Maria Rita Kehl: no cancelamento, vale calúnia?
Colocada em seu lugar de cale-se, a psicanalista foi desqualificada por ter herdado a “paleta moral” do avô eugenista. Vale usar de anacronismo histórico? Por que é simplista atacá-la com base nos ancestrais que viveram 100 anos atrás?
Publicado 17/02/2025 às 18:47 - Atualizado 17/02/2025 às 18:48
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Por Paulo Capel Narval, em A Terra é Redonda
Assinalo, inicialmente, que a ignorância mencionada no título não tem conotação de xingamento. Refiro-me, apenas, à falta de conhecimentos, que leva tanto ao negacionismo científico, tão caro ao pensamento conservador, quanto ao mecanicismo positivista que faz vítimas no seio do pensamento que se pretende “de esquerda”. Nessa linha, registro desde logo a minha ignorância sobre várias áreas do conhecimento, pois aprendi na infância que ninguém sabe tudo e que, sempre, há espaço para aprender algo.
“Saber não ocupa espaço” – me incentivava minha mãe. Mas, também, não me manifesto sobre temas em que sou ignorante. Neste artigo, que se ocupa do episódio ainda em curso que atinge a psicanalista Maria Rita Kehl, abordarei o argumento da eugenia, atirado como uma granada sobre a cabeça da autora. Além de abjeto o argumento é produto de uma estupidez colossal, pois se origina de um erro elementar, como busco demonstrar neste artigo.
Para entender
No artigo intitulado Lugar de ‘cale-se’!, publicado em 10/8/2020, no site A Terra é Redonda, Maria Rita Kehl afirmou que o movimento identitário é um “nicho narcísico”, pois seus ativistas supõem que apenas eles podem falar sobre temas a ele relacionados. No artigo, a autora reconhece a relevância desses movimentos e das políticas identitárias derivadas dessas lutas, que qualifica como “recursos essenciais para impor respeito, exigir reparação por todos os crimes do racismo assim como lutar (ainda!) por igualdade de direitos”, afirmando abominar “todas as formas de discriminação baseadas na cor da pele, no país de origem, na fé religiosa ou nas diferenças de práticas culturais”.
Indaga ela: “o que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público?”
Para Maria Rita Kehl, o lugar de fala deteria, segundo algumas vertentes do movimento identitário, uma espécie de monopólio da fala sobre assuntos identitários, restando a quem fala de outro lugar, não falar, mas calar-se. Dito de outro modo, aos que não têm lugar de fala decorrente de sua inserção identitária, o “lugar de cale-se” corresponde a uma interdição de voz, disso decorrendo, portanto, o que se vem denominando de “cancelamento”, em redes sociais e nas instâncias de debates de problemas e questões atinentes a esses segmentos sociais.
No referido artigo, Maria Rita Kehl faz considerações sobre o debate entre setores do Movimento Negro Unificado (MNU) e Lilian Schwarcz a respeito do filme Black is King, protagonizado pela cantora Beyoncé, que localiza em algum lugar do continente africano a história shakespeariana de Hamlet. Lilian Schwarcz, historiadora e antropóloga, eleita em março de 2024 como imortal pela Academia Brasileira de Letras, reconhecida como uma das principais historiadoras do movimento negro brasileiro, publicou artigo no jornal Folha de S.Paulo reconhecendo as qualidades da produção, mas afirmando que o filme “erra ao glamorizar a negritude com estampa de oncinha” e recorrer a imagens “tão estereotipadas” e criando “uma África caricata e perdida no tempo das savanas isoladas”.
Afirmar que houve erro fez cair sobre Lilian Schwarcz uma chuva de críticas questionando seu lugar de fala. “Cancelada” em redes sociais, Schwarcz postou: “respeito muito o trabalho de Beyoncé. Peço que leiam o texto todo que é muito mais elogioso que crítico. Todo texto pode ter muitas leituras. Me desculpo, porém, diante daqueles que ofendi. Não foi minha intenção. Respeito muito o diálogo e aprendo com ele. Grata.”
Djamila Ribeiro, feminista negra, escritora, mestra em Filosofia Política e colunista do jornal Folha de S.Paulo, publicou crítica ao artigo de Lilian Schwarcz, que teria falado sobre o filme de Beyoncé “a partir de um lugar que soa arrogante”, por usar expressões como “a diva pop precisa entender que a luta antirracista” ou “quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar”.
Em síntese, Djamila Ribeiro questiona o lugar de fala de uma mulher branca dizer a uma artista negra que ela “precisa entender” algo, ou que deveria “sair” de algum lugar, no caso a “sua sala de jantar”, pois “de seu lugar social, Lilia não conseguiu enxergar essas experiências que são centrais na vida das mulheres negras”.
Em seu artigo no site A Terra é Redonda, Maria Rita Kehl problematizou a afirmação de que um lugar de fala possa impedir alguém de enxergar e compreender algo. Disse acreditar que “a palavra, quando utilizada para argumentar e convidar o outro a pensar e debater conosco, seja o melhor recurso para resolver, ou ao menos dialetizar, ideias e valores situados em polos aparentemente opostos do vasto campo da opinião pública”.
Recusando-se à omissão frente a questões de interesse público e reivindicando o direito de fala de quem quer que se importe com tais questões, Maria Rita Kehl dialoga com Djamila Ribeiro, reconhecendo as diferentes ascendências e experiências pessoais de ambas, argumentando que “se eu fosse torturada você [referindo-se a Djamila] se importaria [com o fato de eu ser torturada], imagino, a despeito da cor da minha pele. O mesmo vale de mim para você”. Por essa razão, Maria Rita Kehl justificou sua manifestação sobre o episódio Beyoncé enfatizando que todos “podemos participar, sem pedir licença a ninguém, de todos os debates que nos interessem.
Podemos nos pronunciar a respeito de problemas e questões que não fazem parte de nosso dia a dia. São questões dos ‘outros’. Mas que nos importam. Queremos falar. Se a palavra não é livre, o que mais será? Mas, claro: abomino a palavra que induz a linchamentos virtuais”.
A esta altura, já se disse muito sobre o silenciamento que se pretendeu impor à psicanalista, desde que seu artigo foi publicado, há cinco anos. Aliás, registre-se: a autora não escreveu como, digamos, psicanalista, mas como a arguta analista de vida brasileira há várias décadas, tendo se notabilizado por seu claro posicionamento em defesa da democracia e contra a ditadura civil-militar instalada pelo golpe de 1964. Decerto que, com essa trajetória, esteve entre os que se opuseram desde o primeiro minuto ao golpe de 2016 e ao desgoverno de Jair Bolsonaro. Não me alongarei sobre sua biografia, pois ela está sumarizada em vários artigos, sempre enfatizando o seu ativismo político pró-direitos humanos e radicalmente democrata.
Anacronismo histórico
Ao ponto central, portanto, deste artigo: o argumento sobre a eugenia.
Em artigo de 12/2/2025, o antropólogo Rodrigo Toniol (da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências) comentou o “linchamento virtual” que atingiu Maria Rita Kehl, após críticas ao que chamou de ‘movimento identitário’, assinalando que a reação a “uma fala incluiu um argumento que lembra os piores crimes da humanidade: a ideia de que ela deveria se calar por conta de uma ‘herança moral’ transmitida geneticamente”.
Os acusadores – escreveu – “se referiam ao fato de o avô de Maria Rita Kehl ter sido um eugenista no início do século XX, sugerindo, portanto, que ela teria herdado, pelos genes, a ‘paleta moral’ dele”. Afirmando que “os ataques tomaram conta de perfis nas redes sociais e ainda estimularam pessoas a editar a biografia de Maria Rita Kehl na Wikipédia, sublinhando sua ‘degenerescência hereditária’ – para usar um termo caro às teorias eugenistas” assinalou que “a história nos mostra que, quando biologia e julgamento moral se juntam em um mesmo argumento, o ovo da serpente já foi chocado”.
Esse argumento, o de ser neta de “um eugenista”, do qual teria herdado sua “paleta moral”, por “herança genética” usado para desqualificar, linchar virtualmente e cancelar Maria Rita Kehl em redes sociais, resulta de ignorância. Voltarei a isso.
Antes, porém, quero falar sobre o conceito de “anacronismo”, tal como empregado no cotidiano de historiadores, mas frequentemente desconsiderado por pessoas que parecem desconhecer a dimensão do tempo na história.
“A abordagem do passado à luz de problemas do presente e de referenciais teóricos atuais é inevitável”, sendo necessário, portanto, fazer “uso racional do anacronismo”, propõe Dosse, citado por Monteiro. O anacronismo consiste, basicamente, em analisar o passado com os conhecimentos do presente. O “uso racional” dessa possiblidade implica, portanto, incorporar “o reconhecimento da questão do presente na produção do conhecimento historiográfico, mas, ao mesmo tempo, reconhecer a necessária vigilância epistemológica para que sejam evitadas simplificações e distorções a partir de leitura superficial das fontes”.
É nessa ‘leitura superficial das fontes’ que está o núcleo do erro dos críticos de Maria Rita Kehl, no problema da eugenia, da sua “degenerescência hereditária”, cuja “paleta moral”, teria sido herdada geneticamente de “um eugenista”, seu avô.
Registre-se que a própria autora conta no artigo que tem ascendência alemã e que herdou o sobrenome do avô que “muito carinhoso comigo na infância, era antissemita por razões eugenistas” e que na adolescência entendeu que “ele a defendia”, pois acreditava “na supremacia da ‘boa raça’. Que conceito desprezível, para dizer o mínimo. Mais justo é dizer: que conceito criminoso. Nenhum dos seis netos dele compartilha aquelas ideias. E defendo que nenhum de nós deva ser calado num debate sobre ‘raça’ por conta de nossa ascendência e de nosso avô”.
O anacronismo histórico produz vítimas frequentemente.
No conhecido ensaio de Friedrich Engels, de 1876, intitulado “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, há vários “erros” à luz do que sabemos hoje sobre herança genética. Alguns críticos do parceiro de Marx ainda hoje lhe desferem críticas ferinas por aceitar, implicitamente, a tese, defendida por Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) de que a evolução das espécies se dava por mudança evolutiva, segundo o uso de certas partes dos corpos. O pescoço da girafa seria como é, por razões ambientais: de tanto erguê-lo em busca de folhas no alto das árvores, a característica seria transmitida às próximas gerações até se incorporar à espécie.
Esse padrão de hereditariedade, conhecido como “hereditariedade leve”, era paradigmático no século XIX. Assim, criticar Friedrich Engels com os conhecimentos que a genética nos proporciona hoje, sem contextualizar o pensador inglês, é um erro básico de anacronismo histórico.
No início do século XX, uma mudança paradigmática revolucionou a biologia. Consolidou-se o conhecimento de que características adquiridas por animais (e vegetais) durante suas vidas não se transmitiam para descendentes. Essa revolução paradigmática teve origem nos estudos com ervilhas realizados por Gregor Mendel (1822-1884), em meados do século XIX. Embora publicados nos anos 1860, em um periódico pouco lido, os estudos de Mendel foram reconhecidos e valorizados apenas em 1900, quando três cientistas reeditaram seus textos e alertaram o mundo científico sobre o significado das descobertas de Mendel.
Juntamente com uma importante descoberta de August Weismann (1834-1914) sobre divisão celular e o processo da meiose, descrevendo o modo como os cromossomos se dividem e transmitem genes, Mendel criou a base do que viria a ser a “genética” – aliás, um termo criado apenas em 1908 por William Bateson (1861-1926). Na primeira metade do século XX a genética empolgou biólogos em todo o mundo, com o reconhecimento do papel estratégico do “gene”, localizado nos cromossomos, nos mecanismos da hereditariedade. O paradigma da hereditariedade deixou de ser a “hereditariedade leve”, cedendo lugar à mutação. Passou-se a falar, então, em “herança genética”.
Eugenia
A mudança de paradigma, da “hereditariedade leve” para a “herança genética”, teve enorme impacto nos estudos sobre hereditariedade. Não bastava mais, portanto, adotar padrões nutricionais melhores, praticar atividades físicas, com a expectativa de com isso, obter melhor descendência. Isso passaria, dali em diante, por mutações e seleção de mutantes melhor adaptados ao ambiente, segundo a teoria da evolução.
Mas antes da mudança paradigmática e a consolidação da genética, Francis Galton (1822-1911), com base na teoria de evolução de Charles Darwin (1809-1882), e nas observações sobre seleção artificial em animais e vegetais, difundidas em vários países, criou em 1883 o conceito de “eugenia”.
Para Francis Galton a eugenia correspondia a um melhoramento de uma determinada espécie através da seleção artificial, sem aguardar que a natureza fizesse o longo trabalho de providenciar a seleção natural dos mais adaptados às mudanças dos ambientes. “O que a natureza faz às cegas, devagar e impiedosamente, o homem pode fazer com cuidado, rapidez e carinho”, dizia. A sua tese, publicada em 1869 no livro Hereditary Genius era, basicamente, que um homem notável teria filhos notáveis, acreditando que a “raça” humana poderia ser melhorada caso fossem evitados “cruzamentos indesejáveis”. A base desse pensamento era a experiência praticada durante séculos na zona rural, com o aperfeiçoamento de animais e vegetais.
O conceito de “cruzamentos indesejáveis” abrange uma gama enorme de condições biológicas, tanto as patológicas quanto as relativas à higidez, que não se confunde, necessariamente, com os fatos, posteriores ao período em que Francis Galton viveu, sobre os usos do conceito de eugenia, com propósitos políticos.
Para Francis Galton, a eugenia era, portanto, o controle da seleção natural, substituindo-a pela seleção artificial, a qual teria duas alternativas: a eugenia positiva e a eugenia negativa; a positiva estimulando a procriação de seres superiores e a segunda impedindo a reprodução de seres considerados inferiores. O conceito de degeneração associa-se à ideia de eugenia negativa.
Evidentemente, a revolução paradigmática sobre a hereditariedade, com o advento da genética, requer o “uso racional do anacronismo” para evitar “simplificações e distorções a partir de leitura superficial das fontes”.
No caso do conceito de “eugenia”, esse procedimento para controle do anacronismo histórico é essencial.
Voltando ao avô de Maria Rita Kehl: sim, ele foi um eugenista no início do século XX. Mas, naquele período histórico, “todos” eram eugenistas. (Todos, não: apenas as pessoas que desfrutavam do privilégio de acesso à educação formal e à cultura. Homens cultos eram eugenistas.) Por isso a afirmação de que “todos” eram eugenistas. Mas, atenção: todos eram eugenistas ao modo de Francis Galton, desconhecendo a genética e porque a eugenia era o paradigma da “biologia” até a virada do século XIX para o XX, período histórico em que a “biologia” era uma disciplina científica incipiente, a “microbiologia” dava seus primeiros passos e a genética mendeliana, praticamente não existia, pois não era conhecida de todos.
Muita gente vê, porém, com certa razão, no conceito de eugenia de Francis Galton uma influência importante no que fariam, anos depois, nazistas e fascistas com o conceito, embora o tema seja controverso, pois eugenistas eram também os bolcheviques que lideraram a Revolução Russa. Lênin, que era um sujeito culto, e seu ministro da educação e ciências, Anatóli Lunatcharski (1875-1933), eram eugenistas.
Por essa razão, pode-se afirmar que se trata de um equívoco, produto do anacronismo histórico, supor que Hitler (e o nazismo) tenham sido os “criadores da eugenia” e, pior ainda, supor que eugenistas sejam, por serem eugenistas, nazistas ou fascistas – ou comunistas.
Nos Estados Unidos da América (EUA), fez sucesso um filme intitulado A Cegonha Negra, protagonizado pelo médico Harry Haiselden, em que se propunha o infanticídio como prática de eugenia negativa, para “salvar americanos de defeitos hereditários”. Para Charles Davenport, considerado o “pai do movimento eugênico” nos EUA, “se o homem pudesse ser levado a se apaixonar com inteligência, se a procriação humana pudesse ser feita igual à dos cavalos, a maior revolução progressista da história poderia ser alcançada”. Em 1907 os EUA aprovaram a primeira lei sobre esterilização compulsória, com base em teses eugenistas, o que levou à esterilização de dezenas de milhares de pessoas.
Em 1922 a Suécia criou um instituto de biologia racial, em Uppsala, sob direção de Herman Lundborg, com base em teses eugenistas. Doze anos depois, aprovou, por unanimidade, lei similar à dos EUA e integrou a higiene racial, considerada essencial “para o bem-estar da sociedade moderna”, à sua política social. Indivíduos que apresentassem traços considerados inferiores deveriam ser proibidos de procriar. Não havia compulsoriedade, mas intenso trabalho de persuasão.
Instituto similares foram criados na Alemanha e em outros países europeus. Berlim sediou, em 1927, a 5ª Conferência Internacional de Pesquisa de Hereditariedade. A maior delegação ao evento, que homenageou Gregor Mendel, foi a da União Soviética, comandada por Nicolai Vavilov. Dali em diante, segundo o consenso dos cientistas, a genética, e não mais a “hereditariedade leve”, deveria ser a base da eugenia. Mas não foi bem assim, como veremos.
No evento, Hermann Joseph Muller, um estadunidense, anunciou uma importante descoberta da genética: cromossomos submetidos à radiação X sofrem mutações. E começaram os questionamentos à eficácia da eugenia e da seleção artificial. Outro estadunidense, Raymond Pearl, argumentou que não havia qualquer evidência da eficácia da eugenia, pois cerca de 90% dos indivíduos “superiores” descendiam de pais com habilidades “médias” ou mesmo “inferiores”. Assim, a esterilização poderia ser completamente ineficaz para o que se propunha obter.
Um ano depois, em 1928, o filme A Salamandra foi lançado em Moscou. Trata-se de um ataque ao mendelismo e ao conceito de mutação como base da hereditariedade, reafirmando a “hereditariedade leve” e o papel do ambiente, na evolução das espécies. O filme expressa a visão predominante na cúpula do poder soviético, lamarckista e reacionária à tese de que os fatores externos não são determinantes da constituição genética. Para o poder soviético, sob a liderança de Joseph Stálin, as características adquiridas são herdáveis.
Trofim Lysenko (1898-1976), um biólogo e agrônomo ucraniano, forte defensor da “hereditariedade leve”, liderou a rejeição à genética mendeliana na União Soviética, com apoio da cúpula do governo, tendo influenciado a política científica e a educação soviética até 1948. Em 1940, assumiu a direção do Instituto de Genética da Academia de Ciências da URSS.
A história registra que pesquisadores soviéticos que se recusaram a renunciar ao paradigma da genética mendeliana, mantendo suas convicções científicas, foram destituídos de seus postos. Estima-se que centenas foram demitidos e presos. Vários foram condenados à morte como inimigos do Estado, incluindo o botânico Nikolai Vavilov, que comandara a delegação soviética à Conferência de Berlim.
A ignorância não é monopólio da direita
As teses eugenistas têm muito a ver com os ideais de uma sociedade perfeita, com seres humanos perfeitos, e com a analogia de que, como um corpo humano, as sociedades funcionam como um sistema biológico. A sociedade seria um “corpo social”. Essas ilusões sobre biologia e sociedade levaram a desastres como o holocausto, e à eliminação física de dissidentes políticos, tidos como cânceres a seres extirpados do “corpo social”.
Tragédias, cuja memória não se deve perder.
Mas a genética desautoriza, completamente, a crença, ainda difundida em muitos segmentos sociais, de que convicções sobre eugenia sejam transmitidas para descendentes como herança ou que moldem a “paleta moral” de alguém. A genética contemporânea rejeita frontalmente essa possibilidade.
Por essa razão, é sórdido e abjeto o argumento lançado contra Maria Rita Kehl: o de ser neta de “um eugenista”, do qual teria herdado sua “paleta moral”, por “herança genética”. “Todos” somos netos de eugenistas, pois a eugenia era o paradigma científico da biologia, quando nossos avós viveram. No final do século XIX, praticamente todo o mundo era eugenista e higienista, à direita ou à esquerda do espectro político, pois essa era a concepção predominante naquele período histórico. Esse anacronismo, como deslocamento histórico, que algumas pessoas fazem, é apenas ignorância sobre a história das ciências.
Todos os avôs de quem nasceu no século XX eram eugenistas, incluindo os avôs dos acusadores do avô de Maria Rita Kehl, pois todos eram eugenistas há 100 anos atrás, incluindo Lênin, Stálin, Hitler, os alemães e os estadunidenses.
Ontem, 14/2/2025, perdemos Carlos Diegues. Numa entrevista em 1978 ao jornal O Estado de S. Paulo, Diegues cunhou a expressão “patrulhas ideológicas”, para se referir a grupos organizados que articulavam a publicação de críticas, sistemáticas, em vários canais de comunicação, a produções culturais que não lhes parecessem adequadas às suas orientações político-ideológicas.
Ele reagia a comentários sobre seu filme Xica da Silva, mas, também, a interdições (“cancelamentos”, diríamos hoje) que recaiam sobre Nara Leão por ter gravado músicas de compositores não comprometidos com o que, à época, se reconhecia como bossa nova ou MPB. A expressão se popularizou rapidamente, no contexto histórico em que o Brasil vivia sob uma ditadura civil-militar. Deve-se registrar que os “patrulheiros ideológicos” a que Diegues se referia eram, de modo geral, profissionais das áreas em que criticavam (música e cinema, basicamente, mas também outros setores da produção cultural) e, quase sempre, faziam críticas bem qualificadas, com argumentos que tinham fundamento em conhecimentos dessas áreas.
No caso das críticas a Maria Rita Kehl, nem se pode dizer que se trata de patrulhamento ideológico, pois o conteúdo que se busca apresentar como “crítico” está mais para uma tentativa incompetente de calúnia do que de patrulhamento.
Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).