Dick Cheney, poder nas sombras e arquiteto do terror
Relato de um grande repórter que foi “pedra no sapato” do ex-vice de Bush, morto esta semana. Sua cobertura mostrou como ele articulou CIA, Pentágono e NSA para ampliar sistema de vigilância, mentiras e violência que redefiniu a “segurança nacional” nos EUA
Publicado 07/11/2025 às 17:59 - Atualizado 07/11/2025 às 19:03

Por Seymour Hersh, publicado em seu Substack, com tradução no Pátria Latina
Fiquei acordado até tarde, em outra noite aqui em Washington, lendo um novo livro sobre os horrores da vida nas prisões de Guantánamo Bay — uma das contribuições de George W. Bush e Dick Cheney para o mundo pós-11 de setembro. Acordei ontem de manhã com a notícia de que Cheney, o vice-presidente mais significativo da história recente dos Estados Unidos, havia finalmente falecido. Durante anos, fiz reportagens críticas sobre Cheney para a New Yorker, com a ajuda de pessoas de dentro do governo que acreditavam que havia maneiras melhores de responder aos ataques de 11 de setembro do que criar um novo conjunto de horrores.
No mínimo, Cheney foi igual a Bush — e é amplamente reconhecido como o provável vice-presidente mais influente da história. Os historiadores decidirão sobre isso no futuro. Por ora, posso relatar minhas percepções como alguém que teve alguma visão do funcionamento interno de seu gabinete, embora nunca o tenha conhecido ou falado com ele. Nos cruzamos uma vez, mais de uma década após o 11 de setembro, mas Cheney ignorou deliberadamente a minha mão estendida e passou reto. Sabia-se que ele tinha um coração fraco, mas, após um novo tratamento, viveu uma década a mais do que o esperado, continuando a caçar e pescar em Wyoming. Costumava dizer aos amigos que seu novo coração eletrônico estava funcionando bem — exceto pelo fato de que, sempre que entrava na cozinha, ele ligava a cafeteira.
Soube logo após o 11 de setembro, por um agente sênior — um veterano experiente que conhecia bem o Oriente Médio — que o temido Talibã, então liderado pelo mulá Omar, havia informado à Casa Branca, por meio da CIA, que não considerava Osama bin Laden, chefe da Al Qaeda, um hóspede intocável após os ataques. Ou seja, os Estados Unidos estavam livres para se vingar dele, sem precisar lançar uma operação contra o Talibã. Bin Laden, no entanto, logo se tornaria impossível de localizar. Bush e Cheney ignoraram a oferta — e a guerra começou. Bin Laden só seria encontrado e assassinado quase uma década depois, quando uma equipe dos Navy Seals recebeu ordem do presidente Barack Obama para matá-lo assim que o visse — uma política de assassinatos direcionados a suspeitos de terrorismo no exterior que a imprensa nunca examinou completamente.
Meu trabalho jornalístico durante a Guerra do Vietnã, no fim dos anos 1960, me levou à New Yorker, depois ao New York Times e, por fim, de volta à New Yorker. O editor da revista no 11 de setembro, David Remnick, me disse, logo após o segundo avião atingir o World Trade Center, que eu passaria os próximos anos da minha carreira cobrindo o que se tornaria a guerra americana ao terror.
Desde o início, estava claro que Cheney seria o homem de frente nessa guerra, e eu fiz tudo o que um repórter de uma revista semanal poderia fazer para tentar penetrar pouco a pouco naquele círculo. Ao longo dos anos da guerra ao terror, encontrei maneiras de obter informações de pessoas dentro do gabinete do vice-presidente — aquelas cuja lealdade à Constituição, ao senso de proporcionalidade política e militar e à verdade superava qualquer outra coisa.
Com suas primeiras aparições nos programas dominicais de entrevistas e sua franqueza ao falar da necessidade de ir para o que chamou de “lado sombrio”, Cheney expandiu as operações da CIA, da NSA e da inteligência militar dentro e fora do país, destruindo limitações constitucionais. O Congresso, a imprensa e o público consentiram com essas violações — algo que ainda hoje tem consequências. Essa não era minha pauta principal, como Remnick e outros da New Yorker perceberam. Minha missão era descobrir o que Cheney realmente fazia. O que finalmente me abriu as portas não foram minhas reportagens iniciais sobre os erros militares americanos, mas as repetidas mentiras sobre eles — vindas do secretário de Defesa Donald Rumsfeld (que “estrela”, de modo nada lisonjeiro, o documentário recente sobre minha carreira, Cover-Up, de Laura Poitras e Mark Obenhaus), da conselheira de Segurança Nacional Condoleezza Rice e do general Tommy Franks, comandante do Comando Central dos EUA e responsável pelas operações no Afeganistão e no Iraque.
As informações mais sigilosas das guerras no Afeganistão e no Iraque diziam respeito à ampliação constante da autoridade das forças especiais e de tropas secretas americanas para assassinar alvos suspeitos à vontade. Cheney e Rumsfeld estavam diretamente envolvidos nessas ações ilegais, como relatei repetidamente na New Yorker. A tensão dentro da comunidade de inteligência sobre o que era ou não legal chegou a tal ponto, em 2007, que um ex-alto funcionário da CIA, que havia servido justamente quando as regras estavam sendo cada vez mais relaxadas, me disse: “O problema é o que constitui aprovação. Meu pessoal discutia isso o tempo todo. Por que deveríamos colocar nossos agentes na linha de fogo no futuro? Se quiser que eu mate Joe Smith, diga apenas para matar Joe Smith.”
“Se eu fosse o vice-presidente ou o presidente, diria: ‘Esse tal de Smith é um cara ruim, e é do interesse dos Estados Unidos que ele seja morto.’ Mas eles não dizem isso. Em vez disso, George [Tenet — o diretor da CIA de antes do 11 de setembro até meados de 2004] vai à Casa Branca e ouve: ‘Vocês são profissionais. Sabem como isso é importante. Confiamos que vocês conseguirão a inteligência necessária.’ Aí George voltava e nos dizia: ‘Façam o que tiverem que fazer.’”
As mentiras repetidas do governo sobre as informações que eu publicava na revista levaram algumas pessoas de dentro a me ligar diretamente, no número público da minha casa, para contar a verdade. Aqueles que têm integridade, que amam seu país e apoiam as forças armadas americanas, muitas vezes são os mesmos que não suportam a mentira oficial. Perguntei hoje a uma dessas pessoas, já aposentada há muito tempo, sobre Cheney, e recebi esta resposta: “Ele era mais inteligente e mais pragmático do que qualquer presidente para quem serviu. Moldava silenciosamente a política externa nos bastidores e deixava poucos rastros. Só se manifestava para defender as decisões do chefe.” E completou com um alerta sobre esta história: “É impossível enquadrá-lo em um clichê”.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

