta muito contundente. Trump deverá levar isso em conta agora: ele sabe que haverá resistência. Em seguida, o povo brasileiro, ampliado em sua consciência, se coloca à frente dessa resistência. Nessa situação, Lula demonstra que governar é uma arte de concretizar projetos e uma forma de relação de forças na arena internacional.

A eleição do presidente Donald Trump marca uma inflexão no âmbito das relações internacionais e da ordem mundial. Na sua opinião, como se define a estratégia de poder de Donald Trump?

Ele tem um programa, uma estratégia clara. Ele é o presidente de uma constatação: o livre mercado não funciona para garantir a dominação dos Estados Unidos. E responde a uma situação precisa: a crise de dominação dos Estados Unidos sobre o mundo. Durante décadas, os neoliberais venderam a ideia da concorrência livre e não distorcida do livre comércio, da mão invisível do mercado como solução para todos os problemas. Essa era está desmoronando e Trump é sua encarnação.

A Europa vem respondendo à nova política internacional estadunidense com um aumento exponencial do orçamento militar. Em entrevistas à TV francesa, o senhor se opôs frontalmente a isso. O que propõe como alternativa?

Ursula Von der Leyen anunciou 80 bilhões de euros para financiar o armamento europeu. Esse é o montante exato a ser atingido para satisfazer Trump: 5% do PIB europeu! Nada é gratuito, Trump troca sua improvável proteção à União Europeia pela compra de armas americanas.

O capitalismo estadunidense avança cobrando um tributo alfandegário ou militar. Assim, é preciso entender uma coisa: os Estados Unidos têm interesse na guerra. A indústria de armamentos dos Estados Unidos corresponde a mais da metade do mercado mundial da economia de guerra. Cerca de 80% dos armamentos enviados para a Ucrânia são armas americanas. Em torno de 55% das armas importadas pela Europa são armas americanas.

A alternativa é clara. Ou decidimos participar na escalada de tensões generalizadas e na destruição do direito internacional em prol da lei do mais forte, que é a vã tentativa de Macron, ou tomamos uma posição orientada pela paz e pela defesa de relações pacificadas entre as nações dentro das perspectivas do direito internacional, reunindo os países não-alinhados em torno das causas comuns da humanidade.

Acreditamos que é possível fazer uma economia da paz tratando as causas da guerra. Nos conflitos atuais, os recursos naturais estão sempre no centro. Água, energia, minérios, terras raras. O montante anual de armamentos corresponde exatamente, tanto na escala global quanto na escala europeia, ao montante necessário para alcançar 100% de energias renováveis. Portanto, dizemos que é preciso tratar as causas da guerra, é preciso preparar a paz. E temos os meios financeiros para fazer isso.

Os Estados Unidos têm a intenção de defender sua dominação sobre o mundo, com armas em mão. Repetimos que a negociação era a única saída para a guerra na Ucrânia. Dissemos que uma saída da crise envolvia garantias de segurança mútua para ambos os lados. A Europa preferiu se engajar na guerra. O resultado é que Trump se encontra resolvendo sozinho o conflito com Putin.

Por outro lado, é preciso entender que Trump está promovendo uma guerra comercial. Essas retaliações levam a uma escalada das tarifas. É absurdo, pois trará inflação, como ocorreu nos Estados Unidos. A outra proposta formulada pela presidente da Comissão Europeia, de uma “zona de livre comércio total” entre a União Europeia e os Estados Unidos, é igualmente prejudicial. Isso significaria abdicar de nossa capacidade, como europeus, de estabelecer normas ecológicas, sociais e culturais para nós mesmos.

Os insubmissos sugeriram, em vez disso, que se quisermos encontrar métodos de resposta à guerra comercial de Trump, devemos atingir onde dói, ou seja, por exemplo, tributando efetivamente as big techs americanas. Por outro lado, devemos implementar uma política de substituição de importações e exportações de e para os Estados Unidos. Vamos negociar com a China que será mais frutífero!

Em seus livros e discursos, o senhor vem articulando a luta anticapitalista com o feminismo e o antirracismo. Poderia nos explicar sua visão dessa articulação entre anticapitalismo, feminismo e antirracismo, bem como o conceito de “criolização”, apropriado do pensamento do escritor e filósofo martinicano Edouard Glissant, que sugere entender as transformações culturais subjacentes à globalização em suas possibilidades de desenvolvimento de uma hegemonia cultural dos subalternos, na emergência de um novo mundo?

Essas relações [de classe, gênero e raça/etnia] estão consubstanciadas porque são a expressão da “Nova França” que desejamos incorporar. A Nova França é, em primeiro lugar, criolizada. Em 1950, um francês em cada dez tinha um avô estrangeiro. Hoje, é um francês em cada quatro. Essa Nova França é também fruto das relações amorosas, uma vez que quase um casamento em cada cinco é um casamento entre diferentes nacionalidades. E o prato preferido dos franceses é, na verdade, nada menos que o cuscuz [especialidade da cultura árabe do Norte da África]! Essa migração é também uma realidade interna, pois 55% dos franceses adultos não vivem no mesmo território onde nasceram.

Em 1958, um novo povo já havia nascido. Em duas gerações, a condição das mulheres foi totalmente modificada. Em 1958, a interrupção voluntária da gravidez e a contracepção eram proibidas [a IVG — interrupção voluntária da gravidez nas primeiras semanas é garantida desde 1975 na França e tornou-se um direito constitucional em 2024]. Hoje, 75% das mulheres utilizam um contraceptivo. Em 1958, 40% das mulheres eram assalariadas. Agora, são 85%. A Nova França tem uma nova realidade urbana: em 1958, 60% da população vivia nas cidades, atualmente são 80%.

A lista das mutações antropológicas do nosso país é longa, mas expressa uma única coisa: a emergência de um agente humano, o povo. Ele se constitui como uma classe em conflito com seu novo adversário, que é a oligarquia capitalista. A estratégia geral do movimento insubmisso é ajudar a emergência e, em seguida, a solidificação desse povo como ator político da revolução cidadã, cuja evolução temos observado e descrito em 29 países e em quatro continentes.

O senhor afirmou em diversas ocasiões a importância das lutas dos povos latino-americanos e de intelectuais do continente para sua formação. Recentemente realizou uma viagem ao México e esteve com a presidenta Claudia Sheinbaum. Poderia comentar mais amplamente sobre essas trocas e influências?

A América do Sul é o continente onde a cadeia do neoliberalismo se rompeu pela primeira vez em uma série contínua de países após a queda do muro de Berlim. Eu percorri esse espaço dialogando muito com a intenção de analisar as situações para entender as estratégias aplicadas, em vez de permanecer na atitude clássica da arrogância dos europeus que, aliás, falharam completamente e se mostram incapazes de sair das lógicas neoliberais que os condenam à morte, como demonstra a queda contínua da influência eleitoral  dessa perspectiva.

Não posso resumir no limite desta entrevista dez anos de pesquisa e quase dez livros que decorrem disso. O último deles, Faites-Mieurx! Vers la Révolutión Citoyenne (Faça Melhor! Rumo à Revolução Cidadã), de 2024, foi publicado em espanhol, inglês e italiano. Talvez apareça um dia em português. É para mim um resumo e uma somatória que explicam o que seria, dentro da nossa concepção materialista, a era do povo e o que são as revoluções cidadãs de nossa época.

A Nova Frente Popular (NFP), da qual o senhor foi o principal artífice, conquistou a maioria dos votos na eleição para o parlamento francês, elegendo 193 parlamentares. Ultrapassou, assim, o campo do presidente Macron e seus aliados, chamado também de macronismo, que fez 165, e deixou em terceiro o lugar a extrema direita, que contabilizou 126 assentos ao final (totalizando 142 com seus aliados). Quais os elementos da estratégia da França Insubmissa (LFI) possibilitaram o fortalecimento de um projeto progressista radical neste contexto de ascensão mundial da extrema direita?

A França insubmissa está organizada em torno da ação política e de seu programa. Com um programa de ruptura [em relação às medidas neoliberais], nossa estratégia é convencer o bloco popular, a juventude, os bairros periféricos, mas também os abstencionistas, as pessoas cansadas da política feita por lógicas ultrapassadas.

Acreditamos que existe um quarto bloco na política: o dos abstencionistas [Na França, o voto é facultativo]. Esse bloco deve ser convencido a votar. Essa estratégia é essencial para nós, envolve nunca ceder no programa, não fazer compromissos para tentar conquistar o bloco centrista ou de extrema direita.  Graças a esse método, derrotamos a extrema direita em julho de 2024. Assumimos um discurso de ruptura, sem recuar diante das imposições do sistema.

Sobre nossa denúncia explícita contra o genocídio em andamento na Palestina, fomos insultados, processados, difamados. Mas junto à juventude e aos bairros populares provamos nossa coragem, nossa sinceridade. Isso foi importante para mostrar que não cedemos diante de nada nem de ninguém, que lutamos pelo nosso programa, pela nossa linha firmemente assumida.

Conseguimos nos concentrar no desenvolvimento da mobilização militante porque tínhamos uma linha de coerência. Conduzimos em toda a França uma campanha de inscrição nas listas eleitorais. Com mais de dois mil novos inscritos por dia em nossa plataforma de mobilização, tivemos três vezes mais novos militantes do que durante as eleições presidenciais.

Em julho de 2024, a participação foi a maior em 25 anos para as eleições legislativas, e mais alta nos distritos onde a RN [Reunião Nacional, partido de Marine Le Pen, de extrema direita] estava no segundo turno. A participação no segundo turno cresceu 28 pontos entre os 18-24 anos e 21 pontos entre os 10% mais pobres. A juventude e as periferias salvaram a República contra a extrema direita.

Nos bairros populares, realizamos ações de emergência pública, como arrecadação de alimentos ou de materiais escolares. Todos esses métodos e muitos outros estão no cerne dessa estratégia de conquista do quarto bloco popular abstencionista desiludido.

Ainda sobre o combate à extrema direita, as forças democráticas da França desenvolveram a tática do chamado “Cordão sanitário”. Como funcionou essa tática na prática, sabendo que as eleições legislativas na França são feitas por distritos e em dois turnos, e quais são seus limites atuais?

Para as eleições legislativas seguimos a diretiva: nenhum voto deve ir para a extrema direita. Assim, chegamos a um acordo com os macronistas: em todos os distritos em que disputávamos contra eles, aquele que estivesse na terceira posição retirava sua candidatura [As legislativas são por distritos, em dois turnos, havendo a possibilidade de existirem até quatro candidatos num segundo turno]. Isso ajudou a enfraquecer os votos para a extrema direita.

No primeiro turno, o povo sancionou Macron colocando-o em terceiro lugar. No segundo turno, esse mesmo povo impediu que a RN avançasse. A ascensão da RN foi, portanto, interrompida pela Nova Frente Popular. Nós obtivemos 151 vitórias contra eles no segundo turno. Mas está bem claro que os eleitores de esquerda se deslocaram de maneira mais massiva para um voto de direita contra a extrema direita do que os eleitores de direita tradicional votaram na esquerda, no mesmo caso.

Dos 151 duelos entre a esquerda e a RN, 70% foram vencidos pela esquerda. Dos 131 duelos entre o centro e a RN, 90% foram vencidos pelo centro. Isso nos leva ao ponto atual. A direita macronista sonha em fazer uma frente contra a LFI, reunindo um amplo espectro, da direita ao PS. Tem a esperança de reeditar a tática de uma falsa “frente republicana” contra nós, a esquerda de verdade.

A nossa estratégia de mobilização cívica contra a extrema direita provocou um recorde de participação, especialmente nos distritos onde a RN estava presente no segundo turno. A redução da abstenção foi a mais significativa desde 1981. A NFP literalmente também salvou os macronistas, trata-se de um preço a pagar pela formação de um muro contra a RN. Aqui na França, ao menos, provamos que quando a esquerda está unida em um programa de ruptura, somos capazes de vencer a extrema direita [RN] e ganhar as eleições.

Agora, o Partido Socialista (PS) decidiu romper com a NFP. Ao recusar cinco vezes censurar o segundo governo depois que derrubamos o anterior formado pelo primeiro-ministro Barnier [Na França o sistema de governo é parlamentarista e os deputados podem censurar o governo composto pelo primeiro-ministro ou ministra, que é apontado pelo Presidente], o PS diz sim à aposentadoria aos 64 anos [imposta pelo governo Macron, aumentando em dois anos a idade mínima para se aposentar]. Veremos o que fazer para as próximas eleições. Mas para nós, uma coisa é clara: não faremos concessões sobre o programa e manteremos a nossa palavra nas eleições presidenciais.

Sílvia Capanema é doutora em História pela EHESS/Paris, professora na Universidade Sorbonne Paris Nord, parlamentar no departamento de Seine-Saint-Denis, na periferia de Paris, membro do Movimento da França Insubmissa/Nova Frente Popular.

Carla Ferreira é jornalista e doutora em História pela UFRGS, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Memorial-Arquivo Vânia Bambirra. Natural de Porto Alegre foi parte da construção dos Fóruns Sociais Mundiais em sua origem.

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