Explosões. Rio morto. A mineração contra os Kayapós
No norte do Pará, diante da terra indígena, avança a destruição. Não se caça, não se pesca, não é possível banhar-se na água. Justiça não reconhece crimes ambientais. Empresas driblam legislação terceirizando o garimpo ilegal
Publicado 15/09/2020 às 15:03 - Atualizado 15/09/2020 às 15:07
Por Maria Fernanda Ribeiro, na Repórter Brasil
Há seis anos que a terra treme e a poeira sobe na Terra Indígena Kayapó. São os explosivos usados por uma mineradora para detonar rochas de manganês, a apenas dois quilômetros do território indígena, perto da cidade de Cumaru do Norte, no Pará. De suas aldeias, os Kayapó veem passar os caminhões lotados com o minério, enquanto sofrem com suas terras e rios contaminados.
“As caças fogem com as explosões. O rio agora é só lama. A gente não
come mais peixe nem caça; só o que compra no mercado, porque a água tá
contaminada e passa doença”, afirma a liderança Kubeí Kayapó, de 62
anos. “Dá saudade de comer peixe e de tomar banho no rio.”
O relato de um dos líderes mais antigos na defesa da terra dos Kayapó
reflete como a fauna, a flora e o modo de vida da etnia vêm sendo
prejudicados pela atividade minerária. O empreendimento pertence
atualmente à Buritirama Mineração (até o ano passado era da Mineração
Irajá), que possui uma licença para pesquisar a quantidade de minério
existente no local.
Mas os prejuízos socioambientais são apenas uma parte dos problemas que os Kayapó enfrentam com as mineradoras. De acordo com os indígenas e com relatórios da Funai e do Ministério Público Federal, há ao menos outros dois: exploração em área irregular, pela ausência de consulta prévia aos Kayapó, e criação de uma ‘especulação minerária’ – que corrompe alguns indígenas, atrai garimpeiros ilegais e traz novos impactos socioambientais.
A polêmica da exploração minerária às margens da terra indígena
começou em 2014, quando o estado do Pará – que nos primeiros seis meses
deste ano exportou US$ 88 milhões em manganês – concedeu para a Irajá
uma licença ambiental chamada “autorização para lavra experimental”, que
permite que a empresa extraia o minério do local para testá-lo,
inclusive fazendo isso ao vender uma parte para o mercado.
Apesar de a área licenciada estar fora da terra indígena, ela está
dentro da chamada Zona de Amortização. “É uma faixa criada para impedir
que os impactos ambientais cheguem às comunidades”, afirma o geólogo
Edson Farias Mello, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Essa ‘zona tampão’, que também precisaria ser preservada, impediria, por
exemplo, que a poeira da qual os Kayapó reclamam chegasse às suas
aldeias. Poeira formada a partir da emissão de partículas do próprio
manganês, como explica Mello.
Os impactos relatados por Kubeí e por outros integrantes da etnia
foram formalizadas pelos Kayapó ao entrarem com uma ação civil pública
na Justiça em julho de 2019 pedindo indenização por danos materiais,
além da suspensão das atividades minerárias. No entanto, o processo foi
extinto pela Justiça com o argumento de que o Instituto Kenourukware
Kayapó (IKKA) não tem legitimidade para representar toda a etnia.
Três meses depois da ação na Justiça, os prejuízos ao território
Kayapó foram novamente confirmados, dessa vez pela própria Funai. Em um
relatório de outubro de 2019, o órgão registrou como havia constatado in
loco os impactos ambientais diretos e indiretos que o empreendimento,
já de propriedade da Buritirama, trazia aos indígenas devido à
proximidade. O documento constata que a água do local sofreu alterações
pois as áreas requeridas pela empresa abrigam rios que entram no
território Kayapó e são usados pelos indígenas como fonte de
subsistência, seja para o consumo ou para a pesca. A Funai também cita
problemas como os ruídos causado pelas máquinas e a perda da
biodiversidade devido ao afugentamento da fauna.
As violações socioambientais já haviam sido registradas em um
relatório do Ministério Público Federal de 20 de setembro de 2018, fruto
de uma reunião com 18 caciques Kayapó, que tratou da então omissão da
Funai sobre o tema. De acordo com a ata, os indígenas haviam procurado a
Funai quase um ano antes e “não obtiveram respostas sobre as explosões
da mineração.” Também foi relatado ao MPF pelos indígenas que “a
mineradora não consultou a aldeia sobre os danos ambientais, que entrou
destruindo a mata e causando explosões, assustando os animais e que os
destroços das explosões afetam a vegetação.”
Como em fevereiro do ano passado a Irajá vendeu os direitos minerários para a Buritirama, que disputa com a Vale o posto de maior produtora e exportadora de manganês do país, a reportagem questionou as duas empresa sobre as denúncias feitas pelos Kayapó e confirmadas na visita dos servidores da Funai.
A Irajá afirmou à Repórter Brasil que nos cinco anos em que pôde explorar o local, nunca realizou atividades dentro do território indígena e destacou não ter mais relação com a mina de manganês, já que a vendeu para a Buritirama. A Buritirama, por sua vez, disse que, apesar de ter a documentação necessária, ainda não iniciou as operações “e que por este motivo, não há transporte de minério feito pela Buritirama na região”. Já Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) não afirmou de quem são os caminhões carregando o minério que passam ao lado das aldeias Kaiapó. (Leia as respostas na íntegra)
Apesar de a Buritirama afirmar não ter começado as operações, o
relatório da Funai não deixa dúvidas sobre a presença da empresa: “Ao
visitar a área, foi possível ver que a empresa Buritirama Mineração está
operando dentro da poligonal deliberada pelo Departamento de Nacional
de Produção Mineral, mas também foi visto atividades minerárias dentro
do território indígena, mas não foram encontrados os responsáveis pelo
mesmo.”
Propina, terceirizados e garimpo
O flagrante feito pelos servidores da Funai, de que há garimpo dentro
da terra indígena, é detalhado pelos Kayapó: ele acontece por meio de
pagamento de propina para alguns indígenas. Esses, então, deixariam
garimpeiros “terceirizados” entrar na TI e o minério extraído seria
vendido diretamente para a empresa de mineração.
De acordo com Eliseu, o pagamento aos indígenas, além de ser
corrupção, gera conflitos na comunidade, pois há discordância sobre a
exploração do manganês dentro do território. Ele conta que o valor da
propina para cada caçamba de manganês dentro da terra indígena pode
variar entre R$ 100 e R$ 300. “Além de carregar o minério, eles
corrompem os indígenas”, disse. Em 2018, segundo ele, os indígenas
flagraram e detiveram funcionários da mineradora Irajá dentro da TI. Em
seu relatório, a Funai também registra que o empreendimento trouxe para a
região uma especulação minerária para a região, que pode inclusive
“atrair pessoas para caça irregular”.
A Irajá não comentou a suposta detenção de seus funcionários dentro da TI. A Buritirama afirmou à Repórter Brasil que
“não adquire produtos de outras origens e apenas oferta minério
extraído e tratado dentro de seus empreendimentos em operação.”
Se por um lado a Buritirama afirma não ter começado a atuar na área
vizinha à Terra Indígena Kayapó, o mesmo não se pode dizer sobre a Irajá
– mineradora que entre 2014 e 2019 possuía autorização da Secretaria de
Meio Ambiente para estudar o potencial minerário da região.
Sob a aprovação da Agência Nacional de Mineração (ANM), a Irajá (do
grupo Santa Elina) poderia operar numa área de 3,3 mil hectares
retirando o minério e até vendendo uma parte para testar a viabilidade
econômica da atividade.
Apesar de a licença de 2014 autorizar a extração de 12 mil toneladas
de manganês, a Irajá retirou 46 mil toneladas, segundo relatório
enviado pela própria empresa à Secretaria de Meio Ambiente cinco anos
depois. No ano passado, a Irajá solicitou mudança de titularidade da
área para Buritirama, em uma transação financeira que pode ter envolvido
algumas dezenas de milhões de reais, segundo uma fonte ligada ao setor.
Com cerca de 7 mil moradores divididos em 19 comunidades, a Terra Indígena Kayapó enfrenta o garimpo ilegal há duas décadas, mas desde 2015 ele vai chegando cada vez mais perto das aldeias. Uma atividade que inflama a contaminação dos rios e peixes, além da derrubada da floresta – somente em 2019, 1.700 hectares foram desmatados decorrente do garimpo ilegal, segundo o sistema que monitora o desmatamento da Rede Xingu+. Mesmo não sendo permitida a exploração minerária em terras indígenas, a pressão pela liberação é uma ameaça constante por meio de um projeto de lei elaborado pelo Executivo e que está, por enquanto, parado no Congresso.
‘Ninguém veio conversar com a gente’
Seja no ar que fica empoeirado, nos rios que se tornam barrentos ou
nos peixes que não podem mais ser consumidos. Se há risco de um negócio
gerar impacto negativo, é preciso que a comunidade seja ouvida antes. “A
chamada consulta prévia é necessária sempre que uma atividade regulada
pelo Estado afetar terras indígenas”, explica o advogado do Instituto
Socioambiental (ISA), Johnatan Razen, acrescentando que esse diálogo
deve seguir os protocolos de cada povo e que a omissão desse diálogo
contraria um direito previsto na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT).
“Nunca ninguém, de nenhuma das empresas, veio conversar com a gente.
Já tentamos abrir diálogo, mas não há nenhuma relação deles com a
gente”, afirma Eliseu Kayapó.
“A mineradora está praticamente dentro da reserva, é bem na nossa
divisa mesmo”, afirma Davi Kayapó, liderança indígena e filho de Kubeí.
“A gente tem pouco conhecimento sobre os produtos que eles usam, mas
sentimos o cheiro da bomba quando explode e vemos a poeira que levanta. A
água está poluída e quem come o peixe fica doente, com dor de cabeça,
dor de barriga, tontura e antigamente não era assim.” Mesmo assim, Davi
reitera que eles jamais foram ouvidos.
Responsabilidade de quem?
O jogo de empurra entre as autoridades impera quando o assunto é a
responsabilidade por ouvir a comunidade afetada. A questão da consulta
pública aos indígenas, por exemplo, cabe à Funai – que pode promovê-la a
partir de provocação da Secretaria do Meio Ambiente.
No entanto, segundo Razen, advogado do ISA, é comum que a Funai também seja avisada sobre a necessidade de diálogo pela própria empresa que vai realizar a atividade – o que poderia ter sido feito pela Irajá ou pela Buritirama. As duas empresas se ausentaram dessa responsabilidade e afirmaram à Repórter Brasil que o processo cabe apenas à Secretaria de Meio Ambiente. (Leia as respostas na íntegra)
A secretaria, por sua vez, afirmou que “cabe à empresa apresentar um estudo de impacto à Funai” e disse ter comunicado tanto a mineradora como a própria Funai sobre a proximidade entre o empreendimento e a terra indígena. A secretaria também afirmou que está tratando do assunto junto aos responsáveis pelo empreendimento. A Funai não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil.
No Pará, manganês tem ‘PIB’ semestral de US$ 88 mi
O governo do estado do Pará elegeu a mineração como uma das
prioridades da atual gestão, e o governador Helder Barbalho (MDB) não
tem medido esforços para atrair investidores. Em uma feira de
expositores do setor, em 2019, destacou o potencial minerário do estado e
o desafio em desenvolver a atividade, com promessas de criar políticas
de desburocratização dos licenciamentos ambientais.
O manganês é considerado um produto promissor para alavancar esse
cenário. De janeiro a junho de 2020, o Pará exportou mais de 660 mil
toneladas de manganês, o que representa US$ 88 milhões, segundo dados do
Sindicato das Indústrias Minerais do Estado. O minério está entre os
principais produtos exportados pelo estado (6º colocado do ranking),
sendo que os principais países compradores são Estados Unidos, México,
Noruega, China e Índia.
E a Buritirama, que pertence ao Grupo Buritipar, também tem altas
expectativas em relação ao minério, pois afirmou que “tem se empenhado
na ampliação de reservas de manganês para sustentar o seu plano de
crescimento, tendo investido na aquisição de novos títulos minerários em
várias partes do Brasil.” Em seu site, se vangloria de ser “uma das
maiores exploradoras de manganês do mundo” e destaca que foi eleita a
empresa do ano de 2019 pela Revista Brasil Mineral.
“Eles estão enriquecendo e nós aqui sofrendo os impactos ambientais”, afirma Eliseu Kayapó, coordenador do IKKA.