“Gratificação faroeste”: Polícia ou bando armado?

No RJ, extrema direita tenta reviver prêmio a policiais por cada corpo abatido. Derrubada por pressão civil, medida reduziu a resolução de crimes e estimulou a violência. Pesquisadora aponta: pode crescer letalidade entre os próprio agentes de segurança

Operação Policial no Complexo do Alemão. (Foto: Renato Moura/Voz das Comunidades)
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Jacqueline Muniz em entrevista a Juliana Passos, no Brasil de Fato

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou na última terça-feira (23) uma gratificação para policiais civis de 10 a 150% para apreensão de armas e neutralização de inimigos proposta pelos deputados Alan Lopes (PL), Marcelo Dino (União) e Alexandre Knoploch (PL). A gratificação é uma emenda feita ao projeto de Projeto de Lei 6.027/25 enviado pelo governador Cláudio Castro (PL) para reestruturação da Polícia Civil.

A medida está sendo amplamente questionada e o Brasil de Fato convidou a antropóloga, cientista política e gestora de segurança pública Jacqueline Muniz para detalhar os impactos dessa proposta que vai à sanção do governador. Para Muniz, essa gratificação funciona como uma licença para matar e impedir o trabalho de investigação policial.

Uma bonificação semelhante vigorou no estado durante o governo de Marcelo de Allencar (1995-1998) e derrubada por pressão da sociedade civil em 1998, ano em que Anthony Garotinho se elegeu governador do estado. Muniz integrou como diretora a equipe do secretário de Segurança Pública e general da reserva José Siqueira entre janeiro e março de 1999, que tinha como subsecretário Luiz Eduardo Soares, um dos principais responsáveis por formular uma nova política de segurança pública que tentava ser implementada na época.

Um dos pontos desse novo modelo, a gratificação estaria relacionada a diminuição e resolução de crimes. Essa posição gerou conflitos internos e embora a gratificação faroeste tenha sido interrompida, a gestão foi demitida em março, conforme noticiaram os jornais da época.

Nesta entrevista, a também professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) explica porque os próprios policiais deveriam ser contra a medida, que coloca um risco a mais para suas vidas, e o impacto dessa gratificação no trabalho de investigação.

Qual a sua avaliação sobre a gratificação aprovada pela Assembleia Legislativa que aumenta o salário de policiais civis de 10% a 150% por apreenderem armas e neutralizem criminosos?

Jacqueline Muniz: É indefensável. Eu escrevi um texto onde eu demonstro que, primeiro, em nenhum lugar do mundo democrático, a neutralização de oponentes, suspeitos ou criminosos, serve como indicador de produtividade ou indicador de desempenho de polícia, em especial de uma polícia investigativa. Por quê? Porque isso cria isso cria uma autorização para matar.

Se você ganha por corpos abatidos, todo mundo numa operação vai ter que matar alguém. Um inocente útil ou um suspeito de modo a melhorar seu contracheque. É como se um pesquisador tivesse aumento por multiplicar dados sem pesquisa, não é? Levaria a invenção de dados. Da mesma maneira, o jornalista que tem como critério de produtividade, a entrega rápida de um texto, o que compromete a apuração e a fidelidade às fontes, não é isso? Então, o problema é exatamente esse. Além do mais, a chance de uma polícia atirar em alguém é muito baixa, mesmo quando a própria polícia constrói uma ocorrência de alto risco.

Os policiais saem perdendo, a sociedade sai perdendo, o governo sai perdendo, o Estado sai perdendo, não é? Então o que você tem é o uso da polícia para fins particulares, para negócios particulares, para esquemas que, necessariamente, são esquemas de corrupção, é disso que se trata, tá? Então não é profissionalismo, ao contrário é uma sabotagem do profissionalismo policial, é para que que serve isso? Para inviabilizar a investigação.

Curiosamente o Rio de Janeiro teve três chefes de polícia civil presos, né? Por organizar o crime. A maior parte de crimes que não tiveram resolução, inclusive assassinato de políticos como a [vereadora] Marielle [Franco], tiveram a participação de atores policiais. Olha como matar dá certo. Nenhum crime organizado sobrevive sem apoio político e sem a participação de atores do Estado. Nem aqui, nem em lugar nenhum. A ideia de um crime separado do Estado é uma leitura de filme.

Em artigo publicado no site 247, a senhora argumenta que a polícia vai se aproximar do crime organizado. Queria entender melhor esse argumento.

A polícia começa a organizar o próprio crime organizado, então ela não se aproxima do crime, ela se torna parceira, sócia, tá? Se você mata quem conhece o crime organizado, você está sabotando a própria investigação e a produção de inteligência que serviria para identificar como o crime organizado funciona, quem é quem dentro do crime organizado. Você está aparelhando a polícia para fins partidários, para aparelhamentos de toda sorte.

Isso acaba revelando esquemas de corrupção, lógicas de parceria com o crime, né? Revela-se, portanto, que a morte não deriva de uma ação de alto risco, mas sim se torna uma mercadoria. É como se o estado tivesse milicializando a sua polícia e, inclusive, barateando a vida do policial.

Se você o tempo todo mata aqueles que trabalham na economia criminosa, na drogaria ilegal que é a boca de fumo, como é que você vai conhecer como funciona lá dentro? Como é que o inquérito vai andar? Como é que a investigação vai andar? Você paralisa a investigação, põe em risco a vida dos policiais honestos, íntegros, que querem trabalhar como policiais de verdade, não é?

Então, você barateia a vida desse policial. Também, esse policial acaba, tendo ali, um horizonte que é um atestado de óbito. Além dele se sentir desmoralizado, esquecido pelo próprio Estado, que afinal, ele trabalhar direito significa não ganhar aumento nenhum, premiação nenhuma, reconhecimento nenhum. Fica valendo quanto mais matador. E esse policial vai ganhar do crime porque ele matou, ele está em serviço. E vai ganhar do estado porque matou, e passa a governar no lugar do governante. Essa é a gravidade da coisa. Isso já aconteceu no Brasil, no Rio de Janeiro, aconteceu no México, em outros países e nunca deu certo.

Gostaria de lembrar que em 1999, eu era diretora na Secretaria de Segurança do governo [Anthony Garotinho] e introduzimos novas formas de gratificação, de modo que todos os policiais, independentes da patente e da função, receberiam uma gratificação mensal por reduzir o número de crimes e aumentar a resolução deles. Criamos também as áreas integradas de segurança, criamos os indicadores de criminalidade violenta, desenvolvemos indicadores para aferir o trabalho de polícia dentro das áreas integradas que tínhamos implantado.

Qual deve ser o papel da polícia em uma sociedade democrática?

O trabalho da polícia em uma sociedade democrática é prover com policiamento público e estatal igualitário, regular, transparente, sob controle da sociedade e com transparência. Esse tipo de desempenho desvirtua o lugar de polícia, o lugar democrático, transformando a polícia num bando armado a mais. A serviço de lógicas escusas, de lógicas corruptas, de lógicas criminosas, não é? Então essa é a grande questão.

A quem interessa isso? Não são os policiais civis, ao contrário, terão suas vidas barateadas, né? Porque a contrapartida de você matar de um lado, é a vingança do outro, né? O acerto de contas, não é mesmo? Olha quantas coisas vem junto disso.

Essa disseminação da autonomização predatória do poder de polícia, que é da sociedade, e que passa a ser utilizado por grupos policiais que desmoralizam e enfraquecem a polícia. Ora, se a polícia na democracia se enfraquece, alguém vai ocupar o lugar dela. E essa autoridade que vai ocupar o lugar dela será autoritária.

Todo mundo vai começar a resolver seus problemas por conta própria e resolver por conta própria quase sempre com uso abusivo e excessivo de força, ou seja, com uso da violência.

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