Justiça, de olhos fechados ao genocídio nas periferias

Relatórios apontam: no RJ, 90% dos “autos de resistência” — quando policiais registram morte por legítima defesa — são arquivados sem investigação. Provas são manipuladas, testemunhas ignoradas e ações legitimadas por ocorrerem em favelas

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Por Felipe Betim, no El País Brasil

As ações policiais no Rio de Janeiro raramente passam pelo escrutínio das autoridades competentes, seja a Polícia Civil ou o Ministério Público, quando resultam em mortes. Ao menos três estudos e relatórios recentes indicam que mais de 90% dos autos de resistência — como são chamadas as mortes cometidas por agentes de Estado durante uma operação — não são investigados ou acabam arquivados. Trata-se de um cotidiano de impunidade que estimula toda sorte de abuso por parte dos agentes públicos. E que agora ronda o caso Ágatha Félix, a menina de oito anos que morreu baleada em 21 de setembro, no complexo de favelas do Alemão. Ela voltava para casa ao lado da mãe numa Kombi quando recebeu um tiro de fuzil nas costas.

Ao contrário do que afirma a Polícia Militar, moradores e testemunhas negam que houvesse troca de tiros no momento e asseguram que o tiro partiu da arma de um policial. Sua morte gerou uma comoção que transbordou as fronteiras do Alemão e aumentou a pressão sobre a política de segurança do governador Wilson Witzel (PSC). Na semana passada, a revista Veja informou que entre 10 e 20 policiais invadiram o hospital Getúlio Vargas, para onde a garota tinha sido levada, e tentaram persuadir os médicos a entregarem o projétil tirado de seu corpo. A menina foi a quinta criança de até 12 anos incompletos morta a tiro — todas elas faleceram durante operações policiais — sob circunstâncias ainda não esclarecidas, de um total de 18 baleadas entre 1 de janeiro e 4 de outubro deste ano, segundo a plataforma Fogo Cruzado. Nesse mesmo período, 43 adolescentes de 12 a 18 anos incompletos morreram baleados, de um total de 70 vítimas.

Nesta terça-feira, um grupo de mães que perderam seus filhos durante operações policiais ou em chacinas, entre outras situações, se reuniu em Brasília com Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, e com Alessandro Molon (PSB), líder da oposição, entre outros parlamentares. “Eu mandei meu filho impecável para a escola e o Estado me devolveu ele assim”, contou Bruna da Silva enquanto estendia o uniforme escolar ensanguentado de Marcos Vinícius, um garoto de 14 anos morto durante uma operação policial no complexo de favelas da Maré em junho de 2018. As circunstâncias ainda não foram esclarecidas pelas autoridades e o crime permanece impune, como a maioria. Com a tramitação do pacote anticrime no Congresso, projeto prioritário para o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro, essas mães temem que a impunidade seja ainda maior. “Com aprovação desse pacote criminoso, vai ficar ruim para gente. Já está ruim. Eu tenho uma única filha. Ela continua sendo alvo. Na minha laje, eu fui alvo na semana passada”, continuou Bruna.

Os autos de resistência, instrumento jurídico criado no fim dos anos 60, em plena ditadura militar (1964-1985), partem do pressuposto de que os agentes matam em legítima defesa e evita que sejam presos em flagrante. Especialistas afirmam que, na prática, o recurso estimula a impunidade. O relatório da CPI dos Autos de Resistência da Assembleia do Rio, concluída no ano passado, afirma que 98% dos casos ocorridos entre 2010 e 2015 foram arquivados. O documento, que ainda não foi votado pelos deputados estaduais, afirma que o Ministério Público estadual, responsável pelo controle externo das atividades policiais, vem se mostrando “um grande arquivador de casos, colaborando para a impunidade de policiais criminosos”. Já o Judiciário local, explica o relatório, tem se caracterizado pela conivência com as práticas policiais ruins, aceitando muitas vezes a máxima de que “bandido bom é bandido morto” e não garantindo o respeito a uma série de direitos e garantias constitucionais aos moradores de comunidades.

Em sua tese de doutorado em Ciências Polícias, Orlando Zaccone, ex-delegado da Polícia Civil do Rio, analisou cerca de 300 arquivamentos de autos de resistência ocorridos entre 2003 e 2009. “Em todos os pedidos havia indicação de que o fato ocorrera em uma favela, onde constantemente policiais e traficantes trocavam tiros. Ou seja, a identificação do local é um dos elementos que legitimava a morte”, explica ao EL PAÍS. Em seu estudo da linguagem e do tipo de argumento usado nesses arquivamentos, também encontrou com frequência os antecedentes criminais do morto. “Ou seja, pouco se falava da ação policial e muito se falava do local, do morto e de outros elementos, sempre construídos a partir da narrativa dos policiais e nunca dos fatos concretos. Muitas vezes havia incompatibilidade grande entre a descrição dos policiais e o próprio exame cadavérico”, explica.

Em suma, o que estava em jogo era a existência de alguns elementos que poderiam ensejar responsabilidade ou não dos policiais. E as condições do morto era uma delas. O alvo de investigações era a vítima, não o agente. “Eles usavam muito o depoimento dos parentes, o que é uma covardia. Quando eram chamados, eram instados a fazer um inventário moral do morto. A avó dizia se ele deu muito trabalho quando criança, se estudou em colégio interno, se teve envolvimento com drogas… Faziam um inventário não de como os fatos ocorreram, mas do morto”, conta. “Isso é o que legitima a ação do policial e o arquivamento. Os promotores dizem que as falas dos policiais são congruentes com a legítima defesa, mesmo a vítima tendo tomado tiros nas costas”. Sua tese, intitulada Indignos de vida: A Forma Jurídica da Política de Extermínio de Inimigos na Cidade do Rio de Janeiro, foi transformada em livro.

No relatório Você matou meu filho: homicídios cometidos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro, publicado em 2015, a Anistia Internacional checou o andamento de 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial ocorridos em 2011 na cidade do Rio. Quatro anos depois, tempo suficiente para que houvesse os trâmites judiciais, 183 investigações seguiam em aberto. Isto é, apesar de um Boletim de Ocorrência registrado, nenhuma diligência havia sido feita.

Paloma Lamego, sub-defensora pública-geral do Rio de Janeiro, argumenta que “o conceito da bala perdida faz com que tudo seja tratado como uma fatalidade, como se a gente não tivesse que apurar responsabilidade”. Ela defende que a expressão pare de ser usada. “É quase como se fosse impossível dizer de onde a bala veio, que houve alguma intenção de morte…”, explica.

A Defensoria Pública da qual faz parte foi procurada por familiares de jovens que morreram numa operação policial no morro do Fallet em fevereiro deste ano. Ao menos 14 rapazes, que tinham envolvimento com o crime, foram mortos pela PM. Witzel defendeu a ação dos agentes. Contudo, testemunhas afirmam que eles já estavam rendidos quando, segundo relatam, foram torturados e executados dentro de uma casa. Imagens do imóvel ensanguentado rodaram os jornais e redes sociais. A cena do crime foi manipulada pelos agentes, que levaram os corpos para o hospital sob a justificativa de que prestavam socorro às vítimas. “No Rio, o problema dos autos de resistência é que a PM desfaz a cena do crime, dificultando muito a investigação. No caso do Fallet, em que os agentes alegam ter levado as vítimas para o hospital, não existia socorro possível. Já estavam todas mortas”, explica Lamego. “No caso da morte de Ágatha, por que a arma dos policiais não foi imediatamente recolhida? Tem que existir um comprometimento da Polícia Civil com a investigação e da PM com os protocolos. A gente não encara a letalidade policial com a seriedade que deveríamos encarar”.

No dia 24 de setembro, o Conselho Nacional do Ministério Público acolheu um pedido da ONG Educafro e determinou que promotores e procuradores do país adotem práticas mais criteriosas ao investigar possíveis abusos policiais contra a população negra — principal vítima dessas violações —, fazendo valer o Estatuto da Igualdade Racial. As determinações do CNMP vão no sentido de aprimorar a comunicação com a vítima e seus familiares, assim como de acolher seus depoimentos, informações, provas e alegações, entre outros pontos. O EL PAÍS entrou em contato com o Ministério Público do Rio e com o Tribunal de Justiça do Rio, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Letalidade policial aumenta

Os números oficiais de mortes cometidas por agentes policiais no Estado do Rio de Janeiro vêm batendo recordes mensais neste ano: de janeiro e a agosto, as polícias já assumiram a morte de 1.249 pessoas, uma média de cinco por dia, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada à administração estadual. Na região metropolitana do Rio, a polícia é responsável por quase metade de todas as mortes violentas. 

Porém, esses números se referem apenas aos casos em que o policial assume ter matado uma pessoa e registra sua versão em Boletim de Ocorrência, alegando sempre troca de tiro ou legítima defesa. Os dados não consideram as execuções cometidas por agentes que agem nas sombras ou por milícias, formadas majoritariamente por policiais e bombeiros da ativa ou da reserva. Além disso, o EL PAÍS entrou em contato com o ISP e a Polícia Civil para questionar como são computadas as mortes cujas suspeitas apontam para a polícia — como nos casos de Ágatha e de outras crianças —, mas que ainda estão sob investigação. Nesses casos, as mortes são registradas apenas como homicídios. Essa informação poderá ou não ser atualizada no futuro, conforme o andamento das apurações. Portanto, apesar de os números recentes de autos de resistência já serem alarmantes, é provável que exista uma subnotificação.

Após a notícia publicada pela Veja de que policiais militares invadiram o hospital, Witzel imediatamente tuitou: “Minha posição é firme: tudo será apurado com rigor. Os fatos, se comprovados, são inadmissíveis. Os culpados serão punidos”. Eleito prometendo atirar “na cabecinha de criminosos”, o governador não moderou o discurso quando assumiu o cargo em janeiro. Sua política de segurança, marcada por um endurecimento tanto retórico como operacional, vem recebendo duras críticas de movimentos sociais e especialistas por estimular a violência policial e acabar com a vida de centenas de pessoas, sejam elas criminosas ou não. Ágatha pode ter sido mais uma vítima inocente do Estado.

O governador vem defendendo que sua política tem reduzido os índices de criminalidade no Rio. Logo após a morte da menina, Witzel acabou com o programa que previa gratificações aos policiais que menos matassem. Entre janeiro e agosto deste ano, os homicídios dolosos caíram 21,5% com relação ao mesmo período de 2018, enquanto que as mortes cometidas por agentes de Estado aumentaram 16%. Porém, uma pesquisa feita pelo Ministério Público do Rio mostrou que não há relação entre os dois índices. O estudo, divulgado em 28 de setembro, buscou as áreas onde houve maior redução do número de homicídios e verificou se esses lugares também assistiram a um aumento da letalidade policial. A conclusão é que não há ligação entre esses índices. “A letalidade policial no Rio não está relacionada à variação de crimes contra a vida e contra o patrimônio”, afirmou a pesquisadora Joana Monteiro.

As evidências não parecem convencer as máximas autoridades do país. Na última semana, ao lançar uma campanha publicitária sobre o pacote anticrime, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que um alto número de autos de resistência “é sinal de que o policial trabalha”. O texto enviado ao Congresso pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, prevê que os agentes que aleguem “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” após matar podem ficar sem nenhuma punição, cumprindo a promessa de Bolsonaro de ampliar o chamado excludente de ilicitude. Essa parte foi excluída do projeto pelos deputados na Comissão de Segurança Pública logo após a morte de Ágatha.

A reconstituição da morte da menina ocorreu no dia 1 de outubro e contou com a participação de apenas dois policiais militares que estavam presentes no dia do crime. Os agentes afirmaram aos investigadores que um homem que estava na garupa de uma moto havia passado atirando, motivo pelo qual revidaram. A corporação apresentou uma versão diferente na ocasião, ao afirmar que equipes policiais foram atacadas por criminosos em diversas localidades e de forma simultânea. O portal G1 ouviu de integrantes da investigação que a hipótese mais provável é a de que o tiro tenha saído da arma de um policial militar, conforme relatam testemunhas. O laudo do Instituto Médico Legal afirma que o fragmento da bala retirado do corpo da menina é compatível com um fuzil, mas não soube precisar seu calibre — o que dificulta identificar de imediato de onde partiu o tiro. A pergunta agora é se as investigações sobre a morte de Ágatha continuarão e chegarão a um resultado concreto, ou se, como de costume, cairão no esquecimento das autoridades e da sociedade — como em mais de 90% dos casos.

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