Direito à vida ou obrigação de viver?

É crucial debater a morte digna: a eutanásia e o suicídio assistido em casos de sofrimento extremo. As implicações filosóficas, em meio ao capitalismo, são vastas: coloca-se em xeque a lógica que reduz a vida humana a sua utilidade econômica

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Por José Micaelson Lacerda Morais, em A Terra é Redonda

“Martin Heidegger defende que o “ser para morte” é a condição decisiva de toda liberdade humana verdadeira. Em outras palavras, se é livre para viver a própria vida somente quando se é livre para morrer a própria morte”
(Achille Mbembe, Necropolítica).

Direito à vida ou obrigação de viver?

A defesa da vida consolidou-se historicamente como um valor central nas tradições éticas, jurídicas e religiosas, sendo compreendida como condição primeira para o exercício da liberdade, da justiça e da dignidade. O princípio da inviolabilidade da vida emergiu em resposta a horrores históricos como o genocídio, a escravidão, a tortura e o abandono institucional.

Porém, em nome da preservação da vida a qualquer custo, frequentemente se invisibiliza o sofrimento de pessoas que, embora biologicamente vivas, estão submetidas a condições existenciais tão degradantes que sua permanência no mundo já não se apresenta como valor, mas como peso insuportável.

Assim, quando a vida se converte em sofrimento extremo, perda de autonomia e esvaziamento de sentido, torna-se necessário distinguir entre o direito à vida, entendido como proteção contra a violência, a negligência e a miséria, e a obrigação de viver, que, ao ser imposta de forma absoluta, pode desconsiderar a vontade do indivíduo e violar sua dignidade mais fundamental. Surge, então, uma questão ética incontornável.

É moralmente admissível obrigar alguém a continuar vivendo quando sua existência foi reduzida à mera sobrevivência orgânica, sustentada artificialmente por tecnologias médicas e sem qualquer perspectiva de restabelecimento da dignidade?

Dworkin (2011), em sua obra Justice for Hedgehogs, argumenta que o direito à vida não deve ser tratado como uma proibição incondicional contra a morte, mas como expressão da autonomia moral do indivíduo. A dignidade, nesse horizonte, não se realiza apenas pela conservação do corpo vivo, mas pela capacidade reflexiva da pessoa de decidir, com base em seus valores e história de vida, sobre o modo e os limites de sua existência, inclusive sobre seu fim.

Por sua vez, Ricoeur (1991), ao desenvolver a noção de identidade narrativa, propõe uma concepção ética do indivíduo que articula a autonomia com os vínculos interpessoais e a historicidade da existência. Para o autor, o indivíduo não é um eu isolado que se autodetermina no vazio, mas um ser cuja identidade se constrói no entrelaçamento entre a mesmice (idem) e a ipseidade (ipse), ou seja, entre a permanência e a capacidade de manter a palavra, assumir promessas e ser reconhecido como agente moral.

Nesse contexto, a autonomia não é pura soberania da vontade, mas resultado de uma trajetória narrativa situada, permeada por relações de solicitude, reconhecimento e responsabilidade. Nessa perspectiva, o desejo de morrer, em situações de sofrimento extremo, não deve ser interpretado apenas como expressão patológica ou desistência individual, mas como parte de uma história de vida cuja coerência ética pode incluir, nos limites da dor e da indignidade, a recusa de continuar vivendo.

O agir ético exige escutar essa narrativa com atenção e reconhecer que a decisão sobre o próprio fim pode ser uma expressão da fidelidade do indivíduo a si mesmo.

No campo da teologia contemporânea, Küng, padre e teólogo suíço, e Jens, filólogo e historiado alemão, abordam de forma profunda a questão do fim da vida em Dying with dignity: a plea for personal responsibility (1998). Os autores argumentam que a fé cristã, quando amadurecida, não exige a perpetuação do sofrimento a qualquer custo.

Pelo contrário, defendem que a autonomia do paciente, manifestada na escolha consciente e informada de encerrar sua vida em face de dor terminal intolerável, pode ser coerente com uma ética cristã centrada na compaixão, no cuidado e na dignidade. Ou seja, de que o direito à vida não implica um dever de viver a qualquer custo, e que, nesses casos, a decisão de morrer pode significar a afirmação da liberação ética e espiritual do indivíduo, em combinação com o respeito pastoral de sua comunidade e de seus cuidadores.

Nas palavras de Küng (1998, p. 36-37), “faço isso porque, como cristão e teólogo, estou convencido de que o Deus todo-misericordioso, que concedeu aos homens e mulheres a liberdade e a responsabilidade por suas vidas, também deixou às pessoas que estão morrendo a responsabilidade de tomar uma decisão consciente sobre o modo e o momento de sua morte. Essa é uma responsabilidade que nem o Estado, nem a Igreja, nem um teólogo, nem um médico podem tirar delas”.

Do ponto de vista jurídico, a criminalização do suicídio assistido e da eutanásia ainda persiste em muitos países, inclusive no Brasil, e levanta sérios dilemas bioéticos, legais e sociais. A manutenção de legislações proibitivas, mesmo sob critérios médicos rigorosos, reflete uma tensão latente entre a proteção da vida e o reconhecimento da autonomia. Em nome de um paternalismo protetivo, silencia-se o debate e agrava-se o sofrimento de pacientes terminais, que se veem compelidos a buscar a morte de forma clandestina, solitária ou degradante.

Judith Butler, em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? (2015), propõe que a precariedade é uma condição ontológica comum, mas sua exposição concreta é distribuída de forma desigual por meio de normas sociais que estabelecem quais vidas importam, quais são reconhecidas como plenamente humanas e quais são passíveis de luto.

Nesse enquadramento normativo, negar legitimidade ao desejo de morrer em situações-limite não pode ser visto apenas como uma recusa ao sofrimento individual, mas como um gesto político de exclusão simbólica. Trata-se de uma recusa em reconhecer a dor daqueles, cujas vidas já foram desqualificadas, de antemão, por estruturas de poder que regulam quem merece cuidado, visibilidade e dignidade. Para a autora, o cuidado ético não se baseia na imposição abstrata da vida como valor absoluto, mas na escuta atenta do sofrimento como expressão de uma falha coletiva no reconhecimento.

Nesse sentido, a transformação ética exige resistir à lógica que transforma o direito à vida em dever de viver, mesmo quando a existência se torna insustentável. Impor a continuidade da vida sem considerar a voz e a dor do indivíduo é também perpetuar uma forma de violência; justamente aquela que torna certas vidas desautorizadas ao luto, negadas em sua dignidade mais elementar. Assim, nos limites do suportável, reconhecer a liberdade de morrer pode ser o último gesto possível de afirmação da humanidade. Mas, sob quais condições esse reconhecimento pode ocorrer de forma ética, justa e não excludente?

A legalização da eutanásia e do suicídio assistido é frequentemente defendida como uma conquista ética em favor da autonomia individual e da dignidade frente ao sofrimento extremo. Supõe-se que permitir ao indivíduo morrer sob condições específicas de dor insuportável possa também reduzir os suicídios sem assistência, especialmente aqueles mais violentos, solitários e impulsivos.

Todavia, mesmo em sociedades favoráveis à regulamentação, há preocupações significativas sobre as possíveis consequências para grupos vulnerabilizados. Pois, a oferta institucional da morte digna pode, em determinados contextos culturais, ser interpretada não como um reforço da autonomia, mas como uma mensagem simbólica de que certas vidas, especialmente aquelas marcadas por dor, deficiência, velhice ou transtornos mentais, são socialmente menos valiosas ou mais descartáveis.

Por isso, ainda que o direito de morrer com dignidade deva ser respeitado como expressão da liberdade pessoal, ele precisa ser cuidadosamente protegido. As práticas de eutanásia e suicídio assistido devem ser articuladas com salvaguardas rigorosas e fortemente vinculadas a cuidados paliativos, prevenção do abandono institucional e políticas de justiça social. Só assim será possível evitar que a morte assistida seja instrumentalizada como dispositivo necropolítico, contribuindo para gerir vulnerabilidades em vez de reconhecer o sofrimento real como problema social.

Portanto, a institucionalização do direito de morrer, quando não acompanhada por um robusto sistema de cuidados paliativos, saúde mental e inclusão social, pode ser interpretada por indivíduos vulneráveis não como liberdade real, mas como concessão velada de abandono. A morte, nesse caso, aparece menos como escolha autêntica e mais como única saída possível diante da precariedade estrutural.

Nesse contexto, a questão ética central não estaria apenas garantir o direito de morrer, mas assegurar o direito de viver com dignidade antes que a escolha da morte se apresente. Isso implica reconhecer que o sofrimento não é um dado exclusivamente individual, mas expressão de falhas coletivas, em temos sociais, econômicos, institucionais e simbólicos, que empurrariam pessoas à desistência.

Quando o Estado falha em garantir políticas públicas que acolham a dor, a solidão e a invisibilidade, a legalização da morte pode funcionar como forma de silenciamento, naturalizando a exclusão sob a aparência da compaixão.

Nesse caso, se faz necessário tanto evitar o moralismo que nega o direito à morte digna quanto o pragmatismo liberal que transforma o suicídio assistido em solução individual para um problema estrutural. O verdadeiro desafio ético está em construir uma sociedade onde o desejo de morrer não seja expressão de abandono, mas sim uma exceção rara, debatida com escuta, vínculo e responsabilidade coletiva. A autonomia só é verdadeira quando o sujeito tem alternativas reais e não apenas a dor e o fim.

A crescente demanda por dignidade no processo de morrer tem impulsionado o debate público e legislativo em diversas partes do mundo sobre práticas como a eutanásia, o suicídio assistido, a suspensão de tratamentos desproporcionais e os cuidados paliativos integrativos. Essas experiências não apenas refletem transformações culturais profundas na forma como as sociedades lidam com o fim da vida, mas também revelam os conflitos entre ética, direito, medicina e políticas públicas.

Ao contrário de um modelo universal, o que se observa no cenário global é uma diversidade de abordagens, algumas mais permissivas, outras extremamente restritivas, sempre atravessadas por valores históricos, religiosos, econômicos e institucionais. Países como Holanda, Bélgica, Canadá, Colômbia, Suíça e alguns estados norte-americanos legalizaram, sob condições estritas, práticas como a eutanásia ou o suicídio assistido, com base no respeito à autonomia e no princípio da não-maleficência.

Em contraste, muitos países da América Latina, da África e da Ásia criminalizam qualquer forma de intervenção voluntária na morte, mesmo em contextos de sofrimento extremo.

Capitalismo periférico e a negação do direito de morrer

No caso brasileiro, as condições estruturais estão intimamente ligadas à formação econômica e social herdada do colonialismo e do imperialismo. A escravidão, a concentração fundiária, o racismo estrutural e o patrimonialismo moldaram uma sociedade profundamente desigual. O economista Celso Furtado (2000), em sua Teoria e política do desenvolvimento econômico, chamou esse modelo de “capitalismo bastardo”: uma forma periférica e dependente de capitalismo, que se organiza não com base na eficiência ou produtividade, mas na exploração intensiva da força de trabalho desvalorizada.

Nesse sistema, a maior parte da população é mantida em condições de trabalho precárias, sem garantia de direitos ou acesso à redistribuição, vivendo no limite da subsistência. A reprodução desse modelo é visível nas cidades brasileiras por meio do dualismo urbano que separa bairros formais e favelas, centros desenvolvidos e periferias abandonadas.

Esse padrão de desenvolvimento alimenta a precarização das relações sociais e a erosão das expectativas de futuro. A desigualdade extrema, aliada à violência cotidiana, ao racismo e à negação de direitos básicos, constitui um campo fértil para o sofrimento psíquico, muitas vezes não tratado, silenciado ou criminalizado.

Como podemos inferir de Mbembe (2018), a gestão da vida nas periferias do capitalismo é marcada por uma lógica necropolítica, que decide quem deve viver e quem pode morrer ou, ainda, quem será condenado a sobreviver em condições inumanas. Nessa lógica, o suicídio, longe de ser uma escolha livre, pode ser interpretado como o último gesto de uma subjetividade exaurida, abandonada pelas instituições, atravessada por múltiplas formas de violência simbólica e material.

A centralização do poder, a fragilidade da democracia participativa e a permanência de estruturas oligárquicas nas instituições públicas limitam a construção de alternativas. Como aponta Jessé de Souza (2017), a lógica da desigualdade brasileira é sustentada por uma elite que naturaliza a precariedade da maioria e a utiliza como reservatório permanente de força de trabalho barata.

Nesse cenário, a simples possibilidade de se reconhecer o direito de morrer com dignidade em casos de sofrimento extremo, como suicídio assistido ou eutanásia, colocaria em risco a manutenção dessa engrenagem social, pois implicaria o reconhecimento do valor subjetivo da vida e, portanto, da dignidade de milhões de pessoas historicamente excluídas.

O conservadorismo político, jurídico e religioso no Brasil também atua como força de contenção à institucionalização de critérios éticos e sociais para a morte voluntária, mascarando o debate sob a alegação de proteção à vida. Ao tratar o suicídio como um ato exclusivamente individual e desvinculado de suas determinações sociais, o Estado e suas instituições reforçam uma forma de culpabilização das vítimas, ao mesmo tempo em que se isentam da responsabilidade sobre as condições estruturais que geram sofrimento e desespero.

Nesse sentido, discutir o direito de morrer nos países periféricos implica problematizar as assimetrias globais na formulação de políticas públicas de saúde, saúde mental, bioética e cuidado. O sofrimento extremo não pode ser reduzido a uma questão de escolha individual ou tratado exclusivamente por vias clínicas e jurídicas. Ele exige transformações sociais abrangentes que enfrentem as raízes materiais e simbólicas da desesperança, da exclusão e da dor crônica invisibilizada.

Nas margens do capitalismo global, assegurar o direito de viver com dignidade é também resistir à naturalização de uma existência imposta como condenação, marcada pela precariedade, pela solidão institucional e pelo abandono do cuidado. Por isso, qualquer debate sobre eutanásia e suicídio assistido no Brasil só pode ser conduzido de forma ética e responsável se estiver comprometido não apenas com a autonomia individual, mas, sobretudo, com a superação das condições sociais que negam a milhões a própria possibilidade de escolha real.

Os impasses no Brasil

Enquanto diversos países no mundo debatem e, em alguns casos, legalizam práticas como a eutanásia e o suicídio assistido, o Brasil permanece preso a uma concepção punitiva e medicalizada da morte. No país, tanto a eutanásia (artigo 121 do Código Penal) quanto o auxílio ao suicídio (artigo 122) são criminalizados, e a ausência de uma legislação específica sobre o direito de morrer com dignidade impõe barreiras éticas e institucionais a pacientes em sofrimento extremo.

As poucas iniciativas existentes no Brasil concentram-se, majoritariamente, no campo da ortotanásia, regulamentado por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM), como a Resolução nº 1.805/2006, posteriormente atualizada por normas como a Resolução CFM nº 1.995/2012.

Esses dispositivos reconhecem o direito de pacientes em estado terminal de recusar tratamentos desproporcionais ou sem benefício terapêutico, que apenas prolonguem artificialmente a vida, sem perspectiva de recuperação. No entanto, por se tratarem de normas de caráter infralegal, sem força de lei, permanecem vulneráveis a interpretações divergentes por parte de instituições médicas, operadores do direito e familiares. Isso pode gerar insegurança jurídica e tensionar a autonomia de pacientes diante de decisões críticas sobre o fim da vida.

O Legislativo brasileiro, por sua vez, tem mostrado resistência sistemática a qualquer proposta que busque regulamentar de forma mais abrangente o direito de morrer. Por exemplo, o Projeto de Lei do Senado nº 125/1996, que previa a permissão de uma “morte sem dor”, foi arquivado sem sequer avançar em comissões temáticas.

O PLS nº 267/2018, que trata das diretivas antecipadas de vontade, instrumento pelo qual o paciente pode registrar, em vida, suas escolhas quanto a cuidados médicos futuros em caso de incapacidade, foi retirado pelo autor. Já, o PLS nº 236/2012, que apresenta a proposta do novo Código Penal, tipifica a eutanásia como crime autônomo. Isso significa que ao invés de ser tratada como uma forma de homicídio privilegiado, a eutanásia passaria a ter um tipo penal específico, com suas próprias características e consequências legais.

Além desses, os projetos que tramitam no Congresso Nacional sobre morte assistida são: PL 6.715/2009, que propõe a alteração do Código Penal para excluir a ilicitude da ortotanásia; PL 3002/2008, que propõe a regulamentação da prática da ortotanásia no território nacional brasileiro; e PL 6544/2009, que propõe o desligamento autorizado de máquinas que mantêm o paciente vivo. Ou seja, não há nenhum projeto de lei relacionado à eutanásia, suicídio assistido ou regulamentação do direito de morrer com dignidade em discussão no Congresso Nacional até o momento.

Essa paralisia legislativa revela a força dos tabus morais e religiosos no sistema político brasileiro, onde setores conservadores frequentemente associam o debate sobre o direito de morrer à permissividade ética ou ao relativismo moral.

Em vez de enfrentar a realidade do sofrimento humano em contextos terminais ou de sofrimento psíquico extremo, o Estado prefere silenciar, interditar ou criminalizar, o que acaba por perpetuar práticas clandestinas, judicializações dolorosas e mortes solitárias em meio à ausência de escuta, cuidado ou apoio institucional. A omissão estatal torna-se ainda mais grave diante do quadro estrutural de desigualdade que marca o Brasil.

Em um país onde grande parte da população não tem acesso a cuidados paliativos, medicação adequada para alívio da dor, apoio psicológico ou acompanhamento familiar no fim da vida, a recusa em debater o direito de morrer com dignidade configura não apenas negligência jurídica, mas violência institucionalizada. A indiferença do Estado reforça uma lógica de necropolítica, na qual as vidas das pessoas pobres, racializadas e vulnerabilizadas são deixadas à própria sorte, condenadas a morrer em sofrimento e abandono.

Essa situação evidencia também as tensões estruturais do modelo de acumulação capitalista periférico. A recusa em discutir a morte digna está profundamente enraizada na recusa histórica de reconhecer a dignidade de indivíduos reduzidos a meros reservatórios de força de trabalho barata.

Reconhecer o direito de morrer com dignidade implicaria admitir que uma vida limitada à mera sobrevivência biológica em meio ao sofrimento não é plenamente vivível, e, essa admissão colocaria em xeque os fundamentos da ordem social baseada na exploração, na desigualdade e na negação sistemática da subjetividade dos mais vulneráveis. Nesse sentido, o debate sobre a morte digna torna-se também um espelho ético das contradições de uma sociedade que naturaliza vidas precárias, mas hesita em reconhecer o sofrimento como critério legítimo de dignidade humana.

Levar esse tema ao debate público amplo, plural e informado torna-se, assim, uma condição necessária não apenas para a formulação de políticas públicas sensíveis e justas, mas para a própria reconstrução da ideia de cidadania, na qual o indivíduo seja reconhecido em sua autonomia existencial, inclusive no momento de sua partida.

Morrer com dignidade não é concessão médica, nem transgressão jurídica, mas um direito que só se consolida quando a sociedade decide enfrentar, com maturidade ética e solidariedade, a finitude como parte constitutiva da condição humana.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o DataSUS, o Brasil registra anualmente cerca de 1,5 milhão de óbitos. A maior parte dessas mortes decorre de doenças crônicas não transmissíveis, como câncer, enfermidades cardiovasculares, respiratórias ou neurodegenerativas, condições que, em sua maioria, envolvem processos prolongados de deterioração física, psíquica e existencial.

Ainda assim, o acesso a cuidados paliativos segue extremamente restrito. De acordo com a Associação Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), menos de 10% das pessoas que precisam desses cuidados os recebem. Os serviços estão majoritariamente concentrados em grandes centros urbanos das regiões Sudeste e Sul, com quase nenhuma estrutura dedicada nas regiões Norte e Nordeste.

Nos países onde práticas como eutanásia e suicídio assistido foram legalizadas, como Holanda, Bélgica, Suíça, Canadá, Colômbia e alguns estados dos EUA (como Oregon, Califórnia e Washington), a regulamentação envolve critérios rigorosos, múltiplas avaliações médicas e relatórios públicos periódicos.

Na Holanda, por exemplo, o Relatório Anual de Eutanásia de 2022 registrou 8.720 casos, representando 5,1% do total de mortes, com predominância de diagnósticos como câncer terminal, ELA e demências graves. No Canadá, a prática foi legalizada, em 2016, e os dados de 2022 indicam que 4,1% dos óbitos ocorreram por meio da Medical Assistance in Dying (MAiD), com padrões de monitoramento que incluem condição clínica, consentimento informado, escuta familiar e auditoria externa.

Esses dados mostram que a legalização não leva à banalização da morte, mas sim à criação de um arcabouço ético-institucional que assegura autonomia, dignidade e segurança jurídica nos casos de sofrimento irremediável. A transparência nesses países permite também o debate público informado, livre de estigmas ou mitos.

No Brasil, por contraste, o peso do cuidado recai, de forma desigual e invisível, sobre os ombros das famílias, em especial das mulheres. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), estima que cerca de 7 milhões de brasileiros vivem em condição de dependência funcional total ou parcial. A maior parte dos cuidados é realizada por mulheres da família, muitas vezes idosos cuidando de outros idosos, sem remuneração, treinamento ou apoio institucional.

Segundo dados, de 2021, do próprio IPEA, 27,45% dos domicílios brasileiros não tiveram qualquer renda proveniente do trabalho, e 4,32% contaram apenas com o Auxílio Emergencial para sua subsistência, o que corresponde a cerca de 2,95 milhões de lares. Nesse cenário, o cuidado se torna uma prática de sobrevivência precária e exaustiva, não um direito social garantido.

Adicionalmente, o Brasil não possui indicadores sistematizados e nacionais que permitam monitorar de forma abrangente as condições do fim da vida, como a prevalência de sofrimento físico e psíquico evitável, a limitação de esforços terapêuticos, a recusa de tratamentos desproporcionais, as preferências declaradas quanto ao local de morte (como domicílio, hospital ou instituições de longa permanência), o impacto do luto nas famílias cuidadoras e o registro de diretivas antecipadas de vontade.

Em contraste, países como Reino Unido, Austrália e Canadá vêm desenvolvendo, nas últimas décadas, sistemas de informação específicos e observatórios dedicados aos cuidados paliativos e ao fim da vida, que monitoram indicadores como controle da dor, angústia emocional, local da morte, suporte psicossocial e familiar, e qualidade da comunicação entre equipes de saúde e pacientes. Esses dados têm orientado políticas públicas voltadas à humanização do processo de morrer e à garantia de uma transição digna entre a vida e a morte.

A ausência de políticas públicas consistentes, somada à insuficiente formação em cuidados paliativos durante a graduação em Medicina e Enfermagem, aprofunda um vácuo assistencial que empurra milhões de brasileiros para um fim de vida marcado por dor física, abandono institucional e sobrecarga familiar.

Em vez de ser acompanhada por cuidado, escuta e alívio, a experiência de morrer transforma-se em um sofrimento solitário, silencioso e, frequentemente, evitável, mas socialmente ignorado. Essa realidade acentua desigualdades históricas, uma vez que, enquanto quem pode pagar recorre a serviços privados especializados, aqueles que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentam longas filas, descontinuidade de atendimento, improvisação e ausência de cuidado domiciliar estruturado. Morrer com dignidade, nesse contexto, ainda é um privilégio de poucos.

No campo da saúde mental, o cenário é igualmente alarmante. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa a 8ª posição mundial em número absoluto de suicídios, com cerca de 15 mil casos por ano. Embora nem todos estejam relacionados diretamente ao processo de morrer, estudos qualitativos indicam que muitos ocorrem em contextos marcados por dor crônica, doenças degenerativas, perda de autonomia funcional e ausência de suporte paliativo ou psicológico adequado. Esse quadro revela como o sofrimento extremo, quando negligenciado pelas instituições, pode levar à solidão psíquica e à percepção de que a morte é a única via possível frente à degradação da vida.

Reconhecer o fim da vida como um fato social e político − e não apenas como um evento biológico ou uma questão moral de fundo religioso − é uma tarefa urgente no contexto brasileiro, marcado por profundas desigualdades, abandono institucional e precariedade nos serviços de saúde.

Em um país onde grande parte da população não tem acesso a cuidados paliativos, saúde mental adequada ou mesmo acompanhamento médico contínuo, falar em autonomia no fim da vida exige mais do que a invocação de princípios abstratos: exige políticas públicas concretas, dados epidemiológicos que revelem o sofrimento silenciado e compromissos institucionais com o cuidado.

A ética da compaixão e da autonomia só pode se realizar plenamente quando sustentada por estruturas que reconheçam o humano em sua vulnerabilidade radical, especialmente nas periferias sociais onde a morte precoce, a dor não tratada e o esquecimento são realidades cotidianas. Nesse cenário, humanizar a finitude significa não apenas garantir direitos individuais, mas enfrentar, coletivamente, as condições sociais que tornam o morrer indigno para tantos.

Como afirma Camus (2019), “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”.

José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri (URCA). Autor, entre outros livros, de A condição apropriadora: por que a desigualdade estrutura a vida em comum? (Clube de Autores). [https://amzn.to/3Sj2Y3k]

Referências


BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2019.

CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION – CDC. Fatos sobre o suicídio. Disponível em: <https://www.cdc.gov/suicide/facts/index.html>.

DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011.

FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Atlas da Violência 2021. São Paulo/FBSP, 2021.

KÜNG, Hans; JENS, Walter. Dying with dignity: a plea for personal responsibility. New York: Continuum, 1998.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico. Panorama dos suicídios e lesões autoprovocadas no Brasil de 2010 a 2021. Brasília: MS, 2024.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Suicide worldwide in 2019: global health estimates. WHO, 2021.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

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