Em O Agente Secreto, o povo tem cara de povo
Vencedor em Cannes, o filme de Kleber Mendonça tem o olhar de quem anda pela cidade. Se passa em 1977, mas parece hoje. Tem madame que deixa empregado morrer; delegado miliciano; tem frevo, música e ritmo acelerado de quem sofre e festeja, tudo ao mesmo tempo
Publicado 04/06/2025 às 15:27 - Atualizado 04/06/2025 às 15:32

Por Fabiane Albuquerque, no Le Monde Diplomatique Brasil
E o filme começou. O fusca amarelo de Marcelo estaciona num posto de gasolina. Posto nada, uma bomba no meio do nada, um senhor barrigudo com a camisa aberta, com o mesmo fenótipo dos homens da Vila Brasilândia em São Paulo, em bares nos fins de semana, ou do meu sertão mineiro. O lugar é meio deserto, parece a paisagem descrita por Guimarães Rosa, região onde cresci: terra seca, “onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morar”. Um corpo morto jogado no chão está lá há dias, diz o funcionário, sem que autoridade nenhuma tome nota, pois, afinal, no sertão “há coisas de medonhas demais”, aponta o escritor mineiro. A banalidade das nossas mortes está toda ali, naquela cena, com as moscas que sobrevoam o cadáver em decomposição, fazendo um barulho que a gente chega a passar a mão na cara, para afastá-las. Nem polícia se move, o povo é que cobre o morto e ainda convive com a inhaca. É a força do lugar sobre o pensamento, não o contrário, como diz Guimarães Rosa. Talvez o sertão do Norte seja diverso.
E, a gente segue com o olhar e se depara com uma coisa prazerosa, que chega a encher a alma. Tem morte, sim, mas tem gente com cara de gente. Vida do povo mesmo, não de gente que não é da gente imitando a gente. Porque diversidade mesmo, só no meio popular. A gente anda pelas classes médias e a pequena burguesia (porque a grande nem vemos) e se depara com uma coisa assustadora: todo mundo igual, fisicamente e esteticamente. As mulheres brancas, todas de cabelos lisos e “loiricizadas”, os homens de camisa polo, as roupas todas de cores sóbrias, de tonalidades únicas, as caras plastificadas, com dentes do desenho da Barbie. E eu não sei distinguir a classe média de Fortaleza, daquela de São Paulo, Rio de Janeiro ou Porto Alegre. Se tem uma proeza que admiro no Capitalismo é isso, ele consegue uniformizar uma classe e fazê-la acreditar que é livre e autêntica.
Dona Sebastiana recebe Marcelo no prédio que toma conta. Ele, o protagonista foge para reconstruir a vida ao lado do filho, tentando esconder-se dos jagunços que não vestem roupas esfarrapadas, usam chapéu de couro e andam a cavalo. O jagunço é sudestino e, a mando de um poderoso com nome italiano (olha a ironia), sobe o Brasil acima para executar Marcelo. Quebrando estereótipos, é crítica ao sudestino e ao sulista, que sempre pousaram o olhar narcísico sobre o Nordeste achando feio tudo o que não é espelho. O Nordeste, no filme, é que está olhando para baixo. Para essa gente que chega lá, chamando certos tipos de trabalho, “trabalho de bicho”. E, o “bicho” não esquece isso, não. Vai vendo.
O Agente Secreto segue o rumo de Bacurau, onde quem nasce lá, gente é. É preciso afirmar isso o tempo todo para o Brasil não esquecer. E, dá vontade de ser vizinha de Sebastiana, ô velha arretada! Tem angolano refugiado, tem homem que não consegue ser homem do jeito que os outros esperam, tem mãe solo, tem solidariedade e até feirinha orgânica. É gente que ninguém dá nada, mas incomoda demais os poderosos. Ah! Sem contar que o Agente Secreto, Marcelo, ou melhor, Armando, é pesquisador de uma Universidade Pública do Nordeste, e tem cara de comunista. Tem pesquisa de ponta, de não deixar nada a desejar aos intelectuais do Sul, que falam do Brasil como se só existisse o eixo Rio e São Paulo. A esposa, Fátima, que mulher, que mulher! Ela fez o que todo brasileiro preto gostaria de fazer diante de um branco, rico, safado e explorador. Mandou tomar no orifício enrugado circular, no meio do restaurante. Por quê? Porque o cabra tinha tomado “banho de indústria” e, no alto da sua arrogância, a mesma que acha tudo que vem do povo, bagunçado, confuso, afolado, longe do perfume francês dos dirigentes do PSDB, ou dos colunistas da Folha de São Paulo que, dos seus apartamentos ou restaurantes chiques, decidem que o é digno de ser publicado, o que é alta literatura, o que é um bom cinema, o que é a moda, o que o Feminismo deve fazer e até o que é e pensa o povo. Porque a gente, descendente das Carolinas de Jesus, oriundas dos quartos de despejo, tem gosto, sim, senhor, e não somos obrigadas a gostar de filme sobre família burguesa, com quarto de empregada, sobretudo quando a empregada pronuncia três frases.
O Thriller se passa em 1977, mas parece hoje, minha gente. Então não dá para saber se é Brasil de 2025 ou Brasil daquela época. Tem rico que deixou o filho da empregada morrer, após mandar a mulher sair para fazer um serviço na rua, e o menino sair pelo portão e ser atropelado. Tem cabimento? Oxe! Mas isso acontece ainda hoje, quando a madame, no meio da pandemia, manda a empregada doméstica passear com os cachorros e coloca o seu filho, menino preto de cinco anos, num elevador e aperta o botão de subir. Subiu o menino. Tem delegado miliciano, que atrela a máquina pública com os interesses da burguesia. Tem até militar expulso da corporação porque ninguém lá o suportava. E virou assassino de aluguel. Já aquele expulso, o da nossa época, ah, que desastre! O cabra virou presidente e deu no que deu. Pois bem, o miliciano sai de São Paulo para matar Marcelo e, como todo bom sudestino, contrata um matador local, caboclo, pinta boa, carregador, o mesmo que faz “trabalho de bicho”. Olha, o povo de Pernambuco não esquece das coisas, não. Eu tenho um amigo de lá que me joga na cara coisas de vidas passadas. A gente sabe que por lá, arrogância de sudestino não se cria. Eles riem na cara dele, sem ele saber. E, dito e feito. O cabra que chamou o outro de bicho, como bicho morreu. Mas o povo de Recife não é perverso, não. Não dessacraliza a vida. Até para miliciano tem vela, porque Deus, no final, é pai de todos.
Tem frevo também, música de ritmo acelerado, com movimentos acrobáticos. A dança ferve assim como a vida, junto com a violência diária, a dureza e o desmando dos poderosos à frente das instituições. Frevo, sim. O povo sofre e cai na folia. Na Europa, quando o povo sofre, é tudo separado, primeiro se sofre, depois se festeja, se festeja e depois sofre, cada coisa tem a sua vez. Lá, não. Sofre e festeja. Tem amasso em praça pública, tudo envolvido numa estética do popular, sem ridicularizar e, onde um olhar aburguesado vê sujeira, desordem, tudo encardido, até a pele do povo, tem é vida. Porque, como diz um amigo italiano, comunista do sul da Itália: “Limpeza é coisa de burguês”. E, não é que ele tem razão?! A gente viaja para Nápoles, vê a cidade suja, os prédios precários, os carros velhos, o trânsito todo embolado, mas a força da cultura popular e da resistência ao fascismo, só um olhar menos afobado e “desaburguesado” pode captar. Em 1943, durante quatro dias, os napolitanos botaram para correr a tropa alemã. O povo jogou vasos sanitários dos apartamentos na cabeça dos nazistas. Num lugar extremamente ordenado, “limpo”, uma coisa dessas não seria possível. Primeiro iriam pensar no porcelanato e no mármore, caros demais para se jogar. Verona, no Norte do país, por exemplo, é tão limpa, tão limpa, que tem uma lei que proíbe dar esmola no centro histórico. Olha só! Para manter a cidade limpa, é preciso renunciar à caridade e espantar os mendicantes. É isso o que está por trás da estética burguesa. Eu não troco o Recife por Curitiba nem a pau. A obra de Kleber Mendonça é do contra poder, das relações com um pólo.
Ah, ia-me esquecendo da perna cabeluda. A perna que botou para quebrar. A lenda urbana dos anos 1970. Na praça da pegação, ela apareceu para colocar ordem, porque o meu povo do sertão de cima, tem os seus limites. Mas não a ordem da polícia de Tarcísio, em São Paulo, ou dos moradores dos bairros de classe média, que atacam o padre Júlio Lancelotti por entregar comida aos pobres. A perna é esta força invisível que vinga a vida na ausência da justiça. Ela aterroriza mesmo. Pode até dizer que é mentira, vocês aí de baixo, gente que se acha mais evoluída, mas acredita em coisas piores. Por exemplo, que os bandeirantes eram homens desbravadores e empreendedores. Eram nada. Um bando de assassinos de povos indígenas que começou a grilagem de terras, entrando na mata para arrancar riqueza. Para a nação? Não, claro. Para o bolso dos mais ricos. Abriram caminhos para o agronegócio, sim, senhor. Vai lá ver como está o Estado de Goiás hoje, outrora terra de tantos povos nativos, passarinhos, lobos guará, árvores frutíferas e muita água doce. Acreditam até que o povo preto tem inveja de mulher “branca, bonita e rica”. A pessoa é a cara do espantalho dos milharais da minha infância.
Mas, voltando ao filme. Tem algo de muito inovador na arte de Kleber Mendonça. E vou dizer o que é: o cabra ainda anda a pé pela cidade de Recife, acredita? É que quem anda a pé vê as coisas por outro ângulo, vê gente, fala com gente, sente o cheiro da cidade. Artista que perde isso, fica a cara de Woody Allen, que circula infinitamente ao redor dos dramas do bairro de Manhattan. Aí o povo assiste e dá risada. Só os críticos, a “intelligentsia”, gosta. O povo mesmo ri do rico que ri de si mesmo. O filme de Kleber Mendonça é crítica social com deboche. Povo sofre, mas sofre com classe. É dona Sebastiana fofoqueira, é funcionário do centro de identificação que trepa no meio do expediente, é a datilógrafa que canta o novato, na cara dura, é a consulta odontológica no meio da trepada. Porque povo, minha gente, não tem ordem cronológica e nem pauta pré-estabelecida. A vida flui e se reinventa. Massa demais. Recomendo.
Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia e escritora, autora dos livros Cartas a um homem negro que amei e Ensaio sobre a raiva.
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